quarta-feira, 4 de junho de 2014

Capítulo dois



Tobias


Não posso caminhar por estes corredores sem me lembrar dos dias que passei como prisioneiro aqui, descalço, a dor palpitando dentro de mim cada vez que eu me movia. E com essa recordação há mais outra, uma de esperar que Beatrice Prior se dirija até sua morte, dos meus punhos contra a porta, de suas pernas penduradas nos braços de Peter quando me falou que ela estava drogada.
Odeio este lugar.
Não está tão limpo como estava quando era a sede da Erudição, agora está devastado pela guerra, buracos de bala nas paredes e estilhaços de vidro de lâmpadas por toda parte. Caminho sobre pegadas sujas e debaixo de luzes piscantes até sua cela e sou admitido sem discussão, porque levo o símbolo dos sem facção – círculo vazio – sobre uma faixa negra ao redor de meu braço e os traços de Evelyn em meu rosto.  Tobias Eaton era um nome vergonhoso, e agora é um muito poderoso.
Tris está agachada no interior, ombro a ombro com Christina e na diagonal com Cara. Minha Tris deveria se sentir pálida e pequena – ela é pálida e pequena, depois de tudo – no entanto, a sala está cheia dela.
Seus olhos redondos encontram os meus e ela se põe de pé, os braços firmemente atados em volta da minha cintura e seu rosto contra meu peito. Aperto seu ombro com uma mão e acaricio seu cabelo com a outra, porém fico surpreendido quando ele termina em seu pescoço e não cai abaixo dele. Fiquei feliz quando ela o cortou, porque é o cabelo para uma guerreira e não uma menina, e sabia que era o necessário.
— Como entrou? — ela pergunta em voz baixa e clara.
— Sou Tobias Eaton — falo, e ela ri.
— Certo. Continuo me esquecendo — se afasta o suficiente para me olhar. Há uma expressão vacilante em seus olhos, como se ela fosse um monte de folhas a ponto de serem espalhadas pelo vento. — O que está acontecendo? O que te tomou tanto tempo?
Soa desesperada, suplicante. Por todas as terríveis recordações que esse lugar evoca em mim, sei que evoca mais para ela: a caminhada até sua execução, a traição de seu irmão, o soro da simulação. Tenho que tirá-la daqui.
Cara olha para cima com interesse. Me sinto desconfortável, como se tivesse acabado de me mudar para dentro dessa pele e não me encaixo direito. Odeio ter uma audiência.
— Evelyn tem a cidade cercada — digo. — Ninguém dá um passo e nenhuma direção sem que ela permita. Há uns dias deu um discurso sobre nos unirmos contra nossos opressores, as pessoas de fora.
— Opressores? — Christina repete.
Ela pega uma ampola de seu bolso e joga o conteúdo em sua boca, analgésicos para a ferida à bala na perna, suponho.
Deslizo minhas mãos nos bolsos.
— Evelyn e um monte de gente, na verdade, creem que não deveríamos sair da cidade só para ajudar as pessoas que nos enjaularam aqui dentro, para que pudessem nos utilizar mais tarde. Querem tratar de sanar a cidade e resolver nossos próprios problemas em vez de ir resolver os dos outros. Estou parafraseando, é claro — digo. — Suspeito que essa opinião é muito conveniente para minha mãe, porque enquanto estamos todos aqui, ela está no comando. No segundo em que saímos, ela perde seu domínio.
— Genial — Tris fica com os olhos sem expressão. — É claro que escolheria o caminho mais egoísta possível.
— Ela tem um ponto — Christina envolve os dedos ao redor da ampola. — Não estou dizendo que não quero sair da cidade e ver o que há aí fora, mas temos bastante o que fazer aqui. Como se supõe que iremos ajudar um monte de gente que nunca sequer conhecemos?
Tris considera isso, mordendo o interior de sua bochecha.
— Não sei — admite.
Meu relógio marca as três em ponto. Estive tempo demais aqui, tempo suficiente para que Evelyn suspeite. Eu disse que vinha terminar com Tris, que não demoraria muito. Não tenho certeza de que ela acreditou.
— Escutem, eu vim principalmente adverti-las, eles estão começando o julgamento para todos os prisioneiros. Vão usar o soro da verdade em vocês, e se funcionar, serão condenados como traidores. Creio que todos gostariam de evitar isso — digo.
— Condenados como traidores? — Tris franze o cenho. — Como revelar a verdade a toda a nossa cidade é um ato de traição?
— Foi um ato de desafio contra seus líderes — respondo. — Evelyn e seus seguidores não querem abandonar a cidade. Não te agradecerão por mostrar esse vídeo.
— São iguais a Jeanine! — ela faz um gesto vacilante, como se quisesse golpear algo, porém não há nada disponível. — Prontos para fazer qualquer coisa para esconder a verdade, e para quê? Para serem reis de seu diminuto mundo? É ridículo.
Não quero dizer, mas uma parte de mim está de acordo com minha mãe. Não devo nada à gente de fora da cidade, eu seja Divergente ou não. Não estou certo de que me oferecer a eles para resolver os problemas da humanidade seja o que isso signifique. Mas quero ir, da forma desesperada com que um animal quer escapar da armadilha. Selvagem e raivoso. Pronto para roer o osso.
— Seja como for — falo com cuidado — se o soro da verdade funcionar em vocês, serão condenadas.
— Se funcionar? — Cara pergunta, semicerrando os olhos.
— Divergente — Tris lhe fala, acenando com sua própria cabeça. — Lembra?
— Isso é fascinante — Cara paga uma mecha de cabelo que escorregou e joga para trás. — Mas atípico. Em minha experiência, a maioria dos Divergentes não podem resistir ao soro da verdade. Me pergunto porque você pode.
— Você e todo Erudito que alguma vez me espetou com uma agulha — espeta Tris.
— Podemos nos concentrar, por favor? Eu gostaria de não precisar ter que tirá-las do cárcere — falo.
De repente estou desesperado por consolo, alcanço a mão de Tris e ela traz seus dedos para se encontrarem com os meus. Não somos pessoas que se tocam um no outro descuidadamente, cada ponto de contato entre nós é importante, uma torrente de energia e alívio.
— Está bem, está bem — ela fala, suavemente agora. — O que você tem em mente?
— Conseguirei que Evelyn teste você primeiro, das três. Tudo o que tem que fazer é encontrar uma mentira que exonere tanto Christina quanto Cara, e tudo sob o soro da verdade.
— Que tipo de mentira faria isso?
— Pensei que poderia deixar isso para você — respondo — já que é a melhor mentirosa.
Sei enquanto falo as palavras que elas golpeiam um ponto sensível em ambos. Ela mentiu para mim muitas vezes. Me prometeu que não iria buscar a morte na sede da Erudição quando Jeanine exigiu o sacrifício de um Divergente, e mesmo assim o fez de qualquer maneira. Me disse que ia ficar em casa durante o ataque à Erudição, e a encontrei na sede dos Eruditos, trabalhando com meu pai. Entendo por que fez todas essas coisas, mas não quer dizer no entanto que estamos rompidos.
— Sim — ela encara seus sapatos. — Está bem, vou pensar em algo.
Ponho a mão em seu braço.
— Falarei com Evelyn sobre seu julgamento. Tratarei de fazê-lo logo.
— Obrigada.
Sinto o impulso, familiar agora, de me puxar do meu corpo e falar diretamente dentro de sua mente. É a mesma urgência, me dou conta, que me faz querer beijá-la cada vez que a vejo, porque mesmo um milímetro de distância entre nós é exasperante. Nossos dedos, entrelaçados fracamente por um momento, agora se unem ferozmente, sua mão pegajosa com a umidade, a minha áspera nos lugares em que agarrei a alça demasiadas vezes em trens em movimento. Agora ela parece pálida e pequena, mas seus olhos me fazem pensar em céus abertos que nunca vi na realidade, só sonhei.
— Se vão se beijar, façam-me um favor e me digam, assim posso olhar para o outro lado — Christina fala.
— Vamos fazer isso — Tris responde. — E te falamos.
Toco sua bochecha para o beijo ficar mais lento, sustentando sua boca sobre a minha, assim posso sentir cada lugar onde nossos lábios se tocam e cada lugar onde se separam. Saboreio o ar que compartilhamos no segundo depois e o deslizamento de seu nariz sobre o meu. Penso em algo para dizer, mas é demasiado íntimo, assim me seguro. Um momento depois, decido que não importa.
— Queria que estivéssemos sozinhos — lhe digo enquanto retrocedo para fora da cela.
Ela sorri.
— Eu quase sempre desejo isso.
Enquanto fecho a porta, vejo Christina fingindo vomitar, Cara rindo, e as mãos de Tris penduradas ao seu lado.

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