Cruzo a multidão próxima ao abismo. Está um som alto na Caverna, e não é só pelo barulho do rio. Quero encontrar um pouco de silêncio, então corro para o corredor que leva aos dormitórios. Não quero ouvir o discurso que Tori fará em homenagem a Marlene, ou ficar perto dos gritos e brindes que a Audácia faz para celebrar a vida e a bravura.
Esta manhã, Lauren nos informou que falhamos em encontrar algumas câmeras no dormitório dos iniciados, onde Christina, Zeke, Lauren, Marlene, Hector e Kee, a garota de cabelo verde, dormiam. Foi assim que Jeanine descobriu quem ela estava controlando com a simulação. Não duvido nada de que Jeanine escolheu jovens da Audácia por saber que suas mortes iriam nos afetar mais.
Paro em um corredor estranho e pressiono minha testa contra a parede. A pedra parece áspera e gelada contra minha pele. Consigo ouvir os Audaciosos gritando atrás de mim, suas vozes abafadas por algumas camadas de concreto.
Ouço alguém se aproximando, e olho para o lado. Christina, ainda vestindo a mesma roupa de ontem à noite, permanece a alguns metros de distância.
— Ei — ela diz.
— Eu não estou com vontade de me sentir mais culpada agora. Então, por favor, vá embora.
— Eu só quero dizer uma coisa, e então vou embora.
Seus olhos estão inchados, e sua voz soa um pouco sonolenta, devido à exaustão ou o álcool, ou ambos. Mas ela me encara diretamente, o bastante para mostrar que ela sabe o que está falando. Eu me afasto da parede.
— Eu nunca vi aquele tipo de simulação antes. Você sabe, pelo lado de fora. Mas ontem... — Ela balança a cabeça. — Você estava certa. Eles não podem ouvir e nem ver você. Assim como Will...
Ela para ao pronunciar o nome. Respira fundo, engole em seco. Pisca algumas vezes. Em seguida, olha para mim novamente.
— Você disse que teve de fazer aquilo, ou ele atiraria em você, e eu não acreditei. Mas acredito agora... Vou tentar te perdoar. Isto... É tudo o que eu queria dizer.
Há uma parte de mim que se sente aliviada. Ela acredita em mim, e está tentando me perdoar, mesmo não sendo fácil. Mas a maior parte de mim sente raiva. O que ela pensou, antes disso? Que eu quis atirar de propósito em Will, um dos meus melhores amigos? Ela devia ter confiado em mim desde o começo, devia saber que eu não teria feito aquilo se não fosse necessário.
— Que sorte a minha, que você finalmente teve uma prova de que não sou uma assassina de sangue frio. Sabe, fora a minha palavra. Quero dizer, qual motivo você teria para acreditar nisso? — Eu forço uma risada, tentando permanecer indiferente. Ela abre a boca, mas continuo falando, incapaz de parar. — É melhor você se apressar nessa coisa de perdão, porque não temos muito tempo...
Minha voz se quebra, e eu não consigo me segurar mais. Começo a soluçar. Me encosto novamente na parede para me apoiar e sinto meu corpo se deslocar para baixo enquanto minhas pernas perdem a força.
Meus olhos estão embaçados demais para enxergá-la, mas sinto quando ela se aproxima de mim e aperta seus braços ao redor dos meus com força. Ela cheira a óleo de coco e parece forte, exatamente como era durante a iniciação da Audácia, quando ela se segurou sobre o abismo só com seus dedos. Naquela época – o que não faz muito tempo – ela fazia com que eu me sentisse fraca, mas agora, sua força me faz sentir como se eu pudesse ser forte também.
Ajoelhamo-nos juntas no chão, e eu a abraço tão apertado quanto ela me abraça.
— Já está dado. Isto que eu queria dizer. Que o perdão já está dado.
+ + +
Todos os membros Audácia ficam quietos quando entro no refeitório. Eu não os culpo. Por ser uma Divergente, tenho o poder de deixar que Jeanine mate um deles no meu lugar. Provavelmente, a maioria quer que eu me sacrifique. Ou estão aterrorizados que eu não o faça.
Se esta fosse a Abnegação, nenhum Divergente estaria se sentando aqui agora.
Por um momento eu não sei aonde ir ou como chegar lá. Mas Zeke acena para que eu me sente em sua mesa, com um olhar sombrio, então guio meus pés naquela direção. Mas antes que eu possa alcançar a mesa, Lynn se aproxima de mim.
Ela é diferente da Lynn que eu sempre conheci. Ela não tem uma expressão feroz em seus olhos. Ao invés disso, está pálida e mordendo o lábio para disfarçar sua oscilação.
— Hum... — ela diz. Ela olha para a direita, para a esquerda, para todas as direções menos para mim. — Eu realmente... Sinto falta da Marlene. Eu a conhecia há muito tempo, e eu... — Ela balança a cabeça. — O que quero dizer é, não pense que o que estou dizendo é por não me importar com Marlene — ela diz, como se estivesse me repreendendo — mas obrigada por salvar Hec.
Lynn transfere o peso de um pé para o outro, seus olhos percorrem toda a sala. Então ela me abraça com um de seus braços, sua mão apertando minha camisa. Uma dor lancinante atravessa meu ombro. Eu não digo nada sobre isso.
Ela me solta, soluçando, e volta para sua mesa como se nada tivesse acontecido. Eu encaro sua retirada por alguns segundos, e depois me sento.
Zeke e Uriah estão sentados um ao lado do outro. A cara de Uriah está calma e sonolenta, como se ele não estivesse completamente acordado. Na sua frente, há uma garrafa marrom escura, da qual ele bebe a cada poucos segundos.
Sinto que devo ficar cautelosa ao lado dele. Eu salvei Hec – o que significa que falhei em salvar Marlene. Mas Uriah não olha para mim. Puxo minha cadeira para longe dele e me sento mais para o final da mesa.
— Onde está Shauna? — pergunto. — Ainda no hospital?
— Não, ela está bem ali — Zeke responde, apontando com a cabeça para a mesa de onde Lynn saiu para falar comigo. Eu a vejo lá, tão pálida que parece ser transparente, sentada em uma cadeira de rodas. — Shauna não deveria estar de pé, mas Lynn está muito nervosa, então elas estão fazendo companhia uma para outra.
— Mas se você está se perguntando o porquê de todos agirem dessa maneira... Shauna descobriu que sou Divergente — diz Uriah lentamente. — E ela não quer se infectar.
— Oh.
— Ela está bem estranha comigo também — Zeke acrescenta. — “Como você sabe se seu irmão não está trabalhando contra nós? Você o tem vigiado?” O que eu daria para socar quem quer que seja que envenenou a mente dela.
— Você não tem que dar nada — diz Uriah. — A mãe dela está sentada bem ali. Vá em frente e bata nela.
Sigo seu olhar até uma mulher de meia idade com mechas azuis no cabelo e brincos cobrindo todo seu lóbulo. Ela é bonita, assim como Lynn.
Tobias entra no refeitório um momento depois, seguido por Tori e Harrison. Tenho evitado-o. Não falei com ele desde a briga que tivemos antes de Marlene...
— Olá, Tris — Tobias diz quando estou perto o suficiente para ouvi-lo. Sua voz é baixa, rouca. Ela me transporta para lugares serenos.
— Oi — respondo em uma voz pequena e apertada que não me pertence.
Ele se senta ao meu lado e coloca seu braço nas costas da minha cadeira, se inclinando para perto de mim. Eu não faço o mesmo – eu me recuso a encará-lo.
Eu o encaro.
Olhos escuros – um tom peculiar de azul, que de algum modo é capaz de apagar todo o resto do refeitório, me confortar e também me lembrar de que estamos mais distantes do que eu quero.
— Você não vai me perguntar se estou bem?
— Não, tenho certeza de que você não está bem — ele balança a cabeça. — Só vou te pedir para não tomar nenhuma decisão antes de conversarmos sobre isso.
É tarde demais, eu penso. A decisão já foi tomada.
— Até nós todos conversarmos sobre isso, você quer dizer, já que envolve todos nós — Uriah opina. — Acho que ninguém deve se entregar.
— Ninguém? — pergunto.
— Não! — Uriah franze o cenho. — Acho que temos que atacar de volta.
— É — digo, sombria — vamos provocar a mulher que forçou metade deste complexo a atacar uns aos outros. Parece uma ótima ideia.
Eu fui dura demais. Uriah derrama o conteúdo da garrafa garganta abaixo. Ele bate a garrafa tão forte na mesa que fico com medo de que ela se quebre.
— Não fale sobre isso desse modo — ele diz com um rosnado.
— Desculpe-me. Mas você sabe que estou certa. A melhor maneira de garantir a segurança de metade da facção é sacrificar uma só vida.
Eu não sei o que esperava. Talvez que Uriah, que sabe muito bem o que vai acontecer se um de nós não for, não se voluntariar. Mas ele olha para baixo. Relutante.
— Tori, Harrison e eu decidimos aumentar a segurança. Esperamos que se todos estiverem mais atentos a esses ataques, vamos ser capazes de pará-los — Tobias diz. — Se isso não funcionar, então pensaremos em outra solução. Fim de papo. Mas ninguém vai fazer nada ainda. Tudo bem?
Ele olha para mim quando pergunta, e levanta as sobrancelhas.
— Tudo bem — respondo, não querendo encontrar seus olhos.
+ + +
Depois do jantar, tento voltar para o dormitório onde estava dormindo, mas não consigo atravessar a porta. Ao invés disso cruzo o corredor, passando meus dedos pela parede, ouvindo o eco dos meus passos.
Sem querer, passo em frente à fonte de água onde Peter, Drew e Al me atacaram. Eu sabia que era Al pelo seu cheiro – ainda posso sentir o cheiro de limão em minha mente. Agora eu o associo não com meu amigo, mas com a impotência que senti quando me arrastaram até o abismo.
Eu acelero o passo, mantendo meus olhos bem abertos para que seja difícil imaginar as imagens do ataque em minha mente. Tenho que me afastar daqui, me afastar do lugar onde meu amigo me atacou, onde Peter esfaqueou Edward, onde um exército cego começou a marchar em direção ao complexo da Abnegação e toda essa insanidade começou.
Sigo em frente, em direção ao último lugar onde me senti segura: o quarto de Tobias. No segundo em que abro a porta, me sinto mais calma.
A porta não está completamente fechada. Eu a empurro com o pé. Ele não está lá, mas mesmo assim não vou embora. Sento em sua cama e enrolo a colcha em meus braços, enterrando meu rosto no tecido e tomando ar através dele. O cheiro que costumava ter quase se foi, faz tanto tempo que ele dormiu aqui.
A porta se abre e Tobias entra no quarto. Meus braços ficam moles, e a colcha cai no meu colo. Como vou explicar minha presença aqui? Eu deveria estar com raiva dele.
Ele não expressa nenhum sinal de que esteja com raiva, mas sua boca está tão tensa que sei que está bravo comigo.
— Não seja uma idiota.
— Uma idiota?
— Você estava mentindo. Disse que não iria para o complexo da Erudição, mas estava mentindo, e ir para lá te faria uma idiota. Então, não seja.
Eu jogo a colcha para o lado e me levanto.
— Não tente fazer isso parecer simples — digo. — Porque não é. Você sabe melhor do que eu que essa é a coisa certa a ser feita.
— Você escolhe logo esse momento para agir como alguém da Abnegação? — Sua voz enche o quarto e faz meu peito se arrepiar de medo. Sua raiva parece muito repentina. Muito estranha. — Todo esse tempo que gastou insistindo que era muito egoísta para eles, e agora, quando sua vida está em perigo, você quer ser uma heroína? O que há de errado com você?
— O que há de errado com você? Pessoas morreram. Elas andaram diretamente pra fora da cobertura de um prédio! E eu posso impedir que isso aconteça de novo!
— Você é muito importante para simplesmente... Morrer.
Ele balança a cabeça. Ele nem ao menos olha para mim – seus olhos se deslocam para longe do meu rosto, para a parede atrás de mim, ou o teto acima, qualquer lugar menos diretamente para mim. Estou atordoada demais para ficar zangada.
— Não sou importante. Todos vão ficar bem sem mim.
— Quem liga para todo mundo? E quanto a mim?
Ele abaixa a cabeça em suas mãos, cobrindo seus olhos. Seus dedos estão tremendo.
Ele cruza o quarto rapidamente e toca seus lábios nos meus. Seu toque gentil apaga os últimos meses, e volto a ser a garota que se sentou nas pedras próximas ao abismo, com borrifos de água em seus tornozelos, beijando-o pela primeira vez. Sou a garota que apertou a mão dele no corredor só por querer apertar.
Eu me afasto, minhas mãos no seu peito mantendo-o afastado. O problema é, eu também sou a garota que atirou em Will e escondeu isso, que escolheu entre Marlene e Hector, e milhares de outras coisas também. E não posso apagá-las da minha mente.
— Você ficaria bem — eu não olho para ele. Encaro sua camiseta entre meus dedos e a tatuagem preta tremulando em volta de seu pescoço, mas não olho para seu rosto. — Não rapidamente. Mas seguiria em frente, e faria o que tem que ser feito.
Ele me envolve com um de seus braços e me coloca contra seu corpo.
— Isso é uma mentira — ele diz, antes de me beijar de novo.
Isso é errado. É errado eu me esquecer de quem me tornei, e deixar que ele me beije quando sei o que estou prestes a fazer.
Mas eu quero. Oh, eu quero.
Coloco-me na ponta dos pés e lanço meus braços ao redor dele. Pressiono uma mão em seu ombro e coloco a outra em volta de seu pescoço. Consigo ouvir sua respiração contra a palma da minha mão, seu corpo se expandindo e se contraindo, eu sei que ele é forte, firme invencível. Tudo o que eu preciso ser, mas que não sou, não sou.
Ele anda para trás, me puxando junto com ele, então eu tropeço. Tropeço para fora dos meus sapatos. Ele se senta na beirada da cama e eu fico de pé em frente dele, e finalmente estamos olho a olho.
Ele toca minha face, cobrindo minhas bochechas com suas mãos, deslizando seus dedos para baixo do meu pescoço, encaixando-os nas curvas dos meus quadris.
Eu não posso parar.
Encaixo minha boca na dele, e ele tem gosto de água e cheira a ar fresco. Arrasto minha mão de seu pescoço para suas costas, e coloco-a debaixo de sua camisa. Ele me beija mais.
Eu sabia que ele era forte; mas não sabia o quanto até eu mesma sentir os músculos em suas costas se apertando contra meus dedos.
Pare, falo para mim mesma.
De repente, é como se estivéssemos com pressa, seus dedos acariciando meu corpo por baixo de minha camisa, minhas mãos o apertando, o aproximando para mais perto de mim, só que nunca perto o suficiente. Nunca desejei alguém desse jeito, ou tanto assim.
Ele se afasta só o suficiente para olhar em meus olhos, ele abaixa suas pálpebras.
— Prometa-me — ele sussurra — que você não vai. Por mim. Faça isso por mim.
Posso fazer isso? Posso ficar aqui, consertar as coisas entre nós, deixar outras pessoas morrerem em meu lugar? Olhando para ele, acredito por um momento que posso. Mas então vejo Will. O vinco entre suas sobrancelhas. Os olhos vazios por causa da simulação. O corpo caído no chão.
Faça isso por mim. Os olhos escuros de Tobias me imploram.
Mas se eu não for para o complexo da Erudição, quem vai? Tobias? É o tipo de coisa que ele faria.
Sinto uma pontada de dor no meu peito enquanto minto para ele.
— Tudo bem.
— Prometa — ele diz, franzindo a testa.
A dor se torna aguda, se espalha por toda parte – tudo misturado; culpa, terror e saudade.
— Eu prometo.
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