Tobias
Alguém está cochichando.
Posso sentir ao caminhar pelo refeitório com minha bandeja, e vejo as cabeças juntas de um grupo sem facção enquanto se inclinam em sua aveia. Seja o que for que vai acontecer, será logo.
Ontem, quando saí do escritório de Evelyn, fiquei no corredor para espiar sua próxima reunião. Antes de fechar a porta, ouvi-a dizer algo sobre uma manifestação. A pergunta que pulsa no fundo da minha mente é: Por que não me contou?
Não deve confiar em mim. Isso significa que não estou fazendo um bom trabalho como seu suposto braço direito como penso que estou.
Me sento com o mesmo desjejum que todo mundo: um prato de aveia com um pouco de açúcar mascavo e uma xícara de café. Observo o grupo sem facção enquanto coloco a colher na boca, sem sentir o gosto. Um deles, uma garota de catorze anos, talvez, fica olhando para o relógio.
Estou na metade do meu café da manhã quando ouço os gritos. A nervosa menina sem facção salta de seu assento como se a tivessem golpeado com um cabo de alta tensão, e todos vão até a porta. estou bem atrás deles, abrindo espaço a cotoveladas entre os que se movem lentamente através do lobby da Erudição, onde o retrato de Jeanine Matthews continua em pedaços no chão.
Um grupo sem facção já se reuniu lá fora, no meio da Avenida Michigan. Uma cobertura de nuvens pálidas cobre o sol, fazendo a luz do dia ser nebulosa e sem brilho. Escuto alguém gritar: Morte às facções! e outros acolhem a frase, convertendo-a em um cântico, até que enche meus ouvidos: Morte às facções, morte às facções. Vejo punhos no ar, como Audaciosos excitados, mas sem a alegria da Audácia. Seus rostos se torcem de raiva.
Me empurro até o meio do grupo, e logo vejo em torno de que estão reunidos: os enormes recipientes das facções da Cerimônia de Escolha estão viradas de lado na rua, carvão, vidro, pedra terra e água, tudo misturando-se.
Lembro de cortar minha palma para colocar o sangue no carvão, meu primeiro ato de rebeldia contra meu pai. Lembro da onda de poder dentro de mim, e da onda de alívio. Escapar. Esses recipientes foram meu escape.
Edward se encontra entre eles, fragmentos de vidro moídos a pó sob seu calcanhar, um martelo segurado acima da cabeça. Ele o traz para baixo contra um dos recipientes, forçando um dos dentes dentro do metal. Pó de carvão se eleva no ar.
Tenho que me conter para não correr até ele. Ele não pode destruí-lo, não aquele recipiente, não a Cerimônia de Escolha, não o símbolo do meu triunfo. Essas coisas não devem ser destruídas.
A multidão está aumentando, não apenas com os sem facção usando faixas negras com círculos brancos nelas, mas pessoas com uma facção real, com os braços nus. Um homem da Erudição – sua facção revelada por seu cabelo imaculadamente partido – emerge livre da multidão enquanto Edward está erguendo o martelo para outro golpe. Envolve suas mãos macias manchadas de tinta ao redor do punho, pouco acima da de Edward, e começam a empurrar entre si, com os dentes apertados.
Vejo uma cabeça loira na multidão – Tris, com uma camisa azul larga e sem mangas, mostrando as bordas das tatuagens das facções em seus ombros. Ela trata de correr até Edward e o homem Erudito, mas Christina a detém com as duas mãos.
O rosto do homem Erudito fica roxo. Edward é mais alto e mais forte que ele. Não há possibilidade, é um tonto por tentar. Edward arranca o martelo das mãos do homem e o balança novamente. O Erudito, porém, está fora de equilíbrio, e o martelo o acerta no ombro com toda a força, metal quebrando osso.
Por um momento, tudo o que escuto são os gritos do homem da Erudição. É como se todo mundo estivesse sugando a respiração. Então a multidão estala em um frenesi, todos correndo até os recipientes, até Edward, até o homem Erudito. Chocam entre si e em mim, ombros, cotovelos e cabeças golpeando-me uma e outra vez.
Não sei para onde correr: para o homem as Erudição, para Edward, para Tris? Não posso pensar; não posso respirar. A multidão me leva até Edward, e seguro sua mão.
— Vamos! — grito por cima do ruído.
Seu olho brilhante se fixa em mim, e ele trinca os dentes, tratando de soltar-se.
Trago meu joelho para cima, atingindo sua lateral. Ele cambaleia para trás, perdendo o aperto sobre o martelo. Eu o seguro perto da minha perna e me dirijo até Tris.
Ela está em algum lugar a minha frente, perto de onde está o homem Erudito. Vejo que o cotovelo de uma mulher a acerta na bochecha, enviando-a para trás, cambaleando. Christina empurra a mulher.
Em seguida, uma arma dispara. Uma vez, duas vezes. Três vezes.
A multidão se dispersa, todos correndo aterrorizados com a ameaça de balas, e procuro ver quem, se alguém, levou um tiro, mas a quantidade de pessoas é muito grande. Não posso ver nada.
Tris e Christina se ajoelham ao lado do homem Erudito com o ombro destroçado. Seu cabelo dividido ao estilo da Erudição está bagunçado.
Ele não se move.
A alguns metros de distância dele, Edward está em uma poça de seu próprio sangue. A bala acertou-lhe o estômago. Há também outras pessoas no chão, pessoas que não reconheço, pessoas que foram alvejadas ou pisoteadas. Suspeito que as balas eram para Edward e para Edward apenas, os outros simplesmente estavam no caminho.
Olho ao redor selvagemente, mas não vejo quem disparou. Quem quer que seja, dissolveu-se na multidão.
Deixo o martelo cair ao lado de um dos recipientes deficientes e me ajoelho ao lado de Edward, as pedras da Abnegação espetando minha pele. Seu olho restante se move para frente e para trás debaixo de sua pálpebra... está vivo, por enquanto.
— Temos que levá-lo ao hospital — digo a quem estiver à minha volta.
Quase todo mundo se foi.
Olho por cima do ombro para Tris e o Erudito, que não se moveu.
— Ele está...?
Seus dedos estão na garganta dele, tomando seu pulso, e os olhos estão abertos vazios. Ela nega com a cabeça. Não, ele não está vivo. Não pensei que estivesse.
Fecho meus olhos. Os recipientes das facções estão impressos em minhas pálpebras, jogados de lado, seu conteúdo espalhado em uma pilha na rua. Os símbolos de nossa antiga vida, destruídos, um homem morto, outros feridos, e para quê?
Para nada. Para a visão fechada de Evelyn: uma cidade onde as facções são arrancadas das pessoas contra sua vontade.
Ela queria que tivéssemos mais de cinco opções. Agora não temos nenhuma.
Sei agora com certeza que não posso ser seu aliado, nunca serei.
— Temos que ir — Tris fala, e sei que não está falando da Avenida Michigan ou de levar Edward ao hospital; ela está falando sobre a cidade.
— Temos que ir — repito.
+ + +
O hospital improvisado na sede da Erudição cheira a produtos químicos, quase arenoso em meu nariz. Fecho os olhos e espero Evelyn.
Estou tão cansado que nem sequer quero sentar aqui, quero apenas agarrar minhas coisas e ir. Ela deve ter planejado essa manifestação, ou não teria sabido dela no dia anterior, e devia saber que ia sair do controle, com a tensão forte como está. Mas a fez de qualquer forma. Fazer uma grande declaração a respeito das facções era mais importante para ela do que a segurança, ou a possibilidade de vidas perdidas. Não sei porque me surpreendo.
Ouço o elevador se abrir, e sua voz:
— Tobias!
Ela se aproxima e pega minhas mãos, as quais estão cobertas de sangue. Seus olhos escuros se enchem de medo enquanto pergunta:
— Está ferido?
Está preocupada comigo. O pensamento é como uma pequena picada de agulha dentro de mim: ela deve me amar, para se preocupar comigo. Porém teria que ser capaz de amar para isso.
— O sangue é de Edward. Ajudei a trazê-lo aqui.
— Como ele está? — ela pergunta.
Balanço a cabeça.
— Morto.
Não sei mais como dizer.
Ela se encolhe, soltando minhas mãos, e senta em uma das cadeiras da sala de espera, minha mãe acolheu Edward depois que ele desertou da Audácia. Deve ter lhe ensinado a ser um guerreiro novamente, depois da perda de seu olho, sua facção e seu fundamento. Não sabia que eram tão próximos, mas posso ver agora, no brilho das lágrimas em seus olhos e no tremor de seus dedos. É a maior emoção que já a vi demonstrar desde que era garoto, desde que meu pai a jogou contra as paredes da nossa sala de estar.
Pressiono a memória para longe como se a enfiasse dentro de uma caixa demasiada pequena para ela.
— Sinto muito — falo. Não sei se falo a verdade ou se só digo para que ela pense que estou do seu lado. Logo acrescento numa tentativa: — Por que não me falou da manifestação?
Ela nega com a cabeça.
— Eu não sabia dela.
Está mentindo. Eu sei. Decido deixar passar. Para estar a seu lado, tenho que evitar conflitos com ela. Ou talvez eu não queira pressionar o assunto com a morte de Edward pesando sobre ambos. Às vezes é difícil dizer onde termina a estratégia e onde começa a simpatia por ela.
— Oh — coço minha orelha — pode entrar e vê-lo, se quiser.
— Não — ela parece distante. — Sei como são os corpos.
Está à deriva.
— Talvez eu devesse ir.
— Fique — ela fala, tocando a cadeira vazia entre nós — por favor.
Sento no lugar ao seu lado, e enquanto digo a mim mesmo que sou um agente disfarçado obedecendo sua suposta líder, me sinto como um filho reconfortando sua afligida mãe.
Sentamos com nossos ombros se tocando, nossas respirações no mesmo ritmo, e não dizemos uma palavra.
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