sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 12

Eu rolo sobre o meu colchão e suspiro. Faz dois dias desde a minha luta com Peter, e meus machucados estão virando roxo-azulados. Eu me acostumei com a dor cada vez que me movo, então agora me movo mais facilmente, embora ainda esteja longe de estar curada.
Mesmo que ainda esteja machucada, tive que lutar novamente hoje. Felizmente desta vez, fui emparelhada contra Myra, que não poderia dar um bom soco nem se alguém controlasse seu braço por ela. Eu dou um bom golpe nos primeiros dois minutos. Ela caiu e estava muito tonta para se levantar. Eu deveria sentir triunfo, mas não há triunfo em bater em alguém como Myra.

No segundo em que coloco a cabeça no travesseiro, a porta do dormitório se abre, e pessoas entram no quarto com lanternas. Eu sento, quase batendo a cabeça no beliche acima de mim, e olho através do escuro para ver o que está acontecendo.

 Todo mundo de pé!  Alguém ruge.
Uma lanterna ilumina a parte de trás da sua cabeça, fazendo os anéis em suas orelhas brilharem. Eric. Cercando-o há outros integrantes da Audácia, alguns deles que já vi na Caverna, alguns que nunca vi antes. Quatro está entre eles.

Seus olhos se movem para os meus e ficam ali. Eu encaro de volta e esqueço que ao meu redor os transferidos estão saindo de suas camas.

 Ficou surda, Careta?  exige Eric.
Eu saio do meu torpor e deslizo debaixo dos meus cobertores. Estou feliz por estar completamente vestida, porque Christina para próxima ao nosso beliche usando somente uma camiseta, suas longas pernas nuas. Ela cruza seus braços e encara Eric. Desejo, de repente, que eu pudesse encarar alguém tão audaciosamente usando tão poucas roupas, mas eu nunca seria capaz de fazer isso.

 Vocês tem cinco minutos para se vestir e nos encontrar nos trilhos  diz Eric.  Nós vamos para outra viagem de campo.
Enfio meus pés dentro dos meus tênis e corro, estremecendo, atrás de Christina no caminho para o trem. Uma gota de suor rola na parte de trás do meu pescoço conforme nós corremos pelas trilhas ao longo da parede da Caverna, empurrando membros passando na nossa subida. Eles não parecem surpresos em nos ver. Eu me pergunto quantas pessoas correndo freneticamente eles veem semanalmente.

Nós chegamos aos trilhos logo após os iniciantes nascidos na Audácia. Próximo ao trilho há uma pilha negra. Eu consigo ver um conjunto de grandes barris de armas e proteção de gatilho.

 Nós vamos atirar em algo?  Christina assobia na minha orelha.
Próxima à pilha, estão caixas que parecem munição. Eu me aproximo para ler uma das caixas. Está escrito “PAINTBALLS.”

Eu nunca ouvi algo assim antes, mas o nome é autoexplicativo – paint = tinta e balls = bola em inglês. Eu dou risada.

 Todo mundo agarre uma arma!  grita Eric.
Nós corremos em direção à pilha. Estou mais próxima a ela, então pego a primeira arma que acho, que é pesada, mas não pesada demais para eu carregar, e pego uma caixa de bolas de tinta. Enfio a caixa no meu bolso e lanço a arma nas minhas costas, de modo que a alça cruza o meu peito.

 Tempo estimado?  Eric pergunta a Quatro.
Quatro verifica o seu relógio.

 A qualquer minuto agora. Quanto tempo vai levar para você memorizar o horário do trem?
 Por que eu deveria, quando tenho você para me lembrar?  diz Eric, empurrando o ombro de Quatro.
Um círculo de luz aparece à minha esquerda, muito longe. Ele fica maior conforme se aproxima, brilhando contra o lado do rosto de Quatro, criando uma sombra na cavidade abaixo da sua bochecha.

Ele é o primeiro a entrar no trem, e eu corro atrás dele, sem esperar por Christina, Will ou Al me seguirem. Quatro se vira quando eu caio em passos largos ao lado do vagão, e estende uma mão. Eu agarro seu braço e ele me puxa para dentro. Até mesmo os músculos do seu antebraço são firmes, definidos.

Eu largo rapidamente, sem olhar para ele, e sento-me do outro lado do vagão.

Uma vez que todos estão dentro, Quatro fala:
 Nós seremos divididos em dois times para jogar captura da bandeira. Cada time terá uma mistura de seis membros, iniciantes nascidos na Audácia e transferidos. Um time irá sair primeiro e achará um lugar para esconder a sua bandeira. Em seguida, o segundo time irá descer e fazer o mesmo — o vagão balança e Quatro agarra o vão da porta para equilíbrio.  Esta é uma tradição da Audácia, então sugiro que a levem seriamente.
 O que nós ganhamos se vencermos?  Alguém grita.
 Não parece o tipo de pergunta que um integrante da Audácia perguntaria  Quatro diz, levantando uma sobrancelha.  Você ganha, é claro.
 Quatro e eu seremos os líderes dos times  Eric continua. Ele olha para Quatro.  Vamos dividir os transferidos primeiro, não?
Eu inclino minha cabeça para trás. Eles vão nos escolher, serei escolhida por último; posso sentir.

 Você primeiro  Quatro diz.
Eric dá de ombros.

 Edward.
Quatro inclina-se contra o vão da porta e acena. A luz da lua faz os seus olhos brilharem. Ele olha o grupo de transferidos brevemente, sem cálculos, e diz:

 Eu quero a Careta.
Uma corrente fraca de risadas enche o carro. Calor corre pelas minhas bochechas. Eu não sei se deveria ficar brava com o fato das pessoas rindo de mim ou lisonjeada pelo fato de ele ter me escolhido primeiro.

 Tem algo a provar?  pergunta Eric, com seu sorriso registrado.  Ou está escolhendo os mais fracos para o caso de você perder, terá alguém para botar a culpa?
Quatro dá de ombros.

 Algo assim.
Raiva. Eu devia definitivamente estar com raiva. Faço careta para as minhas mãos. Qualquer que seja a estratégia de Quatro, ela é baseada na ideia de que eu sou mais fraca que os outros iniciantes. Isso traz um sabor amargo na minha boca. Eu tenho que provar que ele está errado – tenho.

 Sua vez  diz Quatro.
 Peter.
 Christina.
Isso muda a sua estratégia. Christina não é uma das mais fracas. O que exatamente ele está fazendo?

 Molly.
 Will  Quatro escolhe, mordendo sua unha do polegar.
 Al.
 Drew.
 A única que sobrou é Myra. Então ela é minha  diz Eric.  Próximo, iniciantes nascidos na Audácia.
Eu paro de ouvir uma vez que eles terminaram com a gente. Se Quatro não está tentando provar algo com escolher a fraca, o que ele está fazendo? Eu olho para cada pessoa que ele escolheu. O que nós temos em comum?

Uma vez que eles estão na metade dos nascidos na Audácia, tenho uma ideia do que é. Com a exceção de Will e um casal de outros, todos nós compartilhamos o mesmo tipo físico: ombros estreitos, estrutura pequena. Todas as pessoas no time do Eric são largas e fortes. Ontem, Quatro me disse que eu era rápida. Nós seremos mais rápidos que o time do Eric, o que provavelmente vai ser bom para capturar a bandeira – nunca joguei antes, mas sei que é um jogo de velocidade em vez de força bruta. Eu cubro um sorriso com a mão. Eric é mais cruel que Quatro, mas Quatro é mais esperto.

Eles terminam de escolher os times, e Eric sorri para Quatro.

 O seu time pode sair em segundo  diz Eric.
 Não me faça nenhum favor  Quatro replica, e sorri um pouco.  Você sabe que eu não preciso deles para vencer.
 Não, eu sei que você irá perder não importa quando você desça  Eric fala, mordendo brevemente um dos anéis no seu lábio.  Pegue seu time magricela e desça primeiro, então.
Todos nós levantamos. Al me dá um olhar desamparado, e eu sorrio para ele no que espero ser uma forma tranquilizadora. Se algum de nós quatro tivesse que acabar no mesmo time que Eric, Peter e Molly, pelo menos é ele. Eles geralmente o deixam em paz.

O trem está prestes a mergulhar no chão. E estou determinada a pousar nos meus pés.

Logo antes de eu pular, alguém sacode o meu ombro e eu quase caio do trem. Não olho para trás para ver quem é – Molly, Drew, ou Peter, não importa qual deles. Antes que eles possam tentar novamente, eu pulo. Desta vez estou pronta para o impulso que o trem me dá, e corro mais alguns passos para difundi-lo e ganhar equilíbrio. Um forte prazer passa através de mim e eu sorrio. É um pequeno feito, mas me faz me sentir Audaciosa.

Um dos iniciados nascidos lá toca o ombro do Quatro e pergunta:

 Quando o seu time ganhou, onde vocês colocaram a bandeira?
 Dizer a você não estaria realmente dentro do espírito do jogo, Marlene  ele diz friamente.
 Vamos lá, Quatro  ela lamenta.
Ela lhe dá um sorriso paquerador. Ele tira a mão dela do seu braço, e por alguma razão eu me encontro sorrindo.

 Porto da Marinha  outro iniciante nascido na Audácia grita. Ele é alto, com pele marrom e olhos escuros. Bonito.  Meu irmão esteve no time vencedor. Eles deixaram a bandeira no carrossel.
 Vamos lá, então  sugere Will.
Ninguém objeta, então nós andamos para leste, em direção ao brejo que uma vez foi um lago. Quando eu era jovem, tentei imaginar o que pareceria se fosse um lago, sem cercas construídas na lama para tentar manter a cidade segura. Mas é difícil imaginar tanta água num só lugar.

 Nós estamos mais próximos do quartel-general da Erudição, certo?  pergunta Christina, batendo no ombro do Will com seu próprio.
 Sim. É ao sul daqui.
Ele olha por cima do seu ombro, e por um segundo sua expressão é de pura saudade. Então se foi.

Estou a menos de um quilômetro de distância do meu irmão. Faz uma semana desde que nós estivemos tão perto um do outro. Balanço a cabeça um pouco para tirar o pensamento da mente. Não posso pensar sobre ele hoje, não quando tenho que me focar em passar do estágio um. Não posso pensar nele em nenhum dia.


Nós andamos sobre a ponte. Ainda precisamos das pontes porque a lama embaixo delas é muito molhada para caminharmos. Eu me pergunto há quanto tempo o rio secou.
Uma vez que nós atravessamos a ponte, a cidade muda. Atrás de nós, a maior parte dos prédios estava em uso, e até aqueles que não estavam, pareciam bem-conservados. Em nossa frente está um mar de prédios desmoronando e vidro quebrado. O silêncio nessa parte da cidade é sinistra; parece um pesadelo. É difícil ver para onde estou indo, porque é depois da meia-noite e todas as luzes da cidade foram apagadas.

Marlene pega uma lanterna e ilumina a rua em nossa frente.

 Com medo do escuro, Mar?  O iniciante nascido na Audácia de olhos escuros, provoca.
 Se você quer pisar em vidro quebrado, Uriah, fique à vontade  ela vocifera. Mas ela desliga, de qualquer forma.
Percebi que parte de ser da Audácia é estar disposto a fazer as coisas mais difíceis para si mesmo, a fim de ser autossuficiente. Não há algo especialmente corajoso em vagar em ruas escuras sem lanternas, mas nós não devemos precisar de ajuda, até mesmo da luz. Devemos ser capazes de qualquer coisa. Eu gosto disso. Porque poderá vir um dia quando não há lanternas, não há armas, não há nenhuma mão orientadora. E quero estar pronta para isso.

Os prédios acabam logo antes do brejo. Uma tira de terra sai do brejo, e nascendo dele há uma roda branca gigante com dúzias de carros vermelhos pendurados em intervalos regulares. A roda gigante.

 Penso nisso. Pessoas costumavam andar naquela coisa. Por diversão  Will fala, balançando sua cabeça.
 Eles devem ter sido Audaciosas  eu falo.
 Sim, mas uma versão lamentável de Audácia  Christina ri.  Uma roda-gigante da Audácia não teria carros. Você seguraria fortemente com as suas mãos, e boa sorte para você.
Nós caminhamos ao lado do cais. Todos os prédios a minha esquerda estão vazios, suas placas demolidas e as janelas fechadas, mas é um tipo limpo de vazio. Quem quer que tenha deixado esses lugares, o deixaram por escolha e vontade. Alguns lugares na cidade não são assim.

 Eu te desafio a pular no pântano  Christina diz para Will.
 Você primeiro.
Nós chegamos ao carrossel. Alguns dos cavalos estão riscados e desgastados, suas caudas quebradas e celas lascadas. Quatro tira a bandeira do bolso.

 Em dez minutos o outro time irá escolher a sua localização  ele diz. — Sugiro que vocês tomem esse tempo para formar uma estratégia. Nós podemos não ser integrantes da Erudição, mas preparação mental é um dos aspectos do treinamento da Audácia. Provavelmente é o aspecto mais importante.
Ele está certo sobre isso. O que há de bom num corpo preparado se você tem uma mente dispersa?

Will pega a bandeira de Quatro.
 Algumas pessoas deviam ficar aqui e guardar, e algumas pessoas deviam sair e vigiar a localização do outro time  Will fala.
 Sim? Você acha?  Marlene arranca a bandeira dos dedos de Will.
 Quem colocou você no comando, transferido?
 Ninguém  Will responde — mas alguém tem que fazê-lo.
 Talvez nós devêssemos desenvolver uma estratégia mais defensiva. Esperar eles virem até nós, então nós os tiramos  sugere Christina.
 Essa é uma saída de maricas  diz Uriah.  Eu voto em todos nós irmos. Esconder a bandeira bem o bastante para que eles não a achem.
Todos disparam em conversação de uma vez, suas vozes mais altas a cada segundo. Christina defende o plano do Will; os iniciantes nascidos na Audácia votam na ofensiva; todos argumentam sobre quem deveria tomar a decisão. Quatro senta na beirada do carrossel, se inclinando contra o casco de plástico do cavalo. Seus olhos se elevam para o céu, onde não há estrelas, somente uma lua redonda espiando através de uma fina camada de nuvens. Os músculos dos seus braços estão relaxados; suas mãos descansam na parte de trás do pescoço. Ele parece quase confortável, segurando aquela arma no seu ombro.

Eu fecho meus olhos brevemente. Por que ele me distrai tão facilmente? Eu preciso me focar.

O que eu diria se pudesse gritar acima da discussão atrás de mim? Nós não podemos agir até descobrir a localização do outro time. Eles poderiam estar em qualquer lugar num raio de dois quilômetros, embora eu tenha que excluir o pântano como uma opção. O melhor jeito de achá-los não é argumentar sobre como procurar por eles, ou quantas pessoas mandar numa equipe de busca.

É escalar o mais alto possível.

Eu olho por cima do meu ombro para ter certeza de que ninguém está assistindo. Nenhum deles olha para mim, então ando na direção da roda-gigante com passos silenciosos e leves, pressionando a minha arma nas costas com uma mão para impedi-la de fazer barulho.

Quando olho para a roda-gigante do chão, minha garganta fica apertada. É mais alta do que pensei, tão alta que eu mal consigo ver os carros balançando no topo. A única coisa boa sobre a sua altura é que ela é feita para suportar peso. Se eu escalar, não irá desmoronar abaixo de mim.

Meu coração bate mais rapidamente. Eu realmente irei arriscar minha vida para vencer um jogo que os Audaciosos gostam de jogar?

Está tão escuro que eu mal consigo vê-los, mas quando olho para os grandes suportes enferrujados segurando a roda no lugar, vejo os degraus de uma escada. Cada suporte tem somente a largura dos meus ombros, e não há grades nas quais me segurar, mas escalar uma escada é melhor que escalar os aros da roda.

Eu agarro um suporte. É enferrujado, fino e parece poder desfazer-se em minhas mãos. Mas coloco peso no degrau mais baixo, testo-o e pulo para ter certeza de que ele irá me manter. O movimento machuca minhas costelas, e eu estremeço.

 Tris  uma voz baixa diz atrás de mim.
Eu não sei por que isso não me assusta. Talvez porque eu finalmente esteja me tornando Audaciosa, e prontidão é uma coisa que eu deveria desenvolver. Talvez porque a sua voz é baixa, suave e quase reconfortante.

Qualquer que seja a razão, eu olho por cima do meu ombro. Quatro está parado atrás de mim com a sua arma jogada sobre suas costas, assim como a minha.

 Sim?
 Eu vim para descobrir o que você acha que está fazendo.
 Estou procurando por um ponto mais alto — respondo.  Eu não acho que estou fazendo nada.
Eu vejo o seu sorriso no escuro.

 Tudo bem. Eu estou indo.
Eu paro por um segundo. Ele não olha para mim do mesmo modo que Will, Christina e Al olham algumas vezes – como se eu fosse muito pequena e muito fraca para ser útil para algo, e eles tem pena de mim por isso. Mas se ele insiste em vir comigo, provavelmente é porque duvida de mim.

 Eu ficarei bem  eu falo.
 Sem dúvidas  ele replica.
Eu não ouço o sarcasmo, mas sei que está lá. Tem que estar.

Eu escalo, e quando estou a alguns metros do chão, ele vem atrás de mim. Ele se move mais rapidamente do que eu, e logo as suas mãos acham o degrau quando os meus pés o deixam.

 Então me diga...  ele sussurra enquanto nós escalamos. Ele soa sem fôlego.  Para você, qual o propósito desse exercício? O jogo, eu quero dizer, não a escalada.
Eu olho para baixo, para o pavimento. Parece distante agora, mas não estou nem a um terço da subida. Acima de mim há uma plataforma, bem abaixo do centro da roda. Esse é o meu destino. Eu nem penso em como vou descer. A brisa que roçava as minhas bochechas mais cedo agora pressiona a minha lateral. Quanto mais alto nós vamos, mais forte ela fica. Preciso estar pronta.

 Aprender sobre estratégia  eu falo  trabalho em equipe, talvez.
 Trabalho em equipe  ele diz.
Uma risada sai de sua garganta. Soa como uma respiração apavorada.

 Talvez não  eu falo.  Trabalho em equipe não parece ser uma prioridade da Audácia.
O vento está mais forte agora. Eu pressiono mais próximo ao suporte branco para que eu não caia, mas isso torna a escalada difícil. Abaixo de mim, o carrossel parece pequeno. Mal posso ver meu time debaixo daquela tenda. Alguns deles estão faltando – uma equipe de busca deve ter saído.

Quatro fala:
 Deve ser uma prioridade. Costumava ser.
Mas eu não estou realmente escutando, porque a altura é vertiginosa. Minhas mãos doem por segurar os degraus, e minhas pernas estão tremendo, mas não tenho certeza do porquê. Não é a altura que me assusta – a altura me faz sentir viva; com energia, órgãos, veias e músculos, todos cantando no mesmo tom.

E então eu percebo o que é. É ele. Algo sobre ele me faz sentir como se eu estivesse prestes a cair. Me tornar líquida. Ou explodir em chamas.

Minha mão quase perde o próximo degrau.

 Agora me diga...  ele diz sob uma respiração resfolegante.  O que você acha que aprender estratégia tem a ver com... bravura?
A pergunta me lembra que ele é o meu instrutor, e eu devo aprender algo de tudo isso. Uma nuvem passa sobre a lua, e a luz muda sobre as minhas mãos.

 Isso... isso te prepara para a ação  eu falo finalmente.  Você aprende estratégia para que possa usá-la — eu o ouço respirar atrás de mim, alto e rápido.  Você está bem, Quatro?
 Você é humana, Tris? Estar a essa altura...  ele traga por ar.  Isso não te assusta?
Eu olho por cima do ombro para o chão. Se eu cair, vou morrer. Mas não acho que vou cair.

Uma rajada de vento pressiona meu lado esquerdo, jogando o peso do meu corpo para a direita. Eu engasgo e me agarro a um degrau, meu equilíbrio incerto. A mão fria do Quatro segura um dos meus quadris, um dos seus dedos achando uma tira de pele nua debaixo da bainha da minha camiseta.

Ele aperta, me estabilizando e me empurrando gentilmente para a esquerda, restaurando meu equilíbrio.

Agora eu não consigo respirar. Eu paro, olhando para as minhas mãos, minha boca seca. Sinto o fantasma de onde as suas mãos estavam, seus dedos longos e estreitos.

 Você está bem?  ele pergunta baixinho.
 Sim  eu falo, minha voz tensa.
Continuo escalando, quietamente, até eu alcançar a plataforma. A julgar pelas pontas cegas das hastes de metal, isso tinha grades, mas não mais. Eu me sento e me arrasto para o fim dela para que Quatro tenha um lugar para sentar. Sem pensar, coloco minhas pernas para o lado. Quatro, no entanto, agacha-se e pressiona suas costas no suporte de metal, respirando pesadamente.

 Você tem medo de altura  eu falo.  Como sobrevive no complexo da Audácia?
 Eu ignoro o meu medo. Quando tomo decisões, finjo que ele não existe.
Eu o encaro por um segundo. Não posso evitar. Para mim há uma diferença entre não estar com medo e agir apesar do medo, como ele faz.

Eu o encarei por muito tempo.

 O quê?
 Nada.
Olho para longe dele em direção à cidade. Tenho que me focar. Eu escalei aqui por uma razão.

A cidade é negra como tinta, e mesmo que não fosse, eu não seria capaz de ver muito mais longe. Um prédio está no meu caminho.

 Nós não estamos alto o bastante  eu falo.
Olho para cima. Acima de mim há um emaranhado de barras brancas, o andaime da roda. Se eu escalar cuidadosamente, posso encaixar meus pés entre os suportes e as barras e ficar a salvo. Ou tão a salvo quanto possível.

 Eu vou escalar — digo, ficando de pé.
Eu seguro uma das barras acima da minha cabeça e me empurro para cima. Dor lancinante atravessa meu lado machucado, mas eu a ignoro.

 Pelo amor de Deus, Careta  diz Quatro.
 Você não tem que me seguir — respondo, olhando para o labirinto de barras acima de mim.
Coloco meu pé no lugar onde duas barras se cruzam e me empurro para cima, agarrando outra barra no processo. Eu oscilo por um segundo, meu coração batendo tão forte que não posso sentir mais nada – embora eu tenha me misturado com batida do meu coração, me movendo no mesmo ritmo.

 Sim, eu preciso  ele diz.
É loucura, e eu sei disso. Uma fração de centímetro de erro, meio segundo de hesitação, e minha vida está acabada. Calor se espalha pelo meu peito e eu sorrio conforme agarro a próxima barra. Me empurro para cima, meus braços tremendo, e forço a minha perna abaixo de mim, então estou em outra barra. Quando me sinto estável, olho para baixo, para Quatro. Mas ao invés de vê-lo, eu vejo o chão.

Eu não posso respirar.

Imagino meu corpo em queda livre, batendo nas barras enquanto ele cai, e meus membros em ângulos quebrados no asfalto, assim como a irmã de Rita quando ela não conseguiu chegar ao telhado. Quatro agarra uma barra com cada mão e se impulsiona para cima, facilmente, como se estivesse se sentando na cama. Mas ele não está confortável ou natural aqui – cada músculo no seu braço está estendido. É uma coisa estúpida para pensar quando estou a trinta metros do chão.

Eu agarro outra barra, acho outro lugar para colocar meu pé. Quando olho para a cidade novamente, o prédio não está no meu caminho. Estou alta o bastante para ver o horizonte. A maior parte dos prédios é negra contra o céu marinho, mas as luzes vermelhas no topo estão acesas. Elas piscam quase tão rapidamente quanto as batidas do meu coração.

Abaixo dos prédios, as ruas parecem túneis. Por alguns segundos eu só vejo um cobertor negro em cima da terra na minha frente, somente algumas diferenças tênues entre prédios e céu, rua e chão. Então vejo uma pequena luz pulsante no chão.

 Vê aquilo?  eu falo, apontando.
Quatro para de escalar quando ele está bem atrás de mim e olha por cima do meu ombro, seu queixo próximo à minha cabeça. Seu fôlego treme contra minha orelha, e eu me sinto trêmula de novo, como quando estava subindo a escada.

 Sim  ele diz. Um sorriso se espalhando pelo seu rosto.
 Está vindo do parque, no fim do cais  ele diz.  Imaginei. Está cercado por espaço aberto, mas as árvores providenciam alguma camuflagem. Obviamente não o bastante.
 Certo  eu falo.
Eu olho por cima do meu ombro para ele. Nós estamos tão próximos que eu me esqueço onde estou; ao invés disso, noto que os cantos da sua boca declinam-se naturalmente, assim como os meus, e que ele tem uma cicatriz no queixo.

 Hum... — eu limpo minha garganta.  Comece a descer. Eu te seguirei.
Quatro acena e começa a descer. Sua perna é tão longa que ele acha um lugar facilmente para colocar o pé e guia seu corpo pelas barras. Até na escuridão, eu vejo que suas mãos estão brilhantes e vermelhas, tremendo.

Eu desço um pé, colocando meu peso em uma das barras. A barra quebra abaixo de mim e se solta, tilintando contra meia dúzia de outras barras no seu caminho e batendo contra o pavimento. Eu estou pendurada no andaime com meus dedos balançando no ar. Um suspiro estrangulado escapa de mim.

 Quatro!
Eu tento achar outro lugar para colocar meu pé, mas o próximo ponto de apoio está a muitos centímetros de distância, mais longe do que eu possa alcançar. Minhas mãos estão suadas. Eu me lembro de limpá-las nas minhas calças antes da Cerimônia de Escolha, antes do teste de aptidão, antes de cada momento importante, e suprimo um grito. Eu vou escorregar. Eu vou escorregar.

 Segure-se!  ele grita.  Só segure-se, eu tenho uma ideia.
Ele continua descendo. Está se movendo na direção errada; ele deveria vir na minha direção, não se afastar de mim. Eu encaro as minhas mãos, que estão apertando a barra estreita, tão firmemente que minhas juntas estão brancas. Meus dedos estão num tom vermelho escuro, quase roxo. Eles não vão durar muito.

Eu não vou durar muito.
Fecho meus olhos. Melhor não olhar. Melhor fingir que nada disso existe. Eu ouço os tênis de Quatro rangerem contra o metal e passos rápidos nos degraus da escada.

 Quatro!  eu grito.
Talvez ele tenha ido embora. Talvez ele tenha me abandonado. Talvez isso seja um teste da minha força, da minha coragem. Eu inspiro pelo meu nariz e expiro pela minha boca. Conto minhas respirações para me acalmar. Um, dois. Inspira, expira. Vamos lá, Quatro, é tudo que eu posso pensar. Vamos lá, faça algo.

Então eu ouço algo chiar e ranger. A barra que estou segurando estremece, e eu grito pelos meus dentes fechados e luto para manter meu aperto.

A roda está se movendo.

Ar envolve meus tornozelos e pulsos conforme o vento brota, como um gêiser. Eu abro meus olhos. Estou me movendo – em direção ao chão. Dou risada, tonta e histérica conforme o chão se aproxima mais e mais. Mas eu estou ganhando velocidade. Se não pular na hora certa, os carros se movendo e os andaimes de metal irão arrastar meu corpo e me levar com eles, e então eu realmente vou morrer.

Cada músculo do meu corpo fica tenso enquanto eu me precipito contra o chão. Quando consigo ver as rachaduras na calçada, eu largo, e meu corpo bate no chão, pés primeiro. Minhas penas desabam debaixo de mim e eu puxo meus braços, rolando o mais rápido que posso para o lado. O cimento arranha meu rosto, e eu me viro a tempo de ver um carro vindo na minha direção, como um sapato gigante prestes a me esmagar. Eu rolo novamente, e o fundo do carro desliza sobre meu ombro.

Estou salva.

Pressiono minhas mãos no rosto. Eu não tento me levantar. Se eu tentasse, tenho certeza de que cairia de volta no chão. Eu ouço passos, e as mãos de Quatro envolvem os meus pulsos. Eu o deixo tirar as minhas mãos dos meus olhos.

Ele envolve uma das minhas mãos perfeitamente entre as suas. O calor da sua pele sobrecarrega a dor dos meus dedos por segurar as barras.

 Você está bem?  ele pergunta, pressionando nossas mãos juntas.
 Sim.
Ele começa a rir.
Depois de um segundo, eu também dou risada. Com minha mão livre, me empurro para sentar. Estou ciente do pouco espaço entre a gente – quinze centímetros, no máximo. Aquele espaço parece carregado com eletricidade. Eu sinto que deveria ser menor.

Ele fica de pé, me puxando junto com ele. A roda continua se movendo, criando um vento que joga meu cabelo para trás.

 Você deveria ter me falado que a roda ainda funcionava  tento soar casual  não teríamos que escalá-la em primeiro lugar.
 Eu teria, se soubesse  ele diz.  Eu não poderia te deixar pendurada lá, então arrisquei. Vamos lá, hora de pegar a bandeira deles.
Quatro hesita por um momento e então pega o meu braço, as pontas dos seus dedos pressionando a parte interna do meu cotovelo. Nas outras facções, ele teria me dado tempo para recuperar, mas ele é da Audácia, então sorri para mim e começa a andar para o carrossel, onde os membros do nosso time guardam a nossa bandeira. E eu meio corro, meio coxeio ao lado dele. Ainda me sinto fraca, mas minha mente está acordada, especialmente com as mãos dele em mim.

Christina está empoleirada num dos cavalos, suas longas pernas cruzadas e suas mãos ao redor da vara de que segura o animal de plástico no lugar. Nossa bandeira está atrás dela, um triângulo brilhante no escuro. Três iniciantes nascidos na Audácia estão parados entre os animais sujos e desgastados. Um deles tem uma de suas mãos na cabeça do cavalo, e um olho riscado do cavalo me encara pelos seus dedos. Sentada na outra ponta do carrossel há uma Audaciosa mais velha, coçando a sua sobrancelha quatro vezes perfurada com o seu polegar.

 Para onde os outros foram?  pergunta Quatro.
Ele parece tão animado quanto eu, seus olhos arregalados com energia.

 Você ligou a roda?  a garota mais velha diz.  Que diabos você estava pensando? Você também poderia ter gritado Nós estamos aqui! Venha nos pegar!  ela balança a cabeça.  Se eu perder novamente esse ano, a vergonha será insuportável. Três anos consecutivos?
 A roda não importa  diz Quatro.  Nós sabemos onde eles estão.
 Nós?  Christina pergunta, olhando do Quatro para mim.
 Sim, enquanto o resto de vocês estava girando seus polegares, Tris escalou a roda-gigante para ver o outro time  ele diz.
 O que nós fazemos agora, então?  pergunta um iniciante nascido na Audácia através de um bocejo.
Quatro olha para mim. Lentamente, os olhos dos outros iniciantes, incluindo Christina, mudam dele para mim. Meus ombros ficam tensos, a ponto de dar de ombros e dizer que eu não sei, e então uma imagem do cais se estendendo abaixo de mim vem na minha mente. Eu tenho uma idéia.

 Dividir ao meio  eu falo.  Quatro de nós vão para o lado direito do cais, três para o esquerdo. O outro time está no parque no final do cais, então o grupo de quatro irá atacar enquanto o grupo de três se esgueira por trás do outro time e pega a sua bandeira.
Christina olha para mim como se ela não me reconhecesse. Eu não a culpo.

 Parece bom  diz a garota mais velha, batendo as suas mãos juntas.  Vamos acabar com isso, não?
Christina se junta a mim no grupo indo pela direita, junto com Uriah, cujo sorriso parece branco contra a sua pele de bronze. Eu não notei antes, mas ele tem uma tatuagem de cobra atrás de sua orelha. Eu encaro a cauda curvada ao redor do seu lóbulo por um momento, mas então Christina começa a correr e eu tenho que segui-la.

Tenho que correr duas vezes mais rápido para combinar os meus passos curtos com os seus longos. Conforme corro, percebo que somente um de nós irá pegar a bandeira, e não importa se é meu plano e minha informação que nos trouxe aqui, se eu não pegar a bandeira. Embora eu mal possa respirar como estou eu corro mais rápido, e estou nos calcanhares de Christina.

Empurro a minha arma contra o meu corpo, segurando o dedo sob o gatilho. Nós chegamos ao fim do cais e eu mantenho minha boca fechada para manter minha respiração alta presa. Desaceleramos para que nossos passos não sejam tão altos, e eu procuro pela luz oscilante novamente. Agora que estou no chão, é maior e mais fácil de ver. Eu aponto, e Christina acena, liderando o caminho na direção da luz.

Então ouço um coro de gritos, tão altos que eles me fazem pular. Ouço sopros de ar conforme as bolas de tinta saem voando e respingam quando acham seus alvos. Nosso time atacou, o outro time corre para nos enfrentar, e sua bandeira fica quase desprotegida. Uriah pega munição e atira no último guarda na coxa. A guarda, uma garota baixa com cabelo roxo, atira a a arma no chão numa birra.

Eu corro para encontrar Christina. A bandeira está pendurada no galho de uma árvore, alto sobre a minha cabeça. Eu tento pegá-la, e Christina também.

 Vamos lá, Tris — ela diz.  Você já é a heroína do dia. E sabe que não pode alcançá-la de qualquer maneira.
Ela me dá um olhar paternalista, o jeito como as pessoas olham de vez em quando para crianças quando elas agem como adultas, e pega a bandeira do galho. Sem olhar para mim, ela se vira e dá um pulo de vitória. A voz de Uriah se junta a dela e então eu ouço um coro de gritos à distância.

Uriah bate no meu ombro, e eu tento esquecer o olhar que Christina me deu. Talvez ela esteja certa; eu já me provei hoje. Não quero ser gananciosa; não quero ser como Eric, assustada com a força das outras pessoas.

Os gritos de triunfo são contagiantes, e eu levanto a minha voz para participar, correndo em direção aos meus colegas de time. Christina segura a bandeira para cima, e todos se aglomeram ao seu redor, agarrando seu braço para levantar a bandeira ainda mais alto. Eu não posso alcançá-la. Então fico de lado, sorrindo.

Uma mão toca meu ombro.

 Bom trabalho  Quatro diz baixinho.

+ + +


 Eu não acredito que perdi isso!  Will diz novamente, balançando a cabeça.
O vento vindo do vão da porta do trem joga seu cabelo para todas as direções.

 Você estava desempenhando o papel muito importante de ficar fora do caminho  diz Christina, radiante.
Al resmunga:

 Por que eu tinha que ficar no outro time?
 Porque a vida não é justa, Albert. E o mundo está conspirando contra você  Will responde.
 Ei, eu posso ver a bandeira novamente?
Peter, Molly e Drew sentam entre os membros no canto. Seus peitos e costas estão salpicados com tinta azul e rosa, e eles parecem abatidos. Eles falam baixo, jogando olhares para o resto de nós, especialmente Christina.

Esse é o benefício de não segurar a bandeira agora – eu não sou o alvo de ninguém. Ou pelo menos, não mais do que o usual.

 Então você escalou a roda-gigante, hein  diz Uriah.
Ele tropeça através do carro e se senta perto de mim. Marlene, a garota com o sorriso paquerador, o segue.

 Sim — respondo.
 Muito esperto de você. Esperto como... Erudição  Marlene diz.  Eu sou Marlene.
 Tris  eu falo.
Em casa, ser comparada com um Erudito seria um insulto, mas ela diz como um elogio.

 Sim, eu sei quem você é. O primeiro a pular costuma ficar na sua cabeça.
Faz anos desde que pulei de um prédio com o meu uniforme de Abnegação; faz anos.

Uriah pega uma das bolinhas de tinta de sua arma e a espreme entre seu polegar e dedo indicador. O trem guina para a esquerda e Uriah cai em cima de mim, seus dedos beliscando a bolinha até que um fluxo de tinta rosa malcheirosa pulveriza meu rosto.

Marlene cai em risadas. Eu limpo parte da tinta no meu rosto, lentamente, e então esfrego na bochecha dele. O cheiro de óleo de peixe flui através do trem.

 Eca!  ele aperta a bola para mim novamente, mas a abertura está do ângulo errado e ele espirra tinta em sua boca ao invés. Ele tosse e faz um som exagerado de risadas.
Eu limpo meu rosto com a manga. Estou rindo tanto que meu estômago dói.

Se toda a minha vida fosse assim, altas risadas, ações ousadas e o tipo de exaustão depois de um dia difícil mas gratificante, eu ficarei contente. Conforme Uriah raspa sua língua com as pontas dos dedos, percebo que tudo o que tenho que fazer é passar pela iniciação, e então essa vida será minha.

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