Tris
O mundo além do nosso está cheio de ruas, prédios escuros e fios elétricos caindo.
Não há vida nele, pelo o que posso ver; nenhum movimento, nenhum som, além do vento e dos meus próprios passos.
É como se a paisagem fosse uma frase interrompida, um lado pendente no ar, sem terminar, e do outro lado um tema completamente diferente. Do nosso lado desta frase há terra vazia, mato e trechos de estrada. Do outro estão os muros de concreto com meia dúzia de trilhos de trem entre eles. Mais adiante, há uma ponte de concreto construída através das paredes, e nas ruas estão edifícios de madeira, telhas e vidro, suas janelas escuras, com árvores crescendo ao redor, os galhos selvagens crescendo juntos.
Uma placa à direita diz 90.
— O que fazemos agora? — Uriah pergunta.
— Seguimos as ruas — respondo bem baixinho, de modo que só eu ouço.
+ + +
Saímos dos caminhões na brecha entre nosso mundo e o deles, quem quer que sejam “eles”. Robert e Johanna dão um breve adeus, dão a volta com os caminhões e seguem de volta para a cidade. Eu os assisto ir. Não posso me imaginar vindo até aqui e logo regressar, mas acredito que eles tenham o que fazer na cidade. Johanna tem uma rebelião de Convergentes para organizar.
O resto de nós – Tobias, Caleb, Peter, Christina, Uriah, Cara e eu – partimos com nossos escassos bens ao longo dos trilhos de trem.
As vias não são como as que há na cidade. Estão polidas e são elegantes, e em vez de madeiras perpendiculares aos trilhos, há barras de metal texturizado. Mais adiante vejo um dos trens que correm nesses trilhos, abandonado perto da parede. O metal é prateado na parte superior e frontal, como um espelho, com janelas pintadas ao longo dele. Quando nos aproximamos, vejo filas de bancos em seu interior com acolchoado marrom. As pessoas não devem subir e descer saltando destes trens.
Tobias caminha atrás de mim em um dos trilhos, com os braços estendidos ao lado para manter o equilíbrio. Os demais estão distribuídos pelo espaço – Peter e Caleb perto de uma parede, Cara próxima à outra. Ninguém fala muito, exceto para apontar algo novo, uma placa de um edifício ou uma pista de como era esse mundo, quando havia gente nele.
Os muros de concreto por si só chamam minha atenção: estão cobertos de fotos estranhas de pessoas com a pele tão lista e dificilmente parecem pessoas agora, ou garrafas coloridas com xampu e condicionador, vitaminas, ou substâncias desconhecidas dentro delas, palavras que não entendo – “vodka”, “Coca-Cola” e “energético”. As cores, as formas, as palavras e as imagens são tão estridentes, tão abundantes, que são fascinantes.
— Tris.
Tobias põe a mão em meu ombro, e me detenho. Inclina a cabeça e diz:
— Está ouvindo isso?
Ouço passos e as vozes baixas de nossos companheiros. Escuto minha própria respiração, e a dele. Mas por baixo disso ouço um rumor tranquilo, inconsistente em sua intensidade. Soa como um motor.
— Todo mundo pare! — grito.
Para minha surpresa, todos param, inclusive Peter, e nos reunimos no centro da via. Vejo Peter sacar sua pistola e sustentá-la, e faço o mesmo, ambas as mãos unidas para mantê-la estável, recordando a facilidade com a que costumava levantá-la. Essa facilidade se foi.
Algo aparece na curva adiante. Um caminhão preto, porém maior que qualquer caminhão que vi em minha vida, grande o suficientes para abrigar mais de uma dezena de pessoas em sua traseira coberta.
Estremeço.
O caminhão passa pela via e começa a parar a uns seis metros de nós. Posso ver o homem conduzindo, tem a pele escura e seu cabelo comprido se encontra amarrado atrás da cabeça.
— Deus — diz Tobias, e suas mãos se apertam ao redor da arma.
Uma mulher sai do assento dianteiro. Ela parece ter em torno da idade de Johanna, sua pele modelada cheia de sardas e seu cabelo tão escuro que é quase negro. Ela salta para o chão e ergue as mãos, de modo que possamos ver que está desarmada.
— Olá — ela fala, e sorri com nervosismo. — Meu nome é Zoe. Este é Amar.
Ela sacode a cabeça para um lado para indicar o motorista, que desceu do caminhão também.
— Amar está morto — Tobias fala.
— Não, não estou. Vamos, Quatro — Amar diz.
O rosto de Tobias se aperta com medo. Não o culpo. Todos os dias ele vê alguém de quem gosta voltando dos mortos.
Os rostos de todos que perdi passam rapidamente em minha mente. Lynn. Marlene. Will. Al.
Meu pai. Minha mãe.
O que seria se todos eles estivessem vivos, como Amar? O que seria se o véu que nos separa não é a morte, e sim uma cerca metálica e um campo aberto?
Não posso evitar ter esperança, mesmo sendo tão absurdo.
— Trabalhamos para a mesma organização que fundou sua cidade — Zoe fala enquanto olha para Amar. — A mesma organização de que Edith vinha. E...
Ela põe a mão no bolso e puxa uma fotografia parcialmente amassada. Estende o braço, e logo seus olhos encontram os meus na multidão de pessoas e armas.
— Creio que deveria ver isto, Tris — ela fala. — Darei um passo adiante e a deixarei no chão, logo voltarei. De acordo?
Ela sabe meu nome. Minha garganta se aperta com medo. Como sabe meu nome? E não só meu nome, meu apelido, o nome que escolhi quando me uni à Audácia?
— Está bem — respondo, mas minha voz está rouca, assim as palavras apenas escapam.
Zoe se adiante, põe a fotografia entre os trilhos e logo volta para sua posição original. Deixo a segurança de nosso número e me agacho perto da fotografia, olhando-a o tempo todo. Logo me ergo, a fotografia na mão.
Ela mostra uma fila de pessoas em frente a uma cerca metálica, os braços colocados sobre os ombros e as costas do próximo. Vejo uma versão infantil de Zoe, reconhecível por suas sardas, e algumas pessoas que não conheço. Estou a ponto de perguntar o motivo de eu estar vendo esta foto quando reconheço a jovem mulher de cabelo loiro claro, mais atrás, e um grande sorriso.
Minha mãe. O que minha mãe está fazendo junto com essas pessoas?
Algo – pesar, dor, nostalgia – me aperta o peito.
— Há muito o que explicar — Zoe fala. — Mas este não é realmente o melhor lugar para fazê-lo. Gostaríamos de leva-los a nossa sede. Fica perto daqui.
Ainda segurando a arma, Tobias toca meu pulso com a mão livre, aproximando a foto de seu rosto.
— Esta é sua mãe? — ele me pergunta.
— É mamãe? — Caleb pergunta.
Ele passa por Tobias para ver a foto por cima do meu ombro.
— Sim — respondo aos dois.
— Acredita que devemos confiar neles? — Tobias me pergunta em voz baixa.
Zoe não parece uma mentirosa, e não soa como uma tampouco. E se ela sabe quem sou, e sabia como nos encontrar aqui, provavelmente é porque tem algum tipo de acesso à cidade, o que significa que provavelmente está dizendo a verdade sobre estar com o grupo de que Edith Prior vinha. E ali está Amar, observando cada movimento de Tobias.
— Viemos aqui porque queríamos encontrar essas pessoas — digo. — Temos que confiar em alguém, não? Ou senão estaremos caminhando em um terreno abandonado, possivelmente morrendo de fome.
Tobias solta meu pulso e abaixa a arma. Eu faço o mesmo. Os outros fazem o mesmo pouco a pouco, com Christina abaixando a sua por último.
— Onde quer que formos, teremos que ter a liberdade de sair a qualquer momento — ela fala. — Tudo bem?
Zoe coloca a mão sobre o peito, bem em cima do coração.
— Te dou a minha palavra.
Espero, pelo bem de todos, que sua palavra valha.
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