sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 11

Na manhã seguinte, eu não ouço o alarme, os pés se arrastando, ou a conversa enquanto os outros iniciados se preparavam. Acordo com Christina balançando meu ombro com uma mão e batendo no meu rosto com a outra. Ela já usa uma jaqueta preta fechada até a sua garganta. Se tem contusões da noite passada, a sua pele escura as torna difícil de ver.
— Vamos lá. Levante, pois temos muita coisa para fazer.
Sonhei que Peter me amarrou a uma cadeira e me perguntou se eu era uma Divergente. Eu respondi que não, e ele me socou até eu dizer que sim. Acordei com as bochechas úmidas.
Eu quero dizer algo, mas tudo o que posso fazer é gemer. Meu corpo dói tanto que respirar machuca. Não ajuda que o ataque de choro da noite passada fez meus olhos incharem. Christina me oferece uma mão.
O relógio mostra oito horas. Nós devemos estar nos trilhos às oito e quinze.
— Eu vou correr e pegar algum café da manhã para nós. Você só... fique pronta. Parece que isso pode levar um tempo — ela diz.
Eu solto um grunhido. Para não me curvar, eu tateio a gaveta debaixo da minha cama procurando por uma camiseta limpa. Felizmente Peter não está aqui para ver a minha luta. Uma vez que a Christina sai, o dormitório está vazio.
Desabotoo a minha camisa e olho minha lateral nua, a qual está repleta de contusões. Por um segundo as cores me hipnotizam, com o verde, o azul escuro e o marrom. Eu me troco tão rápido quanto posso e deixo o meu cabelo solto porque não consigo levantar meus braços para amarrá-lo.
Olho para o meu reflexo no pequeno espelho na parte de trás da parede e vejo uma estranha. Ela é loira como eu, com um rosto estreito como o meu, mas é aí que a similaridade para. Eu não tenho um olho roxo, um lábio partido e uma mandíbula contundida. Eu não sou tão pálida quanto papel.
Ela não pode ser eu, embora ela se mova quando eu movo.
Nessa hora Christina volta, um muffin em cada mão, e estou sentada na beira da minha cama, olhando para os meus sapatos desamarrados. Eu terei que me encurvar para amarrá-los. Vai doer quando eu me inclinar.
Mas Christina só passa um bolinho para mim e se agacha na minha frente para amarrar os meus sapatos. Gratidão surge no meu peito, quente e pequena como uma dor. Talvez haja uma Abnegação em todos, até mesmo que eles não saibam.

Bem, em todos, menos em Peter.
— Obrigada.
— Bem, nós nunca chegaríamos a tempo se você os amarrasse por conta própria — ela diz. — Vamos lá. Você pode comer e andar ao mesmo tempo, certo?
Nós caminhamos rapidamente em direção à Caverna. O bolinho tem aroma de banana com nozes. Minha mãe assou pão desse jeito uma vez para dar aos sem facção, mas eu nunca o experimentei. Eu era muito velha para mimos naquela época. Ignoro o aperto no meu estômago que vem toda vez que penso em minha mãe, e meio caminho, meio troto atrás de Christina, a qual esquece que suas pernas são mais longas que as minhas.
Nós escalamos da cova ao prédio de vidro sobre ela e corremos para a saída. Cada impulso no meu pé manda uma dor para o meu pulmão, mas eu ignoro. Nós vamos aos trilhos assim que o trem chega, com a buzina estridente.
— Por que demorou tanto? — Will grita sobre o barulho.
— A Pernas Curtas aqui se transformou numa senhora idosa durante a noite — diz Christina.
— Oh, cale a boca — eu só estou meio brincando.
Quatro fica na frente do grupo, tão perto dos trilhos que se ele se mover até mesmo um centímetro para frente, o trem levaria seu nariz com ele. Ele pisa para trás para deixar alguns dos outros entrarem primeiro. Will sobe no vagão com certa dificuldade, se apoiando primeiro no seu estômago e então arrastando as suas pernas atrás dele. Quatro agarra a alça na lateral do vagão e se joga para dentro suavemente, como se não tivesse que trabalhar com mais de 1,80m.
Eu caminho ao lado do vagão, estremecendo, então ranjo meus dentes e agarro a alça na lateral. Isso vai doer.
Al me agarra debaixo dos braços e me levanta facilmente para dentro do carro. Dor surge na minha lateral, mas isso só dura um segundo. Vejo Peter atrás dele e minhas bochechas ficam quentes. Al estava tentando ser legal então eu sorrio para ele, mas eu queria que as pessoas não quisessem ser tão legais. Como se Peter já não tivesse munição o bastante.
— Se sentindo bem aí? — Peter pergunta, me dando um olhar de falsa simpatia – seus lábios curvam para baixo, suas sobrancelhas curvadas se franzem. — Ou você está fazendo uma pequena... Careta?
Ele explode em uma risada com a sua piada, e Molly e Drew se juntam a ele. Molly tem uma risada feia, toda resfolegante com seus ombros balançando, e Drew está silencioso, então até parece que está com dor.
— Estamos todos surpresos com seu incrível humor — Will comenta.
— Sim, você tem certeza de que o seu lugar não é com a Erudição, Peter?
Christina adiciona:
— Ouvi que eles não têm objeções a maricas.
Quatro, parado na porta, fala antes que Peter possa replicar.
— Eu terei que ouvir as suas brigas todo o caminho até a cerca?
Todos ficam quietos, e Quatro se vira de volta a abertura do vagão. Ele segura as alças em ambas as laterais, seus braços se esticando amplamente, e se inclina para frente, então o seu corpo está quase fora do vagão, embora seus pés estejam plantados no lado de dentro. O vento pressiona sua camisa em seu peito. Eu tento olhar além dele, por onde estamos passando – um mar de prédios desmoronando e abandonados que ficam menores conforme avançamos.
A cada segundo, embora, meus olhos voltam para Quatro. Eu não sei o que espero ver, ou o que quero ver, se alguma coisa. Mas faço isso sem pensar.
Eu pergunto a Christina:
— O que você acha que tem lá fora? — aceno para a porta. — Quero dizer, além da cerca.
Ela dá de ombros.
— Um monte de fazendas, eu acho.
— Sim, mas eu quero dizer além das fazendas. De onde os guardas da cidade vêm?
Ela mexe seu dedo para mim.
— Monstros!
Eu rolo meus olhos.
— Nós nem tínhamos guardas perto da cerca até cinco anos atrás — diz Will.
Eu também me lembro que meu pai foi um dos que votaram em tirar a Audácia do setor sem facção da cidade. Ele disse que os pobres não precisavam de policiamento; eles precisavam de ajuda, e nós podíamos dar isso a eles. Mas eu prefiro não mencionar isso agora, ou aqui. É uma das muitas coisas que a Erudição dá como evidência de incompetência da Abnegação.
— Oh, tudo bem — ele diz. — Aposto que você os via o tempo todo.
— Por que você diz isso? — eu falo, um pouco bruscamente.
Eu não quero ser associada aos sem facção.
— Porque você precisava passar pelo setor sem facção para chegar à escola, certo?
— O que você fez, memorizou o mapa da cidade por diversão? — diz Christina.
— Sim — Will respondeu, parecendo intrigado. — Você não?
Os freios do trem guincham, e todos nós vamos para frente conforme o trem desacelerava. Eu sou grata pelo movimento; torna ficar de pé mais fácil. Os prédios em ruínas se foram, substituídos por campos amarelos e trilhos de trem. O trem para debaixo de um toldo. Eu me abaixo para a grama, segurando a alça para me manter estável.
Na minha frente está uma cerca de arame com arame farpado enrolado ao longo do topo. Quando caminho para frente, vejo que ele continua mais longe do que eu posso ver, perpendicular ao horizonte. Além da cerca há um grupo de árvores, a maior parte delas morta, algumas verdes. Circulando do outro lado da cerca estão os guardas Audácia carregando armas.
— Sigam-me — diz Quatro.
Eu fico perto de Christina. Não quero admitir, nem mesmo para mim, mas me sinto mais calma quando estou perto dela. Se Peter tentar me insultar, ela irá me proteger.
Silenciosamente eu me repreendo por ser tão covarde. Os insultos de Peter não deviam me incomodar, e eu deveria me focar em melhorar no combate, não em quão mal fui ontem. E eu deveria estar disposta, se não capaz, de me defender, ao invés de contar com outras pessoas para fazer isso por mim.
Quatro nos guia em direção ao portão, que é tão grande como uma casa e abre para uma estrada fendida que nos leva para a cidade. Quando eu vim aqui com a minha família quando criança, nós montamos num ônibus naquela estrada e além, para as fazendas da Amizade, onde passávamos o dia colhendo tomates e suando através das nossas camisas.
Outra pontada no meu estômago.
— Se vocês não ficarem no top cinco do final da iniciação, provavelmente terminarão aqui — Quatro fala quando alcança o portão. — Uma vez que você é um guarda da cerca, há um potencial para progresso, mas não muito. Você poderá ir a patrulhas além das fazendas da Amizade, mas...
— Patrulhas com que propósito? — pergunta Will.
Quatro levanta seus ombros.
— Suponho que descobrirá isso se você se encontrar no meio deles. Como eu estava dizendo, na maioria das vezes, aqueles que guardam a cerca quando são jovens, continuam guardando a cerca. Se serve de conforto, alguns insistem que não é tão ruim quanto parece.
— Sim. Pelo menos nós não estaremos dirigindo ônibus ou limpando a bagunça das outras pessoas como os sem-facção — Christina sussurra no meu ouvido.
— Que posição você estava?
Eu não espero que Quatro responda, mas ele olha levemente para Peter e diz:
— Eu fui o primeiro.
— E você escolheu isso? — os olhos de Peter estão arregalados, redondos e verdes escuros. Eles pareceriam inocentes para mim se eu não conhecesse a pessoa terrível que ele é. — Por que você não escolheu um trabalho no governo?
— Eu não queria um — Quatro diz terminantemente.
Eu me lembro do que ele disse no primeiro dia sobre trabalhar na sala de controle, onde os integrantes da Audácia monitoram a segurança da cidade. É difícil para mim imaginá-lo lá, cercado por computadores. Para mim ele pertence à sala de treinamento.
Nós aprendemos sobre empregos de facções na escola. Os integrantes da Audácia têm opções limitadas. Nós podemos guardar a cerca ou trabalhar para a segurança da nossa cidade. Podemos trabalhar no composto dos integrantes da Audácia, desenhando tatuagens, fazendo armas ou até mesmo lutando uns com os outros para entretenimento. Ou podemos trabalhar para os líderes dos integrantes da Audácia. Que soa como a minha melhor opção.
O único problema é que a minha posição é terrível. E eu poderei estar sem-facção até o final do estágio um.
Nós paramos próximos ao portão. Alguns guardas da Audácia olham em nossa direção, mas não muitos. Eles estão muito ocupados empurrando as portas – que são duas vezes mais altas que eles e muitas vezes mais larga – que abrem para admitir um caminhão.
O homem dirigindo tem um chapéu, uma barba, e um sorriso. Ele para logo dentro do portão e sai. A parte traseira do caminhão é aberta, e alguns outros da Amizade sentam entre as pilhas de caixas. Eu espio as caixas – eles seguram maçãs.
— Beatrice? — Um garoto da Amizade diz.
Minha cabeça vira ao som do meu nome. Um da Amizade na traseira do caminhão fica de pé. Ele tem cabelo loiro e ondulado e um nariz familiar, largo na ponta e estreito em cima. Robert. Eu tento lembrá-lo na Cerimônia de Escolha e nada me vem a minha mente além do som do meu coração nos meus ouvidos. Quem mais se transferiu? Susan? Há iniciados na Abnegação esse ano? Se a Abnegação está caindo, a culpa é nossa – de Robert, Caleb e minha. Minha. Eu empurro o pensamento da minha mente.
Robert desce do caminhão. Ele usa uma camiseta cinza e um par de jeans azuis. Depois de um segundo de hesitação, se move em minha direção e me segura em seus braços. Eu enrijeço. Só na Amizade as pessoas abraçam umas as outras em comprimento. Eu não movo um músculo até ele me soltar.
O seu próprio sorriso desparece quando ele me olha novamente.
— Beatrice, o que aconteceu com você? O que aconteceu com seu rosto?
— Nada. Só treinamento. Nada.
— Beatrice? — Exige uma voz nasal perto de mim. Molly cruza seus braços e ri. — É esse o seu nome verdadeiro, Careta?
Eu a encaro.
— Do que você pensou que Tris fosse diminutivo?
— Oh, eu não sei... débil? — Ela toca o queixo. Se o seu queixo fosse maior, poderia se equilibrar com seu nariz, mas ele é minúsculo, quase recuando no seu pescoço. — Oh espere, isso não começa com Tris. Engano meu.
— Não há razão para contrariá-la — Robert diz suavemente. — Eu sou Robert, você é?
— Alguém que não se importa com qual é o seu nome.
— Por que você não volta para o seu caminhão? Nós não devemos fraternizar com os membros de outras facções.
— Por que você não se afasta da gente? — eu vocifero.
— Certo. Não iria querer ficar entre você e o seu namorado — ela diz. Ela se afasta sorrindo.
Robert me dá um olhar triste.
— Eles não parecem pessoas legais.
— Alguns deles não são.
— Você poderia ir para casa, sabia. Tenho certeza de que a Abnegação faria uma exceção para você.
— O que faz você achar que quero ir para casa? — pergunto, minhas bochechas quentes. — Acha que eu não posso aguentar isso ou algo assim?
— Não é isso — ele balança a cabeça. — Não é que você não possa, é que não deveria precisar. Você deveria ser feliz.
— Isso foi o que eu escolhi. É isso aqui — eu olho por cima do ombro de Robert. Os guardas Audácia parecem ter acabado de examinar o caminhão. O homem com barba volta para o assento do motorista e fecha a porta atrás dele. — Além disso, Robert. O grande objetivo da minha vida não é só... ser feliz.
— Mas não seria mais fácil se fosse assim?
Antes que eu possa responder, ele toca meu ombro e se vira em direção ao caminhão. Uma garota na traseira tem um banjo no seu colo. Ela começa a dedilhá-lo quando Robert entra no caminhão, e o caminhão começa a se mover, carregando o som do banjo e sua voz gorgolejante para longe de nós.
Robert acena para mim, e novamente eu vejo outra possível vida nos olhos da minha mente. Eu me vejo na traseira do caminhão cantando com a garota, embora eu nunca tenha cantado antes, rindo quando estou desafinada, escalando árvores para pegar maçãs, sempre segura e sempre em paz.
Os guardas Audácia fecham o portão e o trancam atrás deles. A fechadura é do lado de fora. Eu mordo meu lábio. Por que eles trancariam o portão pelo lado de fora e não de dentro? Até parece que eles não querem deixar algo do lado de fora, eles querem nos manter dentro.
Eu empurro o pensamento da minha mente. Isso não faz sentido.
Quatro se afasta da cerca, onde ele estava falando com uma guarda com uma arma equilibrada no seu ombro um momento antes.
— Estou preocupado que você tenha um talento especial para tomar decisões imprudentes — ele diz quando está a um pé de distância de mim.
Eu cruzo meus braços.
— Foi uma conversa de dois minutos.
— Não acho que um tempo menor torne isso menos imprudente — ele franze as suas sobrancelhas e toca a beira do meu olho contundido com a ponta de seu dedo. Puxo minha cabeça, mas ele não afasta a mão. Ao invés disso, ele inclina a sua cabeça e suspira. — Você sabe, se pudesse só aprender a atacar primeiro, poderia ir melhor.
— Atacar primeiro? — eu falo. — Como isso iria ajudar?
— Você é rápida. Se pudesse dar alguns bons golpes antes de eles saberem o que está acontecendo, você poderia ganhar — ele dá de ombros e sua mão cai.
— Estou surpresa que você saiba disso — falo baixinho — já que você saiu no meio da minha primeira luta.
— Não era algo que eu quisesse assistir.
O que isso quer dizer?
Ele limpa a garganta.
— Parece que o próximo trem está aqui. Hora de ir, Tris.

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