O tiro não vem. Ele me encara com a mesma ferocidade, mas não se move. Por que ele não atirou em mim? Seu coração bate contra minha mão, e meu próprio coração acelera. Ele é Divergente. Ele pode lutar contra essa simulação. Qualquer simulação.
— Tobias. Sou eu.
Dou um passo para frente e envolvo meus braços ao redor dele. Seu corpo está tenso. As batidas do seu coração mais rápidas. Posso senti-las contra minha bochecha. Um ruído surdo contra meu rosto. O mesmo som de quando a arma atinge o chão. Ele agarra meus ombros – com muita força, seus dedos se afundando na minha pele onde a bala estava. Choro enquanto ele me empurra para trás. Talvez ele queira me matar de algum jeito cruel.
— Tris — ele diz, e é ele novamente.
Sua boca se choca contra a minha.
Seus braços me envolvem enquanto ele me levanta do chão, me segurando contra ele, suas mãos agarrando minhas costas. Seu rosto e nuca estão molhados de suor, o corpo tremendo e meu ombro queimando com a dor, mas eu não me importo, não me importo, não me importo.
Ele me coloca de volta no chão e me encara, seus dedos deslizando pela minha testa, minhas sobrancelhas, bochechas e lábios.
Alguma coisa parecida com um soluço, um suspiro ou um gemido escapa dele, e ele me beija novamente. Seus olhos brilhando com as lágrimas. Nunca pensei que veria Tobias chorar. Isso me machuca.
Afundo meu rosto contra seu peito e choro. Minha dor de cabeça volta, e a dor no meu ombro, e sinto como se meu corpo pesasse o dobro. Inclino-me contra ele em busca de suporte.
— Como você conseguiu? — pergunto.
— Eu não sei — ele responde. — Eu simplesmente ouvi sua voz.
+ + +
Depois de alguns segundos, lembro onde estou. Afasto-me de Tobias, enxugo as lágrimas com uma das mãos e me viro de volta para as telas. Vejo uma que mostra toda a área dos bebedouros. Tobias estava tão paranoico quando eu reclamava sobre os membros da Audácia lá. Ele olhava incessantemente para a parede acima do bebedor. Agora eu sei por quê.
Tobias e eu ficamos parados lá por algum tempo, e acho que consigo adivinhar o que ele estava pensando, porque eu me perguntava a mesma coisa; Como uma coisa tão pequena é capaz de controlar tanta gente?
— Eu estava controlando a simulação?
— Não sei se você estava controlando ou monitorando — digo. — Já está concluída. Não tenho ideia de como, mas Jeanine a projetou, então pode estar funcionando por conta própria.
Ele balança a cabeça.
— É... incrível. Terrível, maldoso... mas incrível.
Um movimento em uma das telas chama minha atenção e eu vejo meu irmão, Marcus e Peter ainda no primeiro andar do prédio. Eles estão cercados por soldados da Audácia, todos de preto, carregando armas.
— Tobias — eu digo secamente. — Agora!
Ele corre para as telas do computador e as pressiona por algum tempo. Não consigo olhar o que ele está fazendo. Tudo o que vejo é meu irmão. Ele segura a arma que dei para ele como se estivesse pronto para usá-la. Mordo meu lábio. Não atire. Tobias pressiona a tela mais algumas vezes, digitando códigos que não fazem o menor sentido para mim. Não atire.
Vejo um lampejo – uma faísca de uma das armas – e engasgo. Meu irmão, Marcus e Peter agachados no chão protegendo suas cabeças com os braços. Depois de alguns minutos todos eles se levantam, então sei que eles ainda estão vivos, e os soldados da Audácia avançam. Um cardume negro ao redor do meu irmão.
— Tobias! — eu grito.
Ele pressiona a tela de novo, e todos no primeiro andar param.
Seus braços abaixam.
E então os membros da Audácia se movem. Suas cabeças virando para um lado e para o outro, eles soltam as armas e abrem a boca como se fossem gritar, esbarrando uns nos outros, afundando no chão, segurando suas cabeças e se balançando para frente e para trás, para frente e para trás.
O aperto no meu peito some. Eu me sento, suspirando.
Tobias se abaixa perto do computador, abrindo o gabinete.
— Preciso pegar o disco rígido com os dados — ele diz. — Ou eles podem simplesmente iniciar a simulação de novo.
Observo o frenesi nas telas. Deve ser a mesma coisa que está acontecendo nas ruas. Analiso as telas, uma a uma, procurando a que mostra o setor da Abnegação na cidade. Apenas uma – no final da sala, embaixo. Os membros da Audácia na tela estão atirando uns contra os outros, empurrando um ao outro, gritando – caos. Homens e mulheres vestidos de preto caindo no chão. Pessoas correndo em todas as direções.
— Consegui — Tobias diz, segurando o disco rígido do computador.
É um pedaço de metal quase do tamanho da sua mão. Ele me entrega e eu o coloco no bolso de trás da calça.
— Precisamos sair daqui — digo enquanto me levanto.
Aponto para a tela da direita.
— Sim, nós precisamos — ele envolve os braços ao redor dos meus ombros. — Vamos.
Caminhamos juntos pelo corredor que nos levaria de volta. Os elevadores me lembram do meu pai. Não consigo me impedir de procurar por seu corpo.
Eu o vejo no chão próximo ao elevador, cercado pelos corpos de vários guardas. Um grito estrangulado me escapa. Desvio o olhar. Um gosto de bile subindo pela minha garganta e eu vomito contra a parede.
Por um segundo, é como se tudo dentro de mim estivesse se quebrando, e eu me abaixo perto de um dos corpos respirando pela boca para não sentir o cheiro de sangue. Cubro minha boca com a mão para impedir um soluço. Mais cinco segundos. Cinco segundos de fraqueza e eu levanto. Um, dois, três, quatro.
Cinco.
+ + +
Não tenho muita noção das coisas ao meu redor. Há um elevador e uma sala de vidro e uma corrente de ar frio. Há também uma multidão de soldados da Audácia vestidos de preto gritando. Procuro por Caleb, mas ele não está em lugar algum, até que deixamos o prédio de vidro e saímos em direção à luz do dia.
Caleb corre até mim quando eu atravesso as portas e me deixo cair contra ele. Ele me segura com força.
— Papai? — ele pergunta.
Eu apenas balanço a cabeça.
— Bom — ele diz, quase engasgando com as palavras. — Ele gostaria que tivesse sido assim.
Por cima do ombro de Caleb, vejo Tobias parando. Todo o seu corpo enrijece quando ele vê Marcus. Na agonia de destruir a simulação, me esqueci de avisá-lo.
Marcus caminha até Tobias e envolve seus braços ao redor do filho. Tobias permanece congelado, seus braços duros e o rosto em branco. Observo seu pomo de Adão subir e descer enquanto ele olhava para o teto.
— Filho — Marcus suspira.
Tobias estremece.
— Ei — eu digo, me afastando de Caleb.
Lembro-me do ardor provocado pelo cinto no meu pulso durante a paisagem do medo de Tobias e deslizo para o espaço entre eles, empurrando Marcus para trás.
— Ei. Fique longe dele.
Sinto a respiração de Tobias contra meu pescoço, elas veem em rajadas afiadas.
— Fique longe — sibilo.
— Beatrice, o que você está fazendo? — Caleb pergunta.
— Tris — Tobias diz.
Marcus me olha de uma forma escandalizada que parece falsa para mim – seus olhos estão muito arregalados e sua boca muito aberta. Se eu fosse capaz de encontrar um meio para tirar esse olhar do seu rosto, eu faria.
— Nem todos aqueles artigos da Erudição eram cheios de mentiras — eu digo, cerrando meus olhos para Marcus.
— Do que você está falando? — Marcus diz calmamente. — Eu não sei o que lhe contaram, Beatrice, mas...
— A única razão pela qual não atirei em você ainda, é porque ele é quem deveria fazer isso — digo. — Fique longe dele ou não vou me importar em fazê-lo.
A mão de Tobias desliza pelo meu braço e me aperta. Os olhos de Marcus se prendem aos meus por alguns segundos e eu não consigo evitar imaginá-los como abismos negros, tal qual eram na paisagem do medo de Tobias. E então ele desvia o olhar.
— Precisamos ir — Tobias diz vacilante. — O trem chegará a qualquer instante.
Andamos pelo chão duro até os trilhos do trem. O maxilar de Tobias está tenso e ele olha diretamente para frente. Sinto uma pontada de arrependimento. Talvez eu devesse ter deixado que ele lidasse com o pai dele sozinho.
— Me desculpe — murmuro.
— Você não tem por que se desculpar — ele responde, segurando minha mão. Seus dedos ainda tremem.
— Se nós pegarmos o trem que vai para a direção contrária, para longe da cidade ao invés de para dentro dela, podemos chegar à sede da Amizade — digo. — É para lá que os outros foram.
— E quanto à Franqueza? — meu irmão pergunta. — O que você acha que eles farão?
Eu não sei como a Franqueza vai reagir ao ataque. Eles não vão ficar do lado da Erudição – nunca fariam algo tão dissimulado. Mas, da mesma forma, não é provável que eles lutem contra a Erudição.
Ficamos parados próximos aos trilhos por alguns minutos antes que o trem venha. Eventualmente Tobias me segura, uma vez que estou muito cansada, e apoio minha cabeça em seu ombro, respirando profundamente contra sua pele. Desde que ele me salvou do ataque, associei seu cheiro a segurança, então enquanto me concentro nisso, me sinto segura.
A verdade é que não me sentirei segura enquanto Peter e Marcus estiverem conosco. Tento não olhar para eles, mas sinto suas presenças da mesma forma que sentiria um cobertor sobre meu rosto. Ironia do destino é que eu preciso viajar com pessoas que odeio enquanto as que amo estão mortas.
Mortas ou acordando como assassinos. Onde estariam Christina e Tori? Perambulando pelas ruas, atormentadas pela culpa do que fizeram? Ou se vingando das pessoas que as forçaram a fazê-lo? Ou já estão mortas também? Gostaria de saber.
Ao mesmo tempo, desejo nunca descobrir. Se ela ainda estiver viva, Christina vai achar o corpo de Will. Seus olhos treinados pela Franqueza saberão que fui eu quem o matou. Eu sei disso e a culpa por ter feito me sufoca e me devasta, então preciso esquecer. Eu vou me fazer esquecer.
O trem chega e Tobias me solta para que eu possa saltar em um dos vagões. Corro alguns metros perto do vagão e então me lanço para dentro, aterrissando sobre meu braço esquerdo. Arrasto meu corpo e me sento apoiada na parede. Caleb senta na minha frente, e Tobias ao meu lado, formando uma barreira entre mim, Marcus e Peter. Meus inimigos. Os inimigos dele.
O trem vira e eu vejo a cidade atrás de nós. Ela vai ficando cada vez menor até que vemos onde os trilhos terminam, as florestas e campos que vi pela última vez quando era muito nova para apreciá-los. A gentileza da Amizade irá nos confortar por um tempo, mas não poderemos ficar lá para sempre. Logo a Erudição e os líderes corruptos da Audácia irão procurar por nós e precisaremos fugir.
Tobias me puxa para perto dele. Viramos nossos joelhos e cabeças para ficarmos juntos em um quarto que nós mesmos fazemos, incapazes de ver aqueles que nos causaram problemas, nossas respirações se misturando enquanto inspiramos e expiramos.
— Meus pais — eu digo. — Eles morreram hoje.
Mesmo dizendo isso, mesmo sabendo que isso é verdade, não sinto como se fosse.
— Eles morreram por mim — digo. Isso parece importante.
— Eles amavam você — ele responde. — Para eles não existia uma forma melhor de provar isso.
Eu concordo, e meus olhos acompanham as linhas de seu rosto.
— Você quase morreu hoje — ele diz. — Eu quase atirei em você. Por que não atirou em mim, Tris?
— Eu não poderia fazer isso. Teria sido como atirar em mim mesma.
Ele parece pesaroso e se inclina para perto de mim, assim seus lábios roçam os meus quando ele fala.
— Eu tenho algo para te dizer.
Corro meus dedos pelos tendões de sua mão e olho para ele.
— Eu posso estar apaixonado por você — ele sorri um pouco. — Entretanto, estou esperando até ter certeza para te contar.
— Isso é muito sensato da sua parte — respondo, sorrindo também. — Nós deveríamos encontrar um papel para você poder fazer uma lista, um gráfico ou alguma coisa do tipo.
Sinto sua risada contra meu corpo, seu nariz deslizando pela minha mandíbula, seus lábios pressionando contra minha orelha.
— Talvez eu já tenha certeza — ele diz. — E só não queira assustar você.
Eu sorrio um pouco.
— Você deveria me conhecer melhor.
— Tudo bem — ele diz. — Então eu te amo.
Eu o beijo enquanto o trem se dirige para terras escuras e incertas. Eu o beijo por todo o tempo que quero, por mais do que eu deveria, considerando que meu irmão está sentado a alguns centímetros de mim.
Alcanço o meu bolso e tiro o disco rígido que contém os dados da simulação. O giro nas mãos, deixando que ele reflita a luz fraca do sol. Os olhos de Marcus se agarram avidamente ao movimento. Não é seguro, eu penso. Não completamente.
Eu aninho o disco rígido no meu peito, apoio minha cabeça no ombro de Tobias e tento dormir.
+ + +
Abnegação e Audácia estão destruídas, seus membros dispersos. Nós somos como as pessoas sem facção agora. Não sei como a vida será daqui para frente, sem facção – parece algo solto, como uma folha separada de uma árvore que lhe dava sustentação. Nós somos criaturas perdidas, deixamos tudo para trás. Não temos casa, não temos um caminho certo pelo qual seguir. Eu não sou mais Tris, a altruísta, ou Tris, a corajosa.
Eu acho que agora, devo me tornar mais do que ambos.
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