sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 13

Na manhã seguinte, quando marcho para a sala de treinamento, bocejando, um grande alvo está ao final da sala e perto da porta há uma mesa com facas espalhadas nela. Pontaria novamente. Pelo menos não machucará.
Eric está de pé no meio da sala, sua postura tão rígida que parece que alguém substituiu sua espinha por uma haste de metal. Vê-lo faz com que o ar pareça mais pesado, me esmagando. Pelo menos quando ele estava preguiçosamente contra a parede, eu podia fingir que ele não estava ali. Hoje não posso fingir.
— Amanhã será o último dia do estágio um — Eric diz. — Vocês continuarão lutando. Hoje, aprenderão a mirar. Cada um pegue três facas — a voz está mais profunda que o normal. — E prestem atenção enquanto Quatro demonstra a forma correta de atirá-las.
A princípio, ninguém se mexe.
— Agora!
Nós lutamos por adagas. Elas não são pesadas como armas, mas ainda as sinto estranhas em minhas mãos, como se eu não estivesse autorizada a segurá-las.
— Ele está de mau humor hoje — murmura Christina.
— E alguma vez ele esteve de bom humor? — murmuro de volta.
Mas sei o que ela quis dizer. Julgando pelo olhar venenoso que Eric dá a Quatro quando ele não está prestando atenção, a perda da noite passada deve tê-lo incomodado mais do que ele gostaria. Ganhar a captura da bandeira é uma questão de orgulho, e orgulho é importante na Audácia. Mais importante que razão ou bom senso.
Eu observo o braço de Quatro enquanto ele atira a faca. Na próxima vez, observo sua postura. Ele atinge o alvo todas as vezes, exalando quando solta a faca.
Eric ordena:
— Alinhem-se!
Pressa, eu penso, não ajudará. Minha mãe me disse isso quando eu estava aprendendo a tricotar. Tenho que pensar nisso como um exercício mental, não físico. Então passo alguns minutos treinando sem uma faca. Descobrindo a postura certa, aprendendo o movimento de braço certo.
Eric anda de lá para cá rapidamente atrás de nós.
— Eu acho que a Careta está recebendo golpes demais na cabeça! — comenta Peter, um pouco mais abaixo. — Ei, Careta! Você lembra o que é uma faca?
Ignorando-o, novamente eu pratico o lançamento com a faca em mãos, mas não o realizo. Eu bloqueio os passos inquietos de Eric, a zoação de Peter, a incômoda sensação de Quatro olhando para mim, e jogo a faca. Ela gira e gira, batendo violentamente contra o quadro. A lâmina não crava, mas eu sou a primeira pessoa a acertar o alvo.
Eu sorrio presunçosamente quando Peter erra de novo. Eu não consigo me segurar.
— Ei, Peter! — eu digo. — Lembra o que é um alvo?
Ao meu lado, Christina bufa e sua faca atinge o alvo.
Meia hora mais tarde, Al é o único iniciante que não acertou o alvo ainda. Suas facas caem no chão ou ricocheteiam na parede. Enquanto o resto de nós se aproxima do quadro para pegar nossas armas, ele caça as deles do chão.
Na próxima vez em que ele tenta e erra, Eric marcha em direção a ele e diz:
— Quão lento você é, Franqueza? Você precisa de óculos? Eu deveria trazer o alvo para mais perto de você?
O rosto de Al torna-se vermelho. Ele joga outra faca, e ela viaja alguns metros à direita do alvo. Ela gira e acerta a parede.
— O que foi isso, iniciante? — Eric diz em voz baixa, inclinando-se mais perto de Al.
Eu mordo meu lábio. Isso não é bom.
— Des… Deslizou — diz Al.
— Bom, eu acho que você deveria pegá-la — ele olha os outros iniciantes – todos haviam parado de lançar – e diz: — Eu mandei parar?
Facas começam a acertar o quadro. Nós já vimos Eric furioso antes, mas isso é diferente. O seu olhar é quase raivoso.
— Ir pegar? — Os olhos de Al estão arregalados. — Mas todos ainda estão lançando.
— E?
— E eu não quero ser atingido.
— Acho que você pode confiar que seus companheiros iniciantes miram melhor que você — Eric sorri um pouco, mas seus olhos continuam cruéis. — Vá pegar sua faca.
Normalmente Al não se opõe a qualquer coisa que a Audácia nos diz para fazer. Não acho que ele seja medroso: ele sabe que se opor é inútil. Mas dessa vez, Al aperta a mandíbula. Ele chegou ao limite de sua conformidade.
— Não.
— Por que não? — os olhos maliciosos de Eric fixam em Al. — Você está com medo?
— De ser esfaqueado por uma faca voadora? Sim, eu estou!
Honestidade é o seu erro. Não sua recusa, que Eric poderia ter aceitado.
— Todo mundo para! — Eric grita.
As facas param, assim como toda a conversa. Eu seguro minha pequena adaga com força.
— Todos para fora do ringue — Eric olha para Al. — Todos, menos você.
Eu largo a minha adaga e ela atinge o chão empoeirado com um ruído surdo. Sigo os outros iniciantes para a borda da sala. Eles ficaram na minha frente, ansiosos para ver o que faz meu estômago revirar: Al encarando a ira de Eric.
— Fique na frente do alvo — diz Eric.
As mãos grandes de Al tremem. Ele caminha de volta para o alvo.
— Ei, Quatro — Eric olha por cima de seu ombro. — Dá uma ajuda aqui, hein?
Quatro esfrega uma de suas sobrancelhas com a ponta da faca e aproxima-se de Eric. Ele tem círculos negros embaixo dos olhos e a boca tensionada – está tão cansado quanto nós.
— Você ficará em pé ali enquanto ele lança aquelas facas — Eric diz para Al — até que você aprenda a não recuar.
— Isso é realmente necessário? — Quatro pergunta.
Ele soa entediado, mas não parece entediado. Seu rosto e corpo estão tensos, em alerta.
Aperto minhas mãos em punhos. Não importa quão casual Quatro soe, a questão é o desafio. E Quatro não desafia Eric frequentemente.
Eric encara Quatro em silêncio. Quatro encara de volta. Segundos passam e minhas unhas afundam em minha palma.
— Eu tenho a autoridade aqui, lembra? — Eric diz em voz tão baixa que eu mal posso ouvi-lo. — Aqui e em qualquer lugar.
Cor aparece no rosto de Quatro, mas sua expressão não muda. Ele aperta as facas com mais força, seus nós tornaram-se brancos e ele vira seu rosto para Al.
Observo dos olhos escuros arregalados e as mãos trementes de Al à determinação na mandíbula de Quatro. Raiva borbulha em meu peito e estoura pela minha boca:
— Pare com isso.
Quatro vira a faca em sua mão, seus dedos movendo-se cuidadosamente pelo metal. Ele me dá um olhar tão duro que eu sinto como se ele fosse me transformar em pedra. Eu sei por que. Eu sou estúpida por me manifestar enquanto Eric está aqui; sou estúpida por me manifestar, definitivamente.
— Qualquer idiota pode ficar de pé em frente ao alvo — eu digo. — Isso não prova nada, exceto que você está nos assediando. Que, pelo o que recordo, é um sinal de covardia.
— Então deve ser fácil para você — Eric diz. — Se você estiver disposta a pegar o lugar dele.
A última coisa que eu quero fazer é ficar em pé em frente ao alvo, mas não posso voltar atrás. Eu não me dei outra opção. Passo entre a multidão de iniciantes e alguém empurra o meu ombro.
— E lá se vai seu belo rosto — sussurra Peter. — Oh, espere. Você não tem um.
Eu mantenho meu equilíbrio e caminho em direção a Al. Ele me saúda com a cabeça. Tento sorrir encorajadoramente, mas não consigo lidar com isso. Fico em frente ao quadro e minha cabeça mal chega ao centro do alvo, mas isso não importa. Eu olho para as facas de Quatro: uma em sua mão direita e duas na esquerda.
Minha garganta está seca. Eu tento engolir e depois olho para Quatro. Ele não é desleixado. Ele não me acertará. Eu ficarei bem.
Eu ergo o meu queixo. Não vou recuar. Se eu recusar, provo para Eric que isso não é tão fácil quanto eu disse que era; provo que sou covarde.
— Se você recuar — Quatro diz lentamente, com cuidado — Al fica no seu lugar. Entendido?
Eu assinto.
Os olhos de Quatro ainda me encaram quando ele levanta sua mão, puxa seu cotovelo para trás e lança a faca. Ela é apenas um brilho no ar, então eu ouço um baque surdo. A faca está enterrada no quadro, a meio metro de distância da minha bochecha. Eu fecho os meus olhos. Graças a Deus.
— Você acabou, Careta? — pergunta Quatro.
Eu me lembro dos olhos arregalados de Al e seus soluços silenciosos durante a noite e balanço minha cabeça.
— Não.
— Então abra os olhos — ele bate entre as sobrancelhas.
Eu o encaro, pressiono minhas mãos ao lado do meu corpo para que ninguém as veja tremer. Ele passa a faca da mão esquerda para a direita, e eu não vejo nada a não ser os olhos dele quando a segunda faca acerta o alvo acima de minha cabeça. Essa mais próxima que a última – eu a sinto pairar sobre meu crânio.
— Vamos, Careta — ele diz. — Deixe outra pessoa fazer isso.
— Cala a boca, Quatro!
Eu seguro o meu fôlego quando ele vira a última faca em sua mão. Vejo um brilho em seus olhos enquanto joga seu braço para trás e deixa a faca voar. Ela vem diretamente para mim, girando, lâmina sobre o punho. Meu corpo fica rígido. Dessa vez, quando a faca atingiu o quadro, minha orelha dói e sangue coça minha pele. Eu toco minha orelha. Ele a cortou.
E julgando pelo jeito que me olha, ele fez isso de propósito.
— Eu adoraria ficar e ver se o resto de vocês é tão ousado quanto ela — diz Eric, sua voz suave — mas acho que é o suficiente por hoje.
Ele aperta meu ombro. Seus dedos são secos e frios, e o olhar dele me reivindica, como se ele estivesse tomando para si o que eu fiz. Eu não devolvo o sorriso de Eric. O que eu fiz em nada tem a ver com ele.
— Eu deveria manter meus olhos em você — ele adiciona.
Sinto picadas de medo em meu peito, cabeça e mãos. Sinto como se a palavra “DIVERGENTE” estivesse marcada em minha testa e se ele me olhar por tempo suficiente, conseguirá lê-la. Mas ele apenas tira a mão de meu ombro e continua andando. Quatro e eu ficamos atrás. Eu espero até que a sala esteja vazia e a porta fechada para olhar para ele de novo. Ele anda em minha direção.
— A sua... — ele começa.
— Você fez aquilo de propósito! — eu grito.
— Sim, eu fiz — ele diz tranquilamente. — E você deveria me agradecer por te ajudar.
Eu cerro os dentes.
— Agradecer a você? Você quase esfaqueou minha orelha e passou o tempo inteiro zombando de mim. Por que eu deveria agradecê-lo?
— Sabe, estou ficando um pouco cansado de esperar você entender as coisas.
Ele me olha furiosamente, e mesmo quando ele me olha assim, seus olhos são atenciosos. A cor azul deles é peculiar, tão escuro que é quase negro com um pequeno pedaço de azul na íris esquerda, bem ao lado do canto do olho.
— Entender? Entender o quê? Que você quer provar para Eric o quão duro você é? Que você é um sádico igual a ele?
— Eu não sou sádico.
Ele não grita. Eu queria que ele tivesse gritado. Teria me assustado menos. Ele inclina seu rosto perto do meu, o que me lembra estar deitada a poucos centímetros das presas de um cachorro num ataque no teste de aptidão.
— Se eu quisesse te machucar, não acha que eu já teria feito?
Ele cruza a sala e crava a ponta da faca tão forte na mesa que ela fica lá, o cabo apontando para o teto.
— Eu... — começo a gritar, mas ele já foi.

Eu grito, frustrada, e limpo um pouco o sangue da minha orelha.

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