sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 15

Dia da Visita. No segundo em que abro meus olhos, eu lembro. Meu coração dispara e despenca quando vejo Molly andando com dificuldade pelo dormitório, seu nariz roxo entre a bandagem. Quando a vejo saindo, procuro por Peter e Drew. Nenhum dos dois está no dormitório, então me troco rapidamente. Desde que eles não estejam aqui, não me importo com quem me veja com roupa íntima. Não mais.
Todos se vestem em silêncio. Nem mesmo Christina sorri. Todos sabemos que podemos ir ao andar da Caverna, procurar em todos os rostos e nunca encontrar um que nos pertença.
Eu faço minha cama com os cantos bem apertados, como meu pai me ensinou. Quando tiro um fio de cabelo do travesseiro, Eric entra.
— Atenção! — ele anuncia, tirando os cabelos dos olhos. — Eu quero dar a vocês alguns avisos. Se por algum milagre suas famílias vierem visitá-los... — Ele olha para nossos rostos e sorri presunçoso — ... o que eu duvido, é melhor não parecerem muito apegados. Isso fará que seja mais fácil para vocês e para eles. Nós também levamos a frase facção antes do sangue muito a sério aqui. Se apegar a família sugere que você não está totalmente satisfeito com sua facção, o que seria vergonhoso. Entendido?
Eu entendo. Ouço a ameaça na voz afiada de Eric. A única parte significativa do discurso que Eric deu foi a última: Nós somos Audácia, e temos que agir como a Audácia.
No caminho para fora do dormitório, Eric me para.
— Talvez eu tenha subestimado você, Careta. Você fez bem ontem.
Eu o encaro. Pela primeira vez desde que bati em Molly, a culpa bate em meu estômago.
Se Eric pensa que eu fiz alguma coisa certa, é porque eu fiz errado.
— Obrigada — eu digo.
Saio do dormitório.
Uma vez que meus olhos se ajustam a tênue luz do corredor, vejo Christina e Will mais à frente. Will rindo, provavelmente de uma piada que Christina contou. Eu não tento alcançá-los. Por alguma razão, sinto que seria um erro interrompê-los.
Al está sumido. Eu não o vi no dormitório e ele não está andando para a Caverna. Talvez já esteja lá.
Corro meus dedos pelo meu cabelo e faço um coque. Verifico minhas roupas: estou encoberta? Minhas calças estão justas e minha clavícula está aparecendo. Eles não vão aprovar.
Quem se importa se eles aprovam? Eu aperto meu maxilar. Essa é a minha facção agora. Essas são as roupas que minha facção usa. Eu paro imediatamente antes do final do corredor.
Um grupo de famílias está em pé na Caverna, a maioria deles famílias da Audácia com seus iniciados. Eles ainda me são estranhos: a mãe com sobrancelha furada, o pai com o braço tatuado, o iniciado com o cabelo roxo. Uma unidade familiar sadia. Eu noto Drew e Molly sozinhos em uma extremidade da sala e oculto um sorriso. Ao menos, as famílias deles não vieram.
Mas a de Peter veio. Ele está ao lado de um homem alto com sobrancelhas grossas e uma mulher de aparência humilde com cabelo vermelho. Nenhum de seus pais se parece com ele. Os dois usam calças negras e blusas brancas, típica roupa da Franqueza, e seu pai fala tão alto que eu quase posso ouvi-lo de onde estou. Eles sabem que tipo de pessoa o filho deles é?
E de novo... Que tipo de pessoa eu sou?
Do outro lado da sala, Will está com uma mulher em um vestido azul. Ela não parece velha o suficiente para ser a mãe dele, mas ela tem a mesma ruga entre as sobrancelhas que ele e o mesmo cabelo dourado. Ele falou sobre ter uma irmã uma vez, talvez seja ela.
Próximo a ele, Christina abraça uma mulher de pele escura com as roupas preta e branca da Franqueza. Atrás de Christina está uma garota jovem, também da Franqueza. Sua irmã mais nova.
Será que eu deveria me incomodar em dar uma olhada na multidão a procura de meus pais? Eu poderia dar meia volta e voltar para o dormitório.
Então eu a vejo. Minha mãe está sozinha perto da grade com suas mãos para frente. Ela nunca pareceu tão deslocada com suas calças cinza e um casaco abotoado até o pescoço de mesma cor, seu cabelo enrolado e seu rosto plácido. Eu vou em direção a ela, lágrimas saltando de meus olhos. Ela veio. Ela veio por mim.
Eu ando mais rápido. Ela me vê e por um segundo sua expressão é vazia, como se ela não soubesse quem eu sou. Depois seus olhos se iluminam e ela abre seus braços. Ela cheira como sabão e amaciante.
— Beatrice — ela sussurra.
Ela corre a mão por todo meu cabelo.
Não chore, eu digo para mim. Eu a seguro até que possa tirar a umidade dos meus olhos, então chego para trás para olhá-la de novo. Eu sorrio sem mostrar meus dentes, igual a ela. Ela toca minha bochecha.
— Olhe para você — ela diz. — Você está forte. — Ela coloca seu braço sobre meus ombros. — Diga-me como você está.
— Você primeiro — os velhos hábitos estão de volta.
Eu deveria deixá-la falar primeiro. Não deveria deixar a conversa focada em mim por muito tempo. Deveria ter certeza de que ela não precisava de alguma coisa.
— Hoje é uma ocasião especial — ela diz. — Eu vim para te ver, então vamos falar principalmente sobre você. Esse é o meu presente para você.
Minha mãe altruísta. Ela não deveria me dar presentes, não depois que eu deixei meu pai e ela. Ando com ela até a grade com vista para o abismo, feliz por estar com ela. Os últimos dias têm sido mais sem sentimento do que eu imaginava. Em casa, nós não nos tocamos frequentemente, o máximo que vi meus pais fazerem foi dar as mãos sobre a mesa de jantar, mas era mais do que isso, mais do que agora.
— Apenas uma pergunta — sinto meu pulso na garganta. — Onde está papai? Ele está visitando o Caleb?
— Ah — ela balança a cabeça. — Seu pai teve que ir trabalhar.
Eu olho para baixo.
— Você pode me dizer se ele não quis vir.
Os olhos delas passeiam por meu rosto.
— Seu pai tem sido muito egoísta ultimamente. Isso não significa que ele não te ame, eu prometo.
Olho pra ela atordoada Meu pai... egoísta? Mais surpreendente do que o rótulo, foi ela ter atribuído isso a ele. Eu não posso dizer, olhando para ela, se ela está com raiva. Eu não espero poder, mas ela deve estar. Se ela o chama de egoísta, ela deve estar com raiva.
— E Caleb? Você vai visitá-lo mais tarde?
— Eu gostaria de poder — ela responde — mas a Erudição proibiu visitantes da Abnegação de entrar em seus recintos. Se eu tentar, serei expulsa do local.
— O quê? — eu exijo. — Isso é terrível. Por que fariam isso?
— As tensões entre nossas facções são maiores do que nunca. Eu gostaria que não fosse assim, mas há pouco que eu possa fazer por isso.
Eu penso em Caleb entre os novatos da Erudição, procurando nossa mãe pela multidão e sinto uma pontada em meu estômago. Parte de mim ainda está com raiva dele por manter tantos segredos de mim, mas eu não o quero machucado.
— Isso é terrível — repito.
Olho para o abismo.
Em pé ao lado da grade está Quatro. Embora não seja mais um novato, a maioria da Audácia usa esse dia para se reunir com seus familiares. Ou sua família não gosta de se reunir ou ele não era inicialmente da Audácia. De que facção ele teria vindo?
— Ali está um dos meus instrutores — eu me inclino para mais perto dela e digo: — ele é um pouco intimidante.
— Ele é bonito.
Me pego concordando sem pensar. Ela ri e passa seu braço sobre meus ombros. Eu quero levá-la para longe dele, mas justamente quando estou a ponto de dizer para irmos a outro lugar, ele olha por cima dos ombros.
Seus olhos arregalam-se ao ver minha mãe. Ela oferece sua mão.
— Olá, meu nome é Natalie — diz ela. — Sou a mãe de Beatrice.
Eu nunca vi minha mãe apertar a mão de ninguém. Quatro aceita a mão dela, parecendo rígido, agita-a duas vezes. O gesto parece antinatural para ambos. Não, Quatro não seria originalmente Audacioso se não apertasse as mãos facilmente.
— Quatro — ele diz. — É um prazer conhecê-la.
— Quatro — minha mãe repete, sorrindo. — É um apelido?
— Sim — ele não elabora. Qual é o nome real dele? — Sua filha está indo bem aqui. Eu a tenho supervisionado.
Desde quando “supervisionar” inclui jogar facas em mim e me repreender em cada oportunidade?
— Isso é bom de ouvir. Sei algumas coisas sobre a iniciação da Audácia e fiquei preocupada com ela.
Ele olha para mim e seus olhos vagam pela minha face: do nariz à boca até o queixo, e então diz:
— Você não deveria se preocupar.
Eu não posso disfarçar o avermelhado de minhas bochechas. Espero que não seja notável.
Ele está apenas tranquilizando-a porque é minha mãe ou ele acha que eu sou capaz? E o que significou aquele olhar?
Ela inclina a cabeça.
— Você me parece familiar por algum motivo, Quatro.
— Eu não posso imaginar por quê — ele retruca, sua voz repentinamente fria — não tenho o hábito de me associar com a Abnegação.
Minha mãe ri. Ela tem uma risada clara: metade ar, metade som.
— Algumas pessoas o fazem por esses dias. Eu não tomo como ofensa.
Ele parece relaxar um pouco.
— Bom, deixarei-as com sua reunião.
Eu e minha mãe o assistimos ir. O barulho do rio enche meus ouvidos. Talvez Quatro tenha sido da Erudição, o que explica o porquê dele odiar a Abnegação. Ou talvez ele acredite que nos artigos que a Erudição soltou sobre nós – eles, eu me lembro. Mas foi gentil da parte dele dizer a ela que eu estava indo bem, quando eu sei que ele não acredita.
— Ele é sempre assim? — pergunta ela.
— Pior.
— Você fez muitos amigos? — ela pergunta.
— Alguns — digo.
Eu olho por cima do meu ombro para Will e Christina e suas famílias. Quando Christina pega o meu olhar, ela acena para mim sorrindo, então minha mãe e eu cruzamos a sala.
Antes de alcançar Will e Christina, no entanto, uma pequena mulher redonda com uma camisa preta e branca listrada toca o meu braço. Eu estremeço, resistindo à vontade de bater na mão dela.
— Com licença — diz ela. — Você conhece meu filho? Albert?
— Albert? — repito. — Ah, você quer dizer Al? Sim, o conheço.
— Você sabe onde nós podemos encontrá-lo? — diz, apontando para o homem atrás dela.
Ele é alto e tão grosso quanto uma rocha. Pai do Al, obviamente.
— Desculpe. Eu não o vi desde essa manhã. Talvez você deva procurá-lo lá em cima? — Aponto para o teto de vidro sobre nós.
— Oh, não — a mãe de Al diz abanando o rosto com a mão. — Prefiro não tentar subir novamente. Eu quase tive um ataque de pânico vindo até aqui. Por que não há trilhos ao longo do caminho? Vocês são todos loucos?
Eu sorrio um pouco. Há algumas semanas, eu teria achado essa pergunta ofensiva, mas agora passo muito tempo com os transferidos da Franqueza, que não me surpreendo com a falta de tato.
— Loucos, não — digo. — Integrantes da Audácia, sim. Se eu o vir, digo que vocês estão procurando-o.
Minha mãe, eu percebo, usa o mesmo sorriso que o meu. Ela não está agindo da mesma forma que os pais dos outros transferidos: pescoços curvados olhando para as paredes, para o teto e para o abismo. Claro que ela não é curiosa: ela é da Abnegação. Curiosidade é estranho para ela.
Eu apresento minha mãe para Will e Christina, e Christina a apresenta para a mãe e irmã. Mas quando Will me apresenta para Cara, a irmã mais velha dele, ela me dá um tipo de olhar que murcharia uma planta e não estende a mão para mim. Ela olha para minha mãe.
— Eu não acredito que você está se associando com um deles, Will — diz ela.
Minha mãe franze os lábios, mas claro, não diz qualquer coisa.
— Cara — Will fala, franzindo a testa — não é preciso ser rude.
— Ah, certamente que não. Você sabe quem é ela? — Ela aponta para minha mãe. — Ela é esposa do conselheiro, isso é o que ela é. Ela dirige a “agência voluntária” que supostamente ajuda os sem-facção. Você acha que eu não sei que ela está apenas acumulando bens para distribuir para a própria facção dela, enquanto nós não temos alimentos frescos há meses, hã? Comida para os sem facção, uma ova.
— Desculpe — minha mãe diz gentilmente — creio que você está enganada.
— Enganada. Há — Cara responde bruscamente. — Tenho certeza de que você é exatamente o que parece. Uma facção de felizes-sortudos-benfeitores sem um osso egoísta em seus corpos. Tá bom.
— Não fale com a minha mãe desse jeito — eu digo, meu rosto quente. Aperto minha mãos em punhos. — Não diga mais nenhuma palavra a ela ou eu juro que quebrarei seu nariz.
— Pra trás, Tris — Will diz — você não vai bater na minha irmã.
— Ahn? — eu digo, levantando as sobrancelhas. — Você acha?
— Não, você não vai — minha mãe toca meu ombro. — Vamos, Beatrice. Nós não queremos incomodar a irmã do seu amigo.
Ela soa gentil, mas sua mão aperta meu braço tão forte que eu quase grito de dor enquanto ela me leva embora. Ela anda comigo, rápido, em direção ao refeitório. Pouco antes de chegar ao salão, no entanto, ela pega uma curva à esquerda e anda por um dos corredores antigos que eu não havia explorado ainda.
— Mãe. Mãe, como você sabe por onde estamos indo?
Ela para próximo a uma porta fechada e fica na ponta dos pés, olhando para a base da lâmpada azul pendurada no teto. Alguns segundos depois, ela acena e vira para mim.
— Eu disse nenhuma pergunta para mim. E falei sério. Como você está indo realmente, Beatrice? Como tem indo as lutas? Em que lugar se classificou?
— Classificação? Você sabe que eu tenho lutado? Você sabe que há classificação?
— Não é um segredo de Estado o processo de iniciação Audácia.
Eu não sei a facilidade para descobrir o que a outra facção faz na iniciação, mas suspeito que não seja tão fácil. Lentamente, eu digo:
— Eu estou entre os piores, mãe.
— Bom — ela acena. — Ninguém presta atenção nos piores. Agora, isso é muito importante, Beatrice: quais foram os resultados do seu teste de aptidão?
O aviso de Tori aparece em minha mente. Não conte a ninguém. Eu deveria contar a ela que meu resultado deu Abnegação, porque foi isso o que Tori gravou no sistema.
Olho para os olhos de minha mãe, que são verdes claros e emoldurados pelos cílios negros. Ela tem linhas ao redor de sua boca, mas fora isso, ela não parece a idade que tem. Essas linhas ficam mais fortes quando ela cantarola. Ela costuma cantarolar quando lava a louça.
Essa é a minha mãe.
Eu posso confiar nela.
— Eles foram inconclusivos — digo suavemente.
— Eu pensei isso — ela suspira. — Muitas crianças que são criadas na Abnegação recebem esse tipo de resultado. Não sabemos o porquê. Mas você tem que ser cuidadosa na próxima fase da iniciação, Beatrice. Fique no meio do bloco, não importa o que faça. Não chame atenção para si. Você me entende?
— Mãe, o que está acontecendo?
— Eu não me importo que facção você escolheu — ela diz, tocando suas mãos em minhas bochechas. — Eu sou sua mãe e vou mantê-la segura.
— Isso é porque eu sou... — começo a dizer, mas ela pressiona sua mão em minha boca.
— Nunca diga essa palavra — ela sussurra — nunca.
Então Tori tinha razão. Divergente é uma perigosa coisa de ser. Eu só não sei o porquê ou o que isso realmente significa, ainda.
— Por quê?
Ela balança a cabeça.
— Eu não posso dizer.
Ela olha por cima de seu ombro, onde a luz do salão é quase invisível. Ouço gritos e conversas, gargalhadas e passos arrastados. O cheiro do jantar chega ao meu nariz, doce e fermento: pão assado. Quando ela vira para mim, sua mandíbula está definida.
— Tem uma coisa que eu quero que você faça. Eu não posso visitar o seu irmão, mas você pode, quando a iniciação acabar. Então quero que o encontre e diga a ele para pesquisar o soro da simulação. Ok? Pode fazer isso por mim?
— Não, a não ser que você explique um pouco disso para mim, mãe! — Cruzo meus braços. — Se você quer que eu vá até o complexo da Erudição, é melhor você dar uma razão!
— Não posso. Desculpe. — Ela beija minha bochecha e coloca uma mecha do meu cabelo que caiu do coque atrás da minha orelha. — Eu deveria ir. Será melhor para você se nós não parecermos muito sentimentais.
— Eu não me importo com o que dizem.
— Você deveria. Suspeito que eles já estejam te monitorando.
Ela vai embora e estou atordoada demais para segui-la. Ao final do corredor, ela vira e diz:
— Coma um pedaço de bolo por mim, está certo? O de chocolate. É uma delícia — ela sorri um estranho sorriso torcido e adiciona: — Eu te amo, você sabe.
E então ela se foi.
Fico sozinha na luz azul vinda da luz acima de mim e compreendo: ela esteve no complexo antes. Ela se lembrou desse corredor. Ela sabe sobre o processo de iniciação.
Minha mãe era da Audácia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário