sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 10

Aquela noite eu sonho que Christina está pendurada no corrimão novamente, dessa vez pelos seus pés, e alguém grita que apenas quem é Divergente pode ajudá-la. Então eu corro para ajudar a levantá-la, mas alguém me empurra sobre o precipício e eu acordo antes de atingir as rochas.
Suada, ensopada e assustada por causa do sonho, eu ando até o banheiro feminino para tomar banho e trocar de roupa. Quando retorno, a palavra careta está escrita em vermelho no meu colchão. A palavra está escrita menor ao longo do colchão, e de novo no travesseiro. Eu olho em volta, meu coração batendo de raiva.
Peter está parado atrás de mim, assobiando enquanto ele ajeita seu travesseiro. É difícil acreditar que eu odiaria alguém que parece tão bondoso – suas sobrancelhas se curvam para cima naturalmente, e ele tem um sorriso grande e branco.
— Decoração legal — ele diz.
— Eu fiz alguma coisa para você que não estou sabendo? — exijo. Eu pego a ponta do lençol e arranco-o do colchão. — Não sei se você percebeu, mas nós estamos na mesma facção agora.

— Eu não sei a que você está se referindo — ele fala calmamente. Então olha para mim. — E você e eu nunca estaremos na mesma facção.
Balanço minha cabeça enquanto retiro a fronha do meu travesseiro. Não fique nervosa. Ele quer obter uma resposta de mim; e não terá. Mas a cada vez que ele ajeita seu travesseiro, eu penso em chutá-lo no estômago.
Al chega, e eu nem preciso pedir para ele me ajudar; ele apenas vem até mim e me ajuda a trocar a roupa de cama. Eu terei que esfregar a armação da cama mais tarde. Al carrega a pilha de lençóis para o lixo e juntos andamos em direção à sala de treinamento.
— Ignore-o — Al diz. — Ele é um idiota, e se você não ficar nervosa, ele irá parar.
— É — toco minhas bochechas. Elas ainda estão quentes de raiva. Tento me distrair. — Você falou com o Will? Depois de... você sabe.
— Falei. Ele está bem. Ele não está bravo — Al suspira — agora serei lembrado como o primeiro cara que nocauteou alguém.
— Existem coisas piores para ser lembrado. Pelo menos eles não irão te hostilizar.
— Existem jeitos melhores também — ele me cutuca com seu cotovelo, sorrindo. — Primeira saltadora.
Talvez eu tenha sido a primeira a saltar, mas desconfio que essa será minha primeira e última fama na Audácia.
Eu limpo minha garganta.
— Um de vocês teria que ser nocauteado, sabe. Se não tivesse sido ele, seria você.
— Mesmo assim, eu não quero fazer de novo — Al balança sua cabeça, muitas vezes, muito rápido. — Eu realmente não quero.
Nós chegamos à porta da sala de treinamento e eu digo:
— Mas você tem que fazer.
Ele tem um rosto gentil. Talvez ele seja bondoso demais para a Audácia.
Olho para o quadro negro quando entro. Eu não tive que lutar ontem, mas hoje com certeza irei. Quando vejo meu nome, paro imediatamente.
Meu oponente é o Peter.
— Ah não — diz Christina, que está atrás de nós. Seu rosto está machucado, e parece que ela está tentando não demonstrar dor. Quando ela vê o quadro, amassa a faixa ao redor de seu punho. — Eles estão falando sério? Realmente irão fazer você lutar contra ele?
Peter é um palmo mais alto que eu, e ontem ele ganhou do Drew em menos de cinco minutos.
— Talvez você possa levar alguns golpes e fingir que ficou inconsciente — Al sugere. — Ninguém iria te culpar.
— É — eu digo — talvez.
Eu encaro meu nome no quadro. Minhas bochechas estão quentes. Al e Christina só estão tentando ajudar, mas o fato de eles não acreditarem, nem um pouquinho, que eu tenho uma chance contra Peter, me incomoda.
Estou no canto da sala, escutando um pouco da conversa de Al e Christina e vendo a luta do Edward com a Molly. Ele é mais rápido que ela, então tenho certeza de que Molly não irá ganhar hoje.
À medida que a luta acontece e minha irritação passa, começo a ficar apreensiva. Quatro nos disse ontem para explorarmos as fraquezas do nosso adversário, e tirando sua falta de simpatia, Peter não tem nenhuma fraqueza. Ele é alto o suficiente para ser forte, mas não tão grande para ser lento; ele tem uma boa visão para o ponto fraco de outras pessoas; ele é mau e não irá ter misericórdia de mim. Eu gostaria de dizer que ele está me subestimando, mas isso seria uma mentira. Eu sou tão inexperiente quanto ele suspeita.
Talvez Al esteja certo, e eu deva receber alguns golpes e fingir que estou inconsciente.
Mas eu não suporto não tentar. Não posso ficar por último.
Enquanto Molly se deita no chão, aparentando estar quase inconsciente graças ao Edward, meu coração está batendo tão forte que consigo sentir nas pontas dos meus dedos. Eu não lembro de como me posicionar. Não lembro como dar um soco. Ando até o centro da arena e meu estômago se revira quando Peter vem em minha direção, mais alto do que eu me lembrava. Ele sorri para mim. Eu me pergunto se vomitar nele me daria alguma vantagem.
Eu duvido.
— Você tá legal, Careta? — ele diz. — Parece que você está prestes a chorar. Talvez eu pegue leve se você chorar.
Sobre o ombro de Peter, vejo Quatro parado na porta com os braços cruzados. Sua boca está retorcida, como se tivesse acabado de engolir alguma coisa azeda. Próximo dele está Eric, que bate seu pé mais forte que a batida do meu coração.
Em um segundo Peter e eu estamos parados na arena, olhando um para o outro, e no próximo segundo Peter eleva suas mãos até seu rosto, com seus cotovelos curvados. Seus joelhos estão curvados também, como se ele estivesse pronto para pular.
— Vamos lá, Careta — ele diz, seus olhos brilhando. — Só uma pequena lágrima. Quem sabe se você implorar?
O pensamento de implorar a Peter por misericórdia quase me faz vomitar, e em um impulso eu o chuto na perna. Ou eu teria chutado a perna dele se ele não tivesse pegado meu pé e puxado pra frente, me desequilibrando. Minhas costas acertam o chão e eu puxo meu pé de volta, me levantando.
Tenho que me colocar de pé para ele não me chutar na cabeça. Essa é a única coisa em que consigo pensar.
— Pare de brincar com ela — Eric grita. — Eu não tenho o dia todo.
O olhar brincalhão de Peter desaparece. Seus braços se movem e dor explode na minha mandíbula e se espalha pelo meu rosto, fazendo minha visão escurecer e meus ouvidos zunirem. Eu pisco e vou para o lado enquanto a sala gira e gira. Não me lembro do seu punho vindo em minha direção.
Estou totalmente sem equilíbrio para fazer qualquer coisa a não ser me afastar dele o máximo que a arena permitir. Ele se lança sobre mim e me chuta forte no estômago. Seu chute tira o ar de meus pulmões e isso dói, dói tanto que eu mal consigo respirar, e eu simplesmente caio.
De pé! É o único pensamento na minha mente. Eu me coloco para cima, mas Peter já está adiantado. Ele agarra meu cabelo com uma mão e me soca no nariz com a outra. Essa dor é diferente, estalando no meu cérebro, turvando minha visão com diferentes cores: azul, verde, vermelho. Eu tento afastá-lo, minhas mãos agarradas em seus braços, e ele me dá outro soco, dessa vez na costela. Meu rosto está molhado. Meu nariz está sangrando. Mais vermelho, pelo jeito, mas estou tonta demais para reparar.
Ele me empurra e eu caio de novo, deslizando minhas mãos no chão. Eu tusso e me coloco de pé. Eu realmente deveria ficar no chão se a arena está girando tão rápido assim. E Peter gira ao meu redor; eu sou o centro de um planeta girando, a única coisa parada. Alguma coisa me acerta de lado e eu quase caio de novo.
De pé, de pé! Eu vejo uma sombra em minha frente, uma pessoa. Eu bato o mais forte que eu posso, e meu punho acerta alguma coisa macia. Peter mal reclama, e bate na minha orelha com a palma da sua mão, rindo. Eu ouço um zunido e pisco para tirar os pontos pretos dos meus olhos; como alguma coisa foi parar nos meus olhos?
Na minha visão periférica, vejo Quatro abrir a porta da sala e ir embora. Aparentemente, essa luta não é interessante o suficiente para ele. Ou talvez ele vá descobrir porque tudo está girando, eu não o culpo; quero saber por que também.
Meus joelhos cedem e o chão é frio contra minha bochecha. Alguma coisa bate com força do meu lado e eu grito pela primeira vez, um grito alto que pertence a outra pessoa, e não a mim, e bate de novo ao meu lado, e eu não consigo enxergar nada, nem o que está logo na minha frente. Alguém grita, “Chega!” e eu penso muito e ao mesmo tempo nada.

+ + +
Quando acordo, eu não sinto muita coisa, mas o zunido dentro da minha cabeça é confuso.
Eu sei que perdi, e a única coisa que mantêm a dor amenizada é a mesma coisa que está me fazendo ter dificuldade para pensar.
— O olho dela já está roxo? — alguém pergunta.
Eu abro um olho – o outro permanece fechado como se tivesse grudado com cola. Sentados na minha direita estão Al e Will; Christina está sentada na cama na minha esquerda com um pacote de gelo em sua mandíbula.
— O que aconteceu com o seu rosto? pergunto.
Meus lábios parecem inchados.
Ela dá risada.
— Olha só quem está falando. Nós deveríamos te arranjar um tapa-olho?
— Bom, eu já sei o que aconteceu com o meu rosto — digo. — Eu estava lá. Mais ou menos.
— Você acabou de fazer uma piada, Tris? — Will pergunta, sorrindo. — Nós deveríamos te dar mais analgésicos se você começar a fazer piadas. Oh, e respondendo sua pergunta – eu bati nela.
— Eu não acredito que você não conseguiu ganhar do Will — Al diz, balançando a cabeça.
— O quê? Ele é bom — ela diz, encolhendo os ombros. — Aliás, acho que finalmente aprendi como parar de perder. Eu só preciso impedir que as pessoas me batam na mandíbula.
— Sabe, era pra você ter descoberto isso um pouco antes — Will dá uma piscadela para ela. — Agora sei por que você não é da Erudição. Não é muito esperta, não é mesmo?
— Você está se sentindo bem, Tris? — Al pergunta.
Seus olhos são castanho-escuros, quase da mesma cor que a pele da Christina. Suas bochechas são ásperas, como se ele não se barbeasse, fosse ter uma barba espessa. Difícil de acreditar que ele só tenha dezesseis anos.
— Sim. Eu só queria ficar aqui para sempre para não ter que ver a cara do Peter de novo.
Mas eu não sei onde aqui é. Estou em um quarto alto e estreito, com uma fila de camas de cada lado. Algumas das camas têm cortinas entre elas. Do outro lado do quarto tem uma enfermeira. Deve ser aqui aonde os integrantes da Audácia vão quando estão doentes ou feridos. A mulher do outro lado nos olha sobre sua prancheta. Eu nunca vi uma enfermeira com tantos piercings na orelha. Alguns integrantes da Audácia devem ser voluntários para fazerem trabalhos que tradicionalmente pertencem a outras facções. Pois não faria sentido para a Audácia fazer o caminho até o hospital da cidade toda vez que se machucassem.
A primeira vez que fui para o hospital, eu tinha seis anos. Minha mãe caiu na calçada em frente a nossa casa e quebrou o braço. Ouvir seus gritos me fez chorar, mas Caleb apenas chamou meu pai sem dizer uma palavra. No hospital, uma mulher da Amizade em uma camisa amarela mediu a pressão da minha mãe e consertou seu braço com um sorriso.
Eu me lembro do Caleb dizendo a ela que iria curar rápido, que foi uma fratura bem pequena. Pensei que ele estava tentando acalmá-la, porque é isso que uma pessoa altruísta faz. Mas agora eu me pergunto se ele estava repetindo algo que ele já tivesse estudado; se todas as suas tendências a Abnegação eram só uma característica disfarçada da Erudição.
— Não se preocupe com o Peter — diz Will. — No mínimo ele vai apanhar do Edward, que ficou estudando luta desde os dez anos de idade. Por diversão.
— Ótimo — diz Christina. Ela vê seu relógio. — Acho que estamos perdendo o jantar. Você quer que nós fiquemos aqui com você, Tris?
Eu balanço a cabeça.
— Eu estou bem.
Christina e Will levantam, mas Al fica. Ele tem um cheiro distinto – doce e fresco, como sálvia e limão. Quando ele se revira durante a noite, sinto um pouco disso, e sei que ele está tendo um pesadelo.
— Eu só queria te contar que você perdeu o discurso do Eric. Nós vamos numa viagem de campo amanhã, para a cerca, aprender sobre os trabalhos da Audácia. Nós temos que estar no trem às oito e meia.
— Tudo bem — eu digo. — Obrigada.
— E não ligue muito pra Christina. Seu rosto não está tão mal assim — ele sorri um pouquinho. — Quer dizer, seu rosto está bom. Sempre foi bonito. Quer dizer... você parece corajosa. Audaciosa.
Seus olhos contornam os meus, e ele coça a nuca. O silêncio parece crescer entre nós. Foi uma coisa legal de se dizer, mas ele age como se significasse mais que apenas palavras. Espero que esteja errada. Eu não poderia me sentir atraída por Al – eu não poderia me sentir atraída por ninguém tão frágil. Eu sorrio o máximo que minha bochecha machucada deixa, esperando que isso diminua a tensão.
— Eu deveria te deixar descansar — ele se levanta para ir embora, mas antes de ele ir, seguro seu pulso.
— Al, você tá bem? — Ele me encara, e eu adiciono: — Quer dizer, está ficando mais fácil?
— Uh... — Ele dá de ombros. — Um pouco.
Ele puxa sua mão e a enfia no bolso. A pergunta deve tê-lo deixado envergonhado, porque eu nunca o vi tão vermelho antes. Se eu passasse minhas noites chorando no meu travesseiro, eu ficaria um pouco envergonhada também. Pelo menos quando eu choro, consigo esconder.
— Eu perdi para o Drew. Depois da sua luta com o Peter — ele olha para mim. — Eu levei alguns golpes, caí, e fiquei lá. Mesmo eu não tendo necessidade de ficar lá. Penso que já que ganhei do Will, se eu perdesse as demais lutas eu não seria o último colocado, e não teria que machucar mais ninguém.
— É isso mesmo o que você quer?
Ele olha para baixo.
— Eu simplesmente não consigo fazer. Talvez isso signifique que eu sou um covarde.
— Você não é um covarde só porque não quer machucar outras pessoas — eu digo, porque sei que é a coisa certa a se falar, mesmo que eu não tenha certeza de que era aquilo que eu queria dizer.
Por um momento, ambos ficamos parados, olhando um para o outro. Talvez eu realmente quisesse dizer aquilo. Se ele é um covarde, não é porque ele não gosta de lutar. Mas sim se ele se recusa a agir.
Ele me lança um olhar de dor e diz:
— Você acha que nossas famílias irão nos visitar? Eles dizem que famílias transferidas nunca comparecem no dia de visita.
— Eu não sei. Não sei se seria bom ou ruim se eles viessem.
— Acho que seria ruim — ele afirma. — É, já é difícil o bastante.
Ele afirma de novo, como se estivesse confirmando o que acabou de dizer, e vai embora.
Em menos de uma semana, os iniciados da Abnegação irão visitar seus familiares pela primeira vez desde a Cerimônia de Escolha. Eles irão para casa e sentar em suas salas de estar e interagir com seus pais pela primeira vez como adultos.
Eu esperava ansiosa por esse dia. Costumava pensar no que eu diria para a minha mãe e meu pai quando fosse permitida a fazer perguntas na mesa de jantar.
Em menos de uma semana, os recém-Integrantes da Audácia irão encontrar suas famílias na Caverna, ou no prédio de vidro que ficava acima, e fazer o que quer que os integrantes da Audácia fazem quando se reúnem. Talvez eles joguem facas sobre as cabeças uns dos outros – não iria me surpreender.
E os iniciados transferidos com pais misericordiosos poderão vê-los novamente também. Suspeito que meus pais não estarão entre eles. Não depois de ambos os filhos os abandonarem.
Talvez se eu pudesse ter contado a eles que eu era Divergente, e que estava confusa sobre o que escolher, eles teriam entendido. Talvez eles tivessem me ajudado a descobrir o que é Divergente, e o que significa, e porque é perigoso. Mas eu não contei esse segredo a eles, portanto nunca saberei.
Cerro meus dentes enquanto as lágrimas surgem. Eu estou farta. Estou farta de lágrimas e fraqueza. Mas não tem muito o que fazer para impedi-las.
Talvez eu tenha caído no sono, e talvez não. Mais tarde naquela noite, porém, eu saio do quarto e volto para o dormitório. A única coisa pior que deixar Peter ter me colocado no hospital, era deixar que eu passasse a noite lá.

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