terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 11 - Não

Um redemoinho girou dentro da cabeça de Jess. Abriu a boca, mas estava seca e não saiu nenhuma palavra. Foi encarando um por um dos que estavam junto a ele, implorando ajuda.
Finalmente, o pai falou, enquanto sua mão grande e áspera alisava o cabelo da mulher, e os olhos estavam presos nela, a observar a carícia.
— Encontraram a menina dos Burkes hoje de manhã, lá no riacho.
— Não — disse ele. — Impossível. Ela não ia se afogar, nadava muito bem.
— Aquela corda velha em que vocês se balançavam... arrebentou — continuou o pai, baixinho. — Eles acham que ela deve ter batido com a cabeça em alguma coisa quando caiu.
— Não... — ele abanava a cabeça. — Não...
O pai olhou para ele.
— Estou morrendo de pena, meu filho.
— Não! — agora Jess gritava. — Eu não acredito no que vocês estão dizendo. É mentira!
Olhou em volta, de novo, desesperadamente, procurando alguém que confirmasse aquilo que ele dizia. Mas todas as cabeças estavam baixas, exceto a de May Belle, cujos olhos permaneciam arregalados de terror. “Ah, Leslie, Leslie, o que vai ser de mim se você estiver morta?”
— Não... — repetiu ele, olhando para May Belle. — É mentira. Leslie não morreu.
Virou-se e saiu correndo pela porta afora, deixando a esquadria de tela bater com força de encontro à casa. Correu pelo caminhozinho até a estrada principal, e depois continuou, em disparada, para oeste, na direção oposta a Washington e a Millsburg – e à velha casa dos Perkins. Um carro que se aproximava buzinou, desviou, e buzinou de novo, mas ele mal notou.
“Leslie... morta... amiga... corda... arrebentou... caiu... você... vocês... você...” As palavras estouravam dentro de sua cabeça, como milho numa panela de fazer pipoca.
“Deus... morta... você... Leslie... morta... você...” Continuou correndo até começar a tropeçar, mas mesmo assim ia em frente, com medo de parar, sabendo que enquanto corresse, de alguma maneira, estaria adiando o fato de Leslie estar morta.
Dependia dele. Tinha que continuar.
Atrás dele, ouviu o tuque-tuque-tuque do motor da caminhonete, mas não podia se virar. Tentou correr ainda mais depressa, porém o pai o ultrapassou e parou o veículo logo adiante, saltou da caminhonete e correu em sua direção. Pegou Jess no colo, como se o filho fosse um bebê. Por alguns segundos, Jess chutou, deu pontapés e lutou contra aqueles braços fortes. Depois, entregou-se ao entorpecimento que estava tomando conta dele por inteiro, surgido de algum cantinho do cérebro e tentando se espalhar.
No carro, Jess jogou todo o seu peso de encontro à porta, onde encostou a cabeça e a deixou ir batendo contra a janela.
O pai dirigia sem falar nada, embora uma vez chegasse a pigarrear, como se fosse dizer alguma coisa, mas depois olhou para Jess e ficou de boca fechada.
Quando chegaram em casa, o pai desligou o motor e ficou sentado, em silêncio, Jess podia sentir a insegurança do homem. Então abriu a porta e saiu, cada vez mais entorpecido. Entrou em casa e foi para a cama.

* * *

Estava acordado, subitamente trazido para a consciência, dentro da escuridão silenciosa da casa. Sentou-se, rígido e tremendo, embora estivesse completamente vestido, até mesmo com agasalho e tênis.
Ouvia a respiração das meninas menores na cama ao lado, um som estranhamente alto e irregular no meio do silêncio. Na certa, devia ter acordado por causa de algum sonho, mas não conseguia lembrar o que era. Só recordava a sensação de pavor que o acompanhara. Pela janela sem cortinas, via a Lua, meio achatada, com centenas de estrelas brilhantes dançando em volta, a lhe fazer companhia.
Veio-lhe à lembrança que alguém tinha lhe dito que Leslie estava morta. Mas agora sabia que isso era parte do tal pesadelo horrível. Leslie não podia estar morta, como ele não podia estar morto. Mas as palavras giravam em sua memória de um modo esquisito, como folhas carregadas por um vento gelado. Se ele se levantasse agora, e fosse até a velha casa dos Perkins, e batesse à porta, Leslie viria abrir, com o P.T. pulando em volta dos seus calcanhares, feito uma estrela em volta da Lua.
Era uma noite linda. Talvez pudessem correr pelo morro e pelos campos e ir até o riozinho, se balançar na corda e entrar em Terabítia.
Nunca tinham ido lá à noite. Mas com um luar daqueles, dava para enxergar perfeitamente o caminho até o castelo, e ele podia contar a ela como tinha sido seu dia em Washington. E pedir desculpas. Tinha sido um idiota, por não ter convidado Leslie para ir junto. Ele, Leslie e Miss Edmunds poderiam ter passado um dia maravilhoso – diferente, é claro, do que ele e Miss Edmunds passaram sozinhos, mas mesmo assim muito bom, perfeito do mesmo modo.
Miss Edmunds e Leslie gostavam muito uma da outra. Teria sido maravilhoso ter levado Leslie.
“Desculpe, Leslie, desculpe mesmo.”
Tirou o casaco e o tênis, se meteu debaixo das cobertas. “Fui um idiota por não ter convidado.”
“Tudo bem”, diria Leslie. “Eu já fui a Washington milhares de vezes.”
“Algum dia você já viu a maquete da caçada de búfalo?”
De algum jeito, era a única coisa em Washington que Leslie nunca tinha visto, e ele podia contar tudo a ela, descrever os animaizinhos bem pequeninos, despencando para a morte.
Sentiu um frio na barriga de repente.
Tinha algo a ver com o búfalo, com despencar, com morrer... com o motivo de ele nem ter lembrado de perguntar se Leslie podia ir com eles a Washington.
“Sabe de uma coisa esquisita?”
“O quê?” Leslie perguntou.
“Eu estava morrendo de medo de ir a Terabítia hoje de manhã.”
O frio ameaçava subir, da barriga para o coração, tomar o corpo todo. Ele se virou e deitou de bruços. Talvez fosse melhor não pensar em Leslie agora. Iria vê-la de manhã cedo e explicaria tudo. Poderia explicar melhor de dia, quando tivesse deixado para trás os efeitos daquele pesadelo que não conseguia lembrar.
Concentrou-se em recordar o dia em Washington, rememorando os detalhes dos quadros e das estátuas, se deixando levar de novo pelo som da voz de Miss Edmunds, recapitulando as palavras exatas que dissera, as respostas exatas que ela dera.
De vez em quando, de um cantinho no fundo da sua visão mental, ameaçava vir uma sensação de queda, mas ele a empurrava para longe com a lembrança de outro quadro ou outra conversa. Amanhã dividiria tudo isso com Leslie.
A coisa seguinte de que tomou conhecimento foi o sol entrando pela janela.
A cama das meninas pequenas era apenas um amontoado de cobertas desarrumadas, e vinha o som de conversas em voz baixa na cozinha.
Deus do céu! Coitada da Miss Bessie.
Esquecera completamente de ordenhá-la ontem à noite, e agora já devia ser tarde demais. Passou a mão nos tênis e enfiou os pés por cima deles, deixando os calcanhares de fora, sem nem se importar em amarrar os cadarços.
Com o barulho de sua entrada na cozinha, a mãe ergueu os olhos do fogão, rapidamente. Havia uma pergunta em sua expressão, mas ela apenas fez um gesto de cabeça para ele.
O frio foi começando a voltar de novo.
— Esqueci de Miss Bessie.
— Seu pai está ordenhando ela.
— Esqueci ontem de noite também.
Ela continuou concordando com a cabeça.
— Seu pai ordenhou para você — disse, mas não era uma acusação. — Está com vontade de comer alguma coisa?
Talvez fosse por isso que estava com aquela sensação tão estranha na barriga.
Não tinha comido nada desde o sorvete que Miss Edmunds comprara em Millsburg no caminho de casa. Brenda e Ellie, sentadas junto à mesa, olhavam fixamente para a cara dele. As menores, diante de um desenho animado na televisão, também se viraram para olhar, mas em seguida deram as costas.
Sentou-se no banco. A mãe pôs um prato de panquecas na sua frente. Nem se lembrava da última vez que ela fizera panquecas, coisa que ele adorava. Encheu-as de melado e começou a comer. Estavam deliciosas.
— Você nem está ligando, está? — perguntou Brenda, observando-o, do outro lado da mesa.
Ele olhou para ela sem entender, de boca cheia.
— Se Jimmy Dicks morresse, eu não ia conseguir engolir nada.
O frio subiu mais dentro dele, foi se desenrolando.
— Quer calar essa boca, Brenda Aarons? — ralhou a mãe, num salto, como se tivesse uma mola, erguendo a frigideira num gesto ameaçador.
— Ora essa, mãe, ele está aí sentado comendo panqueca como se não tivesse acontecido nada. Se fosse eu, estaria chorando.
Ellie olhou primeiro para a senhora Aarons e depois para Brenda.
— Menino não deve chorar, nem numa hora dessas. Não é, mãe?
— Só estou dizendo que não acho certo ele ficar aí sentado se empanturrando que nem um porco guloso.
— Estou lhe avisando, Brenda, se você não calar essa boca...
Ele ouvia todas elas falando, mas como se estivessem muito distantes, ainda mais longe do que a lembrança do sonho. Comeu, mastigou, engoliu, e quando a mãe serviu mais três panquecas em seu prato, comeu mais.
O pai entrou com o leite. Passou-o com cuidado para as jarras de cidra que estavam vazias e as guardou na geladeira. Depois lavou as mãos na pia e veio até a mesa. Quando passou por Jess, apoiou a mão de leve no ombro do menino. Não estava zangado por ter feito a ordenha.
Apenas de um modo muito vago, Jess tinha consciência de que os pais estavam olhando para ele. A senhora Aarons olhou de cara feia para Brenda e lançou ao senhor Aarons um olhar que significava que Brenda tinha que ser controlada e ficar em silêncio, mas Jess só pensava em como as panquecas estavam gostosas, e torcendo para a mãe ainda lhe servir mais alguma. De algum jeito, sabia que não devia pedir mais, mas ficou desapontado por ela não oferecer outras. Depois, achou que devia se levantar e sair, mas não tinha muita certeza de onde devia ir ou do que devia fazer.
— Sua mãe e eu achamos que você devia ir até a casa dos vizinhos, e dar os pêsames — disse o pai, limpando a garganta de um pigarro e hesitando. — Também acho que é conveniente você fazer isso... Já que você parece ser o único que realmente conhecia a menininha...
Jess tentou entender do que o pai estava falando, mas se sentia um imbecil.
— Que menininha? — murmurou, sentindo que não era essa a pergunta correta a fazer.
Ellie e Brenda engoliram em seco.
O pai se inclinou sobre a mesa e envolveu a mão de Jess com a sua, enorme. Olhou rapidamente para a mulher, de um jeito preocupado. Mas ela continuou ali parada, sem dizer nada, olhando com olhos de quem está sofrendo.
— A sua amiga Leslie morreu, Jess. Você tem de entender isso.
Jess tirou a mão de dentro da do pai. Levantou-se da mesa.
— Sei que não é fácil...
Jess ouviu o pai falando, enquanto entrava no quarto. Voltou dali a pouco, vestindo o agasalho.
— Pronto para ir agora? — perguntou o pai, levantando-se rapidamente.
A mãe tirou o avental e ajeitou o cabelo. May Belle se ergueu do tapete.
— Também quero ir — pediu. — Nunca vi uma pessoa morta.
— Não!
May Belle se sentou de novo, como se a voz da mãe tivesse lhe dado uma bofetada.
— Nós nem sabemos para onde ela foi levada, May Belle — disse o senhor Aarons com suavidade.

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