sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 16

Essa tarde, eu volto para o dormitório enquanto todo mundo passa um tempo com seus familiares e encontro Al sentado em sua cama, olhando para onde o quadro negro fica normalmente. Quatro o tirou de lá ontem para que ele pudesse calcular nossas classificações da primeira fase.
— Aí está você! — digo. — Seus pais estão te procurando. Eles te encontraram?
Ele nega com a cabeça.
Sento-me próximo a ele na cama. Minha perna é quase a metade da largura da sua, mesmo agora que é mais musculosa que antes. Ele usa shorts pretos. Seu joelho está roxo com uma contusão e cicatriz.
— Você não queria vê-los?
— Não queria que eles me perguntassem como eu estava indo — ele diz. — Eu teria que dizer a eles, e eles saberiam se eu estivesse mentindo.
— Bom... — me esforço para pensar em algo para dizer. — O que há de errado com o que você está fazendo?
Al ri asperamente.
— Eu perdi todas as lutas desde aquela com Will. Não estou indo bem.
— Por escolha, no entanto. Você não poderia dizer isso a eles também?
Ele nega.
— Meu pai sempre quis que eu viesse pra cá. Digo, eles disseram que queriam que eu ficasse na Franqueza, mas isso é apenas porque eles deveriam falar. Eles sempre admiraram Audácia, os dois. Eles não entenderiam se eu tentasse explicar.
— Oh — bato meus dedos em meu joelho. Depois olho para ele. — É por isso que escolheu Audácia? Por causa dos seus pais?
Al nega com a cabeça.
— Não. Eu acho que foi por que... Eu acho que é importante proteger as pessoas. Defender as pessoas. Como você fez por mim — ele sorri pra mim — isso é o que Audácia deveria ser, certo? Isso é que é coragem. Não... machucar alguém por nenhuma razão.
Lembro o que Quatro me disse, que trabalho em equipe na Audácia costumava ser prioridade. O que era a Audácia antes? O que eu teria aprendido se estivesse aqui quando minha mãe era da Audácia? Talvez eu não tivesse quebrado o nariz de Molly. Ou ameaçado a irmã de Will. Sinto uma pontada de culpa.
— Talvez melhore uma vez que a iniciação termine.
— Uma pena que eu chegue em último — Al diz. — Acho que vamos ver hoje à noite.
Sentamos lado a lado por um tempo. É melhor ficar aqui, em silêncio, do que na Caverna, vendo todo mundo rir com suas famílias.
Meu pai costumava dizer que às vezes a melhor forma de ajudar alguém é apenas ficar perto dela. Eu me sinto bem quando faço alguma coisa que sei que ele ficará orgulhoso, como se consertassem todas as coisas que eu fiz que ele não ficaria orgulhoso.
— Me sinto corajoso quando estou perto de você, sabe — ele diz — como se eu pudesse realmente me encaixar aqui, da mesma forma que você faz.
Estou a ponto de responder quando ele passa seu braço pelos meus ombros. De repente eu congelo, minhas bochechas ficam vermelhas.
Eu não queria estar certa sobre os sentimentos de Al por mim. Mas eu estava.
Eu não me inclino para ele. Ao invés disso, sento mais a frente, assim seu braço cai. Então junto minhas mãos em meu colo.
— Tris, eu...
Sua voz soa tensa. Olho para ele. Sua face está tão vermelha quanto a minha, mas ele não está chorando – só parece envergonhado.
— Hum... Desculpa — ele fala. — Eu não estava tentando... Hum. Desculpa.
Gostaria de dizer a ele para não levar para o lado pessoal. Eu poderia dizer a ele que meus pais raramente dão as mãos, mesmo em sua própria casa, então treinei para me afastar de gestos de afeição, porque eles me criaram a levar a sério.
Talvez se eu disser isso, não teria uma ferida por debaixo de seu rubor. Mas claro, isso é pessoal. Ele é meu amigo… e isso é tudo. O que é mais pessoal que isso?
Eu inspiro e quando expiro, me obrigo a sorrir.
— Se desculpar pelo o quê? — pergunto, tentando soar casual.
Escovo meus jeans, apesar de não ter nada nele e me levanto.
— Eu deveria ir — digo.
Ele acena e não me olha.
— Você vai ficar bem? Quero dizer... por causa dos seus pais. Não por causa... — Deixo minha voz morrer. Eu não sei o que dizer.
— Oh. Sim — ele acena com a cabeça de novo, um pouco vigorosamente. — Te vejo mais tarde, Tris.
Tento não sair do quarto rápido demais. Quando a porta do dormitório fecha atrás de mim, toco uma mão em minha testa e dou um sorriso largo. Deixando o constrangimento de lado, é bom saber que gostam da gente.

+ + +

Discutir a visita de nossas famílias seria muito doloroso, então nossa classificação final da fase um é tudo o que conseguimos falar essa noite. Toda vez que alguém perto de mim fala sobre esse assunto, eu encaro um ponto do outro lado da sala e ignoro.
Minha classificação não pode ser tão ruim quanto costumava ser, especialmente depois que eu venci Molly, mas pode não ser bom o suficiente para eu terminar entre os dez melhores iniciantes, ainda mais quando os nascidos na Audácia estão competindo.
No jantar, sento-me à mesa do canto com Christina, Will e Al. Nós estamos desconfortavelmente perto de Peter, Drew e Molly, que estão na mesa ao lado. Quando nossa conversa termina, eu ouço cada palavra que eles estão dizendo. Eles estão especulando sobre o ranking. Que surpresa.
— Vocês não eram autorizados a ter animais de estimação? — demanda Christina batendo a palma da mão na mesa. — Por que não?
— Porque eles são ilógicos — Will diz com naturalidade. — Qual é a lógica de prover comida e abrigo para um animal que suja sua mobília, faz sua casa cheirar mal e depois morre?
Al e eu nos olhamos como usualmente fazemos quando Will e Christina começam uma briga. Mas dessa vez, no segundo que nossos olhos se encontram, afastamos nossos olhares. Espero que esse constrangimento entre nós não dure muito. Eu quero meu amigo de volta.
— A lógica é... — a voz de Christina some e ela inclina a cabeça. — Bom, eles são engraçados de ter. Eu tive um buldogue chamado Chunker. Uma vez nós deixamos uma galinha assada sobre a bancada para esfriar, e enquanto minha mãe foi ao banheiro, ele puxou a galinha da bancada e a comeu: pele, ossos e tudo. Nós rimos muito.
— Sim, isso certamente mudou minha mente. Claro que eu quero morar com um animal que come toda minha comida e destrói minha cozinha — Will balança sua cabeça. — Por que você não arruma um cachorro depois da iniciação, já que você está se sentindo nostálgica?
— Porque... — o sorriso de Christina murcha e ela afasta uma batata com seu garfo — cachorros estão meio que arruinados para mim. Depois... você sabe, depois do teste de aptidão.
Nós trocamos olhares. Todos sabemos que não devemos falar sobre o teste, nem mesmo agora que escolhemos, mas pra eles essa regra não deve ser tão séria quanto é para mim. Meu coração pula instável em meu peito. Para mim, essa regra é proteção. Impede-me de ter que mentir para meus amigos sobre meu resultado. Toda vez que eu penso na palavra Divergente, ouço o aviso de Tori e agora o aviso de minha mãe. Não diga a ninguém. Perigo.
— Você quer dizer... matar o cachorro, certo? — Will pergunta.
Eu quase esqueci. Aqueles que têm aptidão para Audácia pegaram uma faca na simulação e esfaquearam o cachorro quando ele atacou. Não me admira que Christina não queira mais um cachorro de estimação. Pego minha manga sobre meu pulso e torço meus dedos.
— Sim — ela responde. — Quero dizer, todos vocês tiveram que fazer aquilo, certo?
Ele olha para Al primeiro e depois para mim. Seus olhos escuros estão entrecerrados e diz:
— Você não.
— Humm?
— Você está escondendo alguma coisa — ela diz. — Você está se remexendo.
— O quê?
— Na Franqueza — diz Al, me cutucando com seu ombro. Isso. Isso é normal — nós aprendemos a ler a linguagem corporal, então sabemos quando está mentindo para gente ou mantendo alguma coisa em segredo.
— Oh — eu coço minha nuca. — Bem...
— Viu, está aí de novo! — ela diz, apontando para minha mão.
Eu sinto como se estivesse engolindo meus batimentos cardíacos. Como posso mentir sobre meu resultado se eles podem dizer quando estou mentindo? Eu terei que controlar minha linguagem corporal. Deixo minha mão cair e aperto minhas mãos em meu colo. É isso o que uma pessoa honesta faz?
Eu não terei que mentir sobre o cachorro, pelo menos.
— Não, eu não matei o cachorro.
— Como você conseguiu Audácia sem ter usado a faca? — Will pergunta, entrecerrando seus olhos para mim.
Olho em seus olhos e digo de maneira uniforme:
— Eu não consegui. Eu consegui Abnegação.
Isso é meia verdade. Tori reportou meu resultado como Abnegação, então isso é o que está no sistema.
Qualquer um que acessar aos placares poderia ser capaz de ver isso. Eu mantenho meu olhar no dele por alguns segundos. Deslocá-lo seria muito suspeito. Dou de ombros e espeto um pedaço de carne com o garfo. Espero que eles tenham acreditado em mim. Eles precisam acreditar em mim.
— Mas você escolheu Audácia, de qualquer forma? — Christina pergunta. — Por quê?
— Eu te disse — sorrio. — Foi a comida.
Ela ri.
— Vocês sabiam que Tris nunca tinha visto um hambúrguer antes de vir para cá?
Ela começa a história de nosso primeiro dia e meu corpo relaxa, mas continuo me sentindo pesada. Eu não deveria mentir para os meus amigos. Isso cria barreira entre a gente, e nós já temos mais do que queremos. Christina pegando a bandeira. Eu rejeitando Al.
Depois do jantar, a gente volta para o dormitório, e é difícil para mim não correr sabendo que o ranking estará lá quando eu chegar. Quero acabar logo com isso. Na porta do dormitório, Drew me empurra na parede para passar por mim. Meu ombro raspa na pedra, mas eu continuo andando.
Eu sou muito pequena para ver sobre a multidão de iniciados em pé no final do quarto, mas quando acho um lugar entre as cabeças, vejo que o quadro negro está no chão, encostado contra as pernas de Quatro, que está olhando para longe da gente. Ele está com um pedaço de giz em uma mão.
— Para aqueles que acabaram de chegar, eu estou explicando como o ranking é determinado — ele diz. — Depois da primeira rodada de lutas, nós classificamos de acordo com seu nível de habilidade. O número de pontos que você ganha depende de seu nível de habilidade e o nível de habilidade da pessoa que você venceu. Eu não premio atormentar os fracos. Isso é covardia.
Acho que os olhos deles estão em Peter nessa última frase, mas eles se moveram tão rapidamente que eu não tenho certeza.
— Se você tem uma alta classificação, você perde pontos por perder para um oponente com baixa classificação.
Molly deixa escapar um ruído desagradável, como um bufo ou resmungo.
— A fase dois do treinamento é mais pesada que a fase um, porque é mais ligada a superação da covardia — ele diz. — Dito isso, é extremamente difícil conseguir uma classificação alta no final da iniciação se você se classificou mal na primeira fase.
Troco o peso de um pé para o outro tentando conseguir uma boa visão dele. Quando finalmente consigo, olho para longe. Os olhos deles já estão em mim, provavelmente devido ao meu movimento nervoso.
— Nós vamos anunciar os cortes amanhã — Quatro diz. — O fato de vocês serem transferidos e os iniciados nascidos na Audácia não são, não será levado em consideração. Quatro de vocês poderiam ficar sem facção e nenhum deles. Ou quatro deles ficariam sem facção e nenhum de vocês. Ou qualquer combinação disso. Dito isso, aqui estão as suas classificações.
Ele pendura o quadro no gancho e dá um passo atrás, então podemos ver o ranking:

1. Edward
2. Peter
3. Will
4. Christina
5. Molly
6. Tris

Sexta? Eu não posso ser a sexta. Vencer Molly deve ter elevado minha classificação mais do que eu pensei que poderia. E perder para mim parece que abaixou a dela. Eu passo para o final da lista.

7. Drew
8. Al
9. Myra

Al não é absolutamente o último, mas a menos que os iniciados nascidos Audácia falhem completamente em sua versão da primeira fase, ele está sem facção.
Eu encaro Christina. Ela inclina a cabeça e franze a testa para o quadro. Ela não é a única. O silêncio no quarto é desconfortável, como se estivesse balançando no limite, para frente e para trás.
Então ele cai.
— O quê? — exige Molly. Ela aponta para Christina. — Eu a venci! A venci em minutos, e ela se classifica na minha frente?
— É — diz Christina cruzando seus braços. Ela está usando um sorriso soberbo. — E?
— Se você pretende garantir uma classificação alta, sugiro que você não faça um hábito perder para os oponentes que têm baixa classificação — diz Quatro, sua voz  cortando os murmúrios e resmungos dos outros iniciantes.
Ele mete o giz no bolso e passa por mim sem me olhar. As palavras doem um pouco, me lembrando de que eu sou a oponente de baixa classificação a que ele se refere.
Aparentemente, elas lembram Molly também.
— Você — ela diz, focando seus olhos semicerrados em mim. — Você vai pagar por isso.
Eu espero ela avançar em mim, ou me bater, mas ela somente gira nos calcanhares e sai do dormitório, e isso é muito pior. Se ela tivesse explodido, a raiva dela teria ido embora rapidamente, depois de um soco ou dois. Ir embora significa que ela quer planejar algo. Ir embora significa que eu teria que ficar em guarda.
Peter não disse nada quando o ranking foi exposto, o que, dada a tendência de ele de reclamar sobre qualquer coisa que não funcione do jeito dele, é uma surpresa. Ele apenas caminha para seu beliche, senta e desamarra os laços do sapato. Isso me deixa mais desconfortável ainda. Ele não pode estar satisfeito com o segundo. Não Peter.
Will e Christina batem as mãos e depois Will bate nas minhas costas, com a mão maior que a minha omoplata.
— Olhe só para você. Número seis — ele diz, sorrindo.
— Ainda poderia não ter sido bom o suficiente — eu o lembro.
— Logo será, não se preocupe. Nós deveríamos comemorar.
— Bom, então vamos — diz Christina, pegando meu braço com uma mão e o braço de Al com a outra. — Vamos, Al. Você não sabe como os nascidos na Audácia foram. Você não sabe de nada com certeza.
— Eu apenas vou para a cama — ele murmura, retirando o seu braço.
No corredor, é fácil esquecer sobre Al, a vingança de Molly e o silêncio suspeito de Peter, e fácil fingir que o que nos separa como amigos não existe. Mas no fundo de minha mente está o fato de que Christina e Will são meus oponentes. Se quero lutar por meu lugar no nos dez primeiros, terei que derrotá-los primeiro.
Eu só espero que não tenha que traí-los no processo.

+ + +

Nessa noite, tenho problema para dormir. O dormitório costumava ser barulhento para mim, com todas as respirações, mas agora está muito quieto. Quando está quieto, eu penso sobre minha família. Graças a Deus o edifício da Audácia é barulhento.
Se minha mãe era da Audácia, por que ela escolheu Abnegação? Ela ama a sua paz, rotina, bondade – todas as coisas que perdi, quando eu me deixei pensar sobre isso?
Pergunto-me às vezes se alguém aqui a conhecia quando era jovem e poderia me dizer como ela era na época. Mesmo se eles conhecessem, provavelmente não falariam sobre ela. Os transferidos de facção realmente não deveriam falar sobre suas facções antigas uma vez que se tornam membros. Isso supostamente facilita para eles mudarem suas lealdades da família para a facção – para abraçarem o princípio facção antes do sangue.
Eu enterro minha cabeça no travesseiro. Ela pediu que eu falasse para Caleb pesquisar o soro da simulação – por quê? Isso tem alguma coisa a ver comigo sendo Divergente, por estar em perigo ou algo parecido? Suspiro. Tenho mil perguntas, e ela foi embora antes que eu pudesse fazer alguma. Agora elas giram em minha mente, e duvido que eu seja capaz de dormir até que possa respondê-las.
Ouço uma briga do outro lado do quarto e levanto minha cabeça do travesseiro. Meus olhos não estão ajustados para a escuridão, então encaro a escuridão como a parte de trás das minhas pálpebras. Ouço um arrastar de pés e um barulho de sapato. Um baque pesado.
E então um gemido que gela meu sangue e faz meus cabelos levantarem. Jogo os lenços para trás e fico de pé no chão de pedra descalça. Ainda não posso ver bem o suficiente para achar a fonte dos gritos, mas vejo uma protuberância escura a alguns beliches à frente.
Outro grito penetra meus ouvidos.
— Acendam as luzes! — alguém grita.
Eu ando em direção ao som lentamente para não tropeçar em nada. Sinto que estou em transe. Não quero ver de onde os gritos estão vindo. Um grito como esse só pode significar sangue, osso e dor; esse grito que vem da boca do estômago e se estende para o resto do corpo.
As luzes são acesas.
Edward está deitado no chão perto da cama dele, segurando seu rosto. Em torno de sua cabeça há uma poça de sangue e saliente entre seus dedos apertados há um cabo de uma faca. Ouço os batimentos do meu coração em meus ouvidos. Eu reconheço a faca sendo como uma das do jantar. A lâmina está enterrada no olho de Edward.
Myra, quem está nos pés de Edward, grita. Alguém grita também e outro alguém grita por socorro. Edward ainda está no chão, se contorcendo e gemendo. Agacho-me em sua cabeça, meus joelhos na poça de sangue, e coloco minhas mãos nos ombros dele.
— Fique parado — digo.
Sinto-me calma, no entanto não consigo ouvir nada, como se minha cabeça estivesse embaixo d’água. Edward se agita de novo e eu falo mais alto:
— Eu disse: fique parado. Respire.
— Meu olho! — ele grita.
Sinto um cheiro fétido. Alguém vomitou.
— Tire! — ele grita. — Tire, tire isso de mim, tire!
Eu balanço minha cabeça e então percebo que ele não pode ver. Uma risada borbulha no meu estômago. Histérica. Eu tenho que suprimir a histeria se vou ajudá-lo. Tenho que esquecer de mim.
— Não — respondo. — Você tem que deixar o doutor retirar. Ouviu? Deixe o doutor retirar. E respire.
— Isso dói — ele soluça.
— Eu sei que sim.
Ao invés da minha voz, ouço a da minha mãe. Vejo-a agachada sobre mim na calçada em frente da nossa casa, enxugando lágrimas dos meus olhos depois de eu ralar o joelho. Eu tinha cinco anos, na época.
— Tudo vai ficar bem — tento soar firme, como seu eu não estivesse consolando-o, mas eu estou. Eu não sei se vai ficar tudo bem. Suspeito que não.
Quando a enfermeira chega, ela pede pra eu me afastar e eu o faço. Minhas mãos e joelhos estão ensopados de sangue. Quando olho ao redor, eu vejo que apenas dois rostos estão faltando.
Drew.
E Peter.

+ + +

Depois que eles levam Edward embora, levo uma muda de roupa para o banheiro e lavo minhas mãos. Christina vem comigo e fica na porta, mas ela não diz nada, e eu fico feliz. Não há muito que falar.
Esfrego todas as linhas das palmas e limpo unha por unha para tirar o sangue. Troco para as calças que eu trouxe e jogo as antigas no lixo. Pego o máximo de papel toalha que consigo segurar. Alguém precisa limpar a bagunça do dormitório, desde que eu duvido que consiga dormir de novo, poderia muito bem ser eu.
Assim que eu alcanço a maçaneta, Christina diz:
— Você sabe quem fez isso, certo?
— Sim.
— Devemos contar a alguém?
— Você realmente acha que a Audácia fará alguma coisa? Depois de tê-la pendurado no abismo? Depois de nos fazer bater uns nos outros até a inconsciência?
Ela não diz nada.
Por meia hora depois disso, eu me ajoelho sozinha no chão do dormitório e limpo o sangue de Edward. Christina joga fora as toalhas sujas e me traz novas. Myra se foi; provavelmente seguiu Edward até o hospital.
Ninguém dorme muito nessa noite.

+ + +

—Isso vai parecer estranho — Will diz — mas eu queria que nós não tivéssemos um dia de folga hoje.
Eu concordo. Sei o que ele quis dizer. Ter alguma coisa para fazer poderia me distrair, eu poderia ter uma distração agora.
Não passo muito tempo com o Will, mas Christina e Al estão tirando um cochilo no dormitório e nenhum de nós queria estar naquele quarto mais do que precisamos. Will não me contou. Eu apenas sei.
Deslizo uma unha sob a outra. Lavei minhas mãos completamente após a limpeza do sangue do Edward, mas ainda sinto como se estivesse em minhas mãos. Will e eu andamos sem direção. Não há para onde ir.
— Nós poderíamos visitá-lo — Will sugere. — Mas o que falaríamos? “Não nos conhecíamos tão bem, mas sinto que tenha sido esfaqueado no olho?”
Não é engraçado. Eu sei disso tão logo ele fala, mas a risada nasceu em minha garganta e eu a coloco pra fora, porque é difícil contê-la. Will me encara por um segundo e depois ri comigo. Algumas vezes chorar ou rir é a única opção, e rir parece o melhor agora.
— Desculpa — digo. — Isso é tão ridículo.
Eu não quero chorar pelo Edward – pelo menos no sentido pessoal que você chora por um amigo ou amado. Eu quero chorar porque uma coisa terrível aconteceu, eu vi e não podia ver uma maneira de consertá-lo. Ninguém que poderia querer punir Peter tem autoridade para tal, e ninguém que tem autoridade para puni-lo poderia querer. A Audácia tem regras contra atacar alguém desse jeito, mas com uma pessoa como Eric no comando, suspeito que essas regras sejam inaplicáveis.
Eu digo mais séria:
— A parte mais ridícula é: em qualquer outra facção, seria corajoso de nossa parte falar para alguém o que aconteceu. Mas aqui... na Audácia... bravura não nos fará bem algum.
— Você já leu os manifestos das facções? — Will pergunta.
Os manifestos das facções foram escritos após as facções serem formadas. Nós aprendemos sobre eles na escola, mas nunca lemos.
— Você já? — Franzo a testa para ele. Então eu lembro que Will uma vez memorizou o mapa da cidade apenas por diversão. — Ah. Claro que sim, esquece.
— Uma das linhas que eu me lembro do manifesto da Audácia é, Nós acreditamos em atos ordinários de bravura, em coragem que leva uma pessoa a defender outra.
Will suspira.
Ele não precisa dizer mais nada. Eu sei o que quis dizer. Talvez Audácia tenha sido formada com boas intenções, com certos ideais e certos objetivos. Mas se afastou deles. E o mesmo vale para Erudição, eu percebo. Há muito tempo Erudição perseguiu conhecimento e engenhosidade para fazer o bem. Agora elas perseguem conhecimento e engenho com corações gananciosos. Pergunto-me se outras facções sofrem do mesmo problema. Eu não havia pensado sobre isso antes.
Apesar da depravação que vejo na Audácia, no entanto, não poderia ir embora. Não é apenas porque o pensamento de viver sem facção, em completo isolamento, soa um destino pior que a morte. É porque nos breves momentos que eu amei aqui, vi uma facção que vale a pena salvar. Talvez nos tornemos bravos e honráveis de novo.
— Vamos ao refeitório — Will sugere — comer bolo.
— Ok — sorrio.
Conforme andamos pela Caverna, eu repito a fala de Will para mim, então não esqueço.
Eu acredito em ordinários atos de bravura, em coragem que leva uma pessoa a defender outra.
É um belo pensamento.

+ + +

Mais tarde, quando volto para o dormitório, o beliche de Edward está limpo e as gavetas vazias abertas. Do outro lado do quarto, o beliche de Myra está igual.
Quando pergunto a Christina onde eles foram, ela responde:
— Eles desistiram.
— Até Myra?
— Ela disse que não queria ficar aqui sem ele. Ela seria cortada, de qualquer forma.
Ela encolhe os ombros, como se não pensasse em nada mais para fazer. Se isso é verdade, eu sei como ela se sente.
— Pelo menos eles não cortaram o Al.
Al era para ser cortado, mas a partida de Edward o salvou. Audácia decidiu poupá-lo até a próxima fase.
— Quem mais foi cortado?
Christina encolhe os ombros de novo.
— Dois dos nascidos na Audácia. Eu não lembro o nome deles.
Concordo com a cabeça e olho para o quadro negro. Alguém desenhou uma linha nos nomes de Edward e Myra, e mudou os números das outras pessoas. Agora Peter é o primeiro.
Will é o segundo. Eu sou a quinta. Nós começamos a iniciação com nove novatos.
Agora somos sete.

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