terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 12 - Perdido

Atravessaram o campo devagar e desceram o morro até a velha casa dos Perkins. Havia quatro ou cinco carros parados do lado de fora. O pai bateu na porta. Jess ouviu o P.T. latindo, vindo lá dos fundos da casa, e correndo para a porta.
— Quieto, P.T. — disse uma voz que Jess não conhecia. — Calma.
A porta foi aberta por um homem que estava meio curvado, tentando segurar o cachorro. Ao ver Jess, P.T. se soltou e pulou todo contente no colo do menino. Jess o pegou e fez carinho no pescoço do animal, como costumava fazer desde que o P.T. era filhote.
— Pelo que estou vendo, ele te conhece — disse o estranho com um meio-sorriso no rosto, um tanto esquisito. — Entre, por favor.
E chegou para trás, a fim de que os três pudessem passar.
Foram para o salão dourado, e estava tudo igualzinho, a não ser que ainda era mais bonito, porque o sol batia em cheio pelas janelas do sul. Quatro ou cinco pessoas que Jess nunca tinha visto estavam sentadas por ali, algumas falando em voz baixa, mas a maioria em silêncio. Não havia lugar para sentar, mas o estranho fora buscar umas cadeiras na sala ao lado. Os três se sentaram, empertigados, e esperaram, sem saber o que estavam esperando.
Uma senhora de idade se levantou devagar do sofá e veio para junto da mãe de Jess. Tinha os olhos vermelhos, sob uma cabeleira inteiramente branca. Estendeu a mão e disse:
— Sou a avó de Leslie.
A mãe apertou a mão dela, sem jeito.
— Senhora Aarons... — apresentou-se, falando baixinho. — Lá de cima do morro.
A avó de Leslie apertou a mão dela e do marido.
— Obrigada por terem vindo — disse. Depois se virou para Jess: — Você deve ser o Jess...
Ele concordou, só mexendo a cabeça.
— Leslie... — continuou ela, com os olhos se enchendo d’água — ... Leslie me falou muito sobre você.
Por um instante, Jess achou que ela ia dizer mais alguma coisa. Não queria ficar olhando para ela, então dedicou sua atenção a afagar o P.T., pendurado em seu colo.
— Desculpem... — prosseguiu ela, mas sua voz sumiu. — Não estou aguentando.
O homem que tinha aberto a porta se aproximou, e passou o braço em volta dela, levando-a para fora da sala. Enquanto os dois saíam, Jess ouviu que ela estava chorando.
Ainda bem que ela tinha saído. Era muito esquisito uma mulher daquelas chorando. Era como se a mulher que anuncia pasta de dentes na televisão de repente caísse no choro. Não combinava.
Olhou em volta, reparando em todos aqueles adultos com os olhos vermelhos.
“Olhem para mim,” queria dizer a eles. “Eu não estou chorando.” Uma parte dele deu um passo atrás e contemplou esse pensamento. Ele era a única pessoa de sua idade, entre todas as que conhecia, cuja melhor amiga tinha morrido. Isso o tornava importante. Na segunda-feira na escola, provavelmente todos os meninos iam ficar em volta dele cochichando, e iam tratá-lo com respeito – do jeito que tinham tratado Billy Joe Weems no ano passado, quando o pai dele morreu num desastre de automóvel.
Ele não ia precisar ficar falando com ninguém se não quisesse, e todos os professores iam ser especialmente atenciosos com ele. A mãe até ia conseguir que as irmãs o tratassem bem.
De repente, teve vontade de ver o corpo de Leslie sendo velado. Onde estaria? Na biblioteca? Ou será que a tinham levado para uma daquelas capelas funerárias em Millsburg? Será que a enterrariam vestida nos seus jeans azuis? Ou talvez naquela jardineira azul com blusa estampada de florzinhas, que ela usara na Páscoa. Era melhor. As pessoas podiam torcer o nariz para ela se estivesse de jeans, e ele não queria ninguém esnobando Leslie depois de morta.
Bill entrou na sala. O P.T. pulou do colo de Jess e correu para junto dele. O homem se inclinou e afagou o pescoço do animal.
Jess se levantou.
— Jess...
Bill se aproximou dele e o abraçou, como se ele fosse Leslie e não o amigo dela.
Bill o apertava tanto, que um botão do casaco dele estava machucando a testa de Jess, mas apesar disso o menino não se mexeu. Sentia o corpo de Bill tremendo, e tinha medo de levantar os olhos e ver o homem chorando, também.
Não queria ver Bill chorando. Queria ir embora, sair daquela casa. Estava lhe dando uma sensação de sufoco. Por que Leslie não estava ali para ajudá-lo a sair daquela situação?
Por que ela não aparecia de repente, correndo e fazendo todo mundo rir? “Você acha que é bom, acha? Morrer, fazer todo mundo chorar e ter que seguir em frente? Não é, não...”
— Ela gostava muito, muito de você, sabe?... — a voz de Bill era de quem estava chorando. — Uma vez ela me disse que, se não fosse por sua causa...
Ficou sem voz, não conseguiu continuar. Só depois de alguns instantes disse:
— Obrigado. Obrigado por ser um amigo tão maravilhoso para ela.
Nem parecia que era Bill falando.
Parecia alguém num filme antigo. O tipo da pessoa de quem Leslie e Jess iam rir e, mais tarde, imitariam. “Buáaaa, você foi um amigo tão maravilhoso para ela.” Ele não conseguia mais ficar sem se mexer, pelo menos um pouquinho, para afastar a testa daquela droga de botão. Ouviu o pai perguntar a Bill, baixinho, onde ia ser “a cerimônia fúnebre”.
E ouviu Bill responder, em sua voz quase normal, que tinham resolvido que o corpo ia ser cremado e iam levar as cinzas para a casa da família deles, na Pensilvânia, no dia seguinte.
“Cremada.” Alguma coisa fez um clique dentro da cabeça de Jess. Isso significava então que Leslie tinha ido embora mesmo. Para sempre. Virado cinza. Nunca mais tornaria a vê-la. Nem mesmo morta. Nunca.
Como é que tinham coragem de fazer uma coisa dessas? Leslie era dele. Mais dele do que de qualquer outra pessoa no mundo. Ninguém lhe perguntara nada. Ninguém ao menos lhe dissera. E agora, nunca mais ia ver Leslie de novo, e aquela gente toda só conseguia chorar. E não era por Leslie. Não estavam chorando por Leslie. Estavam chorando por eles mesmos. Só por eles mesmos. Se tivessem se importado a mínima com Leslie, jamais a teriam trazido para este lugar perdido. Teve que se controlar, apertando as mãos, de medo de dar um soco na cara de Bill.
Ele, Jess, era o único que se importava com Leslie de verdade. Mas Leslie o traíra. Foi morrer logo quando Jess mais precisava dela. Foi embora e o deixou para trás. Foi se balançar naquela corda só para lhe mostrar que não era covarde. Veja só, Jess Aarons. Na certa, bem agora, ela estava em algum lugar rindo dele. Zombando, como se ele fosse a senhora Myers. Ela o enganara. Deu um jeito para que ele deixasse de ser quem era e entrasse no mundo dela, depois, antes que se sentisse bem à vontade por lá – mas quando já era tarde demais para voltar – ela aprontava uma daquelas e o deixava solto, perdido, abandonado... como um astronauta andando a esmo na Lua.
Sozinho.

* * *

Mais tarde, quando pensava nesse dia, nem conseguia se lembrar de como nem quando saíra da velha casa dos Perkins, mas recordava que subiu o morro correndo, em direção à sua própria casa, com lágrimas de raiva escorrendo pelo rosto. Bateu a porta com toda força. May Belle estava parada ali perto, com os olhos arregalados.
— Você viu ela? — perguntou, excitada. — Viu o corpo dela estendido?
Ele deu um tapa na irmã. Na cara.
Como nunca tinha batido em ninguém, em toda a vida. Ela cambaleou para trás, soltando um gritinho. Ele caminhou até o quarto, e tateou debaixo do colchão até encontrar o papel e as tintas que Leslie tinha lhe dado no Natal.
Ellie estava parada na porta do quarto, xeretando. Ele a empurrou e passou por ela. No sofá, também, Brenda estava reclamando, mas o único som que realmente entrava em sua cabeça era o choro de May Belle.
Saiu pela porta da cozinha e desceu pelo campo até o riacho, sem olhar para trás. A água estava um pouco mais baixa do que na última vez. Por cima dela, do galho da macieira silvestre, pendia o pedaço partido da corda, se balançando suavemente.
“Agora eu sou o corredor mas rápido da 5ª série.”
Berrou alguma coisa que nem eram palavras, e jogou os papéis e o estojo com as tintas dentro da água suja. As tintas boiaram um pouco, descendo pela correnteza como se fossem barquinhos, mas o papel ficou girando, se encharcando na água enlameada, sendo tragado para o fundo e dando voltas e mais voltas. Ele ficou olhando, até tudo desaparecer.
Aos poucos, foi recuperando o fôlego, e o coração foi batendo mais devagar, menos selvagem. O chão ainda estava todo barrento, de tanta chuva, mas ele sentou assim mesmo. Não tinha um lugar para ir. Lugar nenhum. Nunca mais. Apoiou a cabeça no joelho.
— Isso que você fez foi uma bobagem muito grande — disse o pai, sentando ao lado dele no chão imundo.
— Estou pouco ligando. Pouco ligando!
Agora estava chorando. Chorando tanto, que mal conseguia respirar.
O pai puxou Jess para o colo, como se ele fosse Joyce Ann.
— Calma, meu filho, calma... — dizia, acariciando a cabeça do menino. — Pronto, pronto...
— Eu odeio ela... — repetia Jess entre soluços. — Odeio! Queria que ela nunca tivesse aparecido na minha vida.
O pai continuou alisando seu cabelo, sem dizer nada. Jess foi sossegando. Ficaram os dois olhando para a água.
Finalmente, o pai disse:
— É mesmo uma grande merda, não é?
Era o tipo de coisa que Jess podia imaginar que o pai dissesse para outro homem. Estranho, mas de alguma forma isso o consolou, fazendo com que se sentisse mais forte.
— Você acredita que as pessoas vão para o inferno, inferno mesmo, sabe como é?
— Você não pode estar dizendo isso porque está preocupado com Leslie Burke a esse respeito, está?
Parecia esquisito, mas de qualquer jeito...
— Bom, May Belle disse que...
— May Belle? May Belle não é Deus.
— Eu sei, mas como é que a gente sabe o que Deus faz?
— Pelo amor de Deus, meu filho, não seja bobo. Deus jamais ia mandar uma menininha para o inferno.
Nunca na vida ele pensara em Leslie Burke como uma menininha, mas mesmo assim, é claro que, para Deus, com toda certeza ela era. Só ia fazer onze anos em novembro.
Os dois se levantaram e começaram a descer o morro.
— Aquilo que eu disse, de odiar ela, pai... não é verdade. Nem sei o que me deu para falar uma coisa dessas.
O pai concordou com a cabeça, dizendo que entendia.
Todo mundo foi carinhoso com ele, até Brenda. Todo mundo, menos May Belle – que saía de perto, evitando-o como se tivesse medo de ter qualquer coisa a ver com ele. Jess queria pedir desculpas, dizer que foi sem querer, mas não conseguia. Estava cansado demais. Simplesmente, as palavras não saíam. E não bastavam. Ia ter que dar um jeito de consertar aquela situação, mas estava exausto demais para descobrir como.
De tarde, Bill veio até a casa dele. Iam viajar para a Pensilvânia, e ele queria saber se Jess podia tomar conta do cachorro até eles voltarem.
— Claro!
Ficou satisfeito por Bill pedir sua ajuda.
Estava com medo de ter magoado Bill quando fugiu de manhã. Queria também ter certeza de que Bill não o culpava por nada.
Mas não eram perguntas que podiam ser feitas com palavras.
Segurou o P.T. no colo e ficou acenando, enquanto o carrinho italiano entrava na estrada. Achou que viu os dois acenando de volta, mas estava longe demais e não dava para ter certeza.
A mãe nunca tinha deixado ele ter um cachorro, mas não objetou a que o P.T. ficasse na casa. Depois, o P.T. pulou para a sua cama e Jess dormiu a noite toda com o corpo do P.T. encolhidinho, junto ao peito.

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