terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 2 - Leslie Burke


Ellie e Brenda não tinham voltado e já eram sete horas. Jess tinha acabado de colher todas as vagens e ajudara a mãe a fazer conserva, para aproveitar tudo. Ela só fazia conservas quando o dia estivesse bem quente, um calor escaldante. Dessa forma, com todo aquele trabalho de ferver as vagens, a cozinha acabava virando uma sucursal do inferno. É claro que nessas horas ela ficava com um humor ainda mais terrível, e passara a tarde toda gritando com Jess. No fim, inteiramente exausta, nem aguentava mais fazer o jantar.
Jess fez uns sanduíches de pasta de amendoim para ele e as irmãs pequenas, e como a cozinha ainda estava muito quente e dando enjoo de tanto cheiro de vagem cozida, os três foram comer lá fora.
O caminhão de mudanças ainda estava parado em frente à casa dos Perkins. Não se via ninguém andando em volta, então na certa já tinham acabado de descarregar tudo.
— Tomara que eles tenham uma menina, de uns seis ou sete anos — disse May Belle. — Preciso de alguém para brincar comigo.
— Você tem Joyce Ann.
— Eu detesto Joyce Ann. Ela é uma pirralha.
A boca de Joyce Ann fez beicinho. Os dois viram os lábios dela começando a tremer. Em seguida, o corpinho rechonchudo se sacudiu todo, e ela começou a chorar bem alto.
— Quem está implicando com a neném? — gritou a mãe, lá de dentro, pela porta de tela.
Jess suspirou e enfiou o resto de seu sanduíche na boca aberta de Joyce Ann. Ela arregalou os olhos e fechou a boca, agarrando o presente inesperado. Talvez assim ele conseguisse um pouco de sossego.
Fechou a porta devagarzinho quando entrou, e se esgueirou para passar pela mãe, que estava se balançando na cadeira da cozinha e vendo televisão. No quarto que dividia com as irmãs menores, enfiou a mão por baixo do colchão e puxou um bloco e uns lápis. Depois, de bruços na cama, começou a desenhar.
Jess desenhava do mesmo jeito que tem gente que bebe uísque. Ia baixando nele uma paz, que começava no alto do cérebro atormentado e ia descendo e se espalhando por todo o corpo cansado e tenso.
Deus do céu, como adorava desenhar! Principalmente bichos. Não animais normais, como Miss Bessie ou as galinhas, mas uns animais malucos, cheios de problemas – por alguma razão estranha, gostava de colocar seus bichos em situações impossíveis. Esse de agora era um hipopótamo que acabava de pular da beira de um penhasco, dando cambalhotas no ar – dava para ver, por causa das linhas curvas – em direção ao mar, lá embaixo, onde uns peixes apanhados de surpresa pulavam da água com olhos esbugalhados.
Havia um balão de fala na parte de cima do hipopótamo – onde devia estar a cabeça, mas na verdade estava a bunda – e dizia: “Oh! Devo ter esquecido os óculos!”.
Jess começou a sorrir. Se resolvesse mostrar o desenho a May Belle, ia ter que explicar a piada. Mas, depois que explicasse, ela ia cair na gargalhada, e rir como o público daqueles programas de televisão ao vivo.
Gostaria muito de mostrar os desenhos ao pai, mas não tinha coragem. Quando estava na primeira série, uma vez tinha dito ao pai que queria ser artista quando crescesse. Achou que o pai ia gostar. Mas ele não gostou. “O que é que estão lhe ensinando naquela droga de escola?”, perguntara. “Um bando de velhas fazendo meu filho virar um...” Parou antes de dizer a palavra, mas Jess captou a mensagem. E não se esquecia dela, mesmo depois de terem se passado quatro anos.
O pior é que nenhum dos professores regulares gostava dos desenhos que ele fazia. Sempre que o pegavam rabiscando, reclamavam do desperdício – estava perdendo tempo, gastando papel, devia estar fazendo coisa melhor. A não ser Miss Edmunds, a professora de Música. Era a única a quem ele tinha coragem de mostrar alguma coisa, mas ela só estava na escola havia um ano, e mesmo assim, só vinha às sextas-feiras.
Miss Edmunds era um de seus segredos. Estava apaixonado por ela. Não aquele tipo de coisa idiota que enchia de risadinhas as conversas de Ellie e Brenda pelo telefone. Era real demais, profundo demais para ele ficar falando, até mesmo para ficar pensando muito. O cabelo dela, comprido, preto e brilhante, e os olhos azuis... muito azuis. Ela tocava violão como se fosse uma grande artista, dessas que gravam discos cheios de canções, e tinha uma voz suave e gostosa, que fazia Jess se derreter por dentro. E, Deus do céu, como era linda! Além de tudo, gostava dele, também.
Um dia, no inverno passado, ele lhe dera um de seus desenhos. Só entregou na mão dela no fim da aula, e saiu correndo. Na sexta-feira seguinte, ela pediu que ele ficasse um pouco mais depois da aula. E disse que ele tinha “um talento fora do comum”, e que esperava que ele nunca se deixasse desanimar por nada, mas “fosse em frente”. Isso queria dizer, Jess tinha certeza, que ela achava que ele era o melhor. Não aquele tipo de melhor que conta ponto em casa ou na escola, mas um tipo verdadeiro de melhor. Guardou isso bem lá no fundo de si mesmo, como se fosse um tesouro de piratas, bem enterrado. Ele era rico, muito rico, mas ninguém podia saber disso, a não ser aquela outra pessoa que era marginal como ele, sua companheira Julia Edmunds.
— Pelo jeito, ela deve ser meio hippie — dissera a mãe, quando Brenda (que no ano anterior estava na 7ª série) lhe descrevera Miss Edmunds.
Talvez fosse mesmo. Jess nem ia discutir uma coisa dessas, mas para ele a professora era uma bela criatura, meio selvagem, que fora apanhada por um momento naquela gaiola suja e velha de uma escola, talvez por engano. Mas ele esperava – e rezava por essa esperança – que ela nunca se soltasse e voasse para longe. Ele só conseguia aguentar a chateação de uma semana inteira na escola por causa daquela meia horinha nas tardes de sexta-feira, quando todos se sentavam no tapete gasto do chão da sala dos professores (não havia outro lugar no prédio com espaço para Miss Edmunds espalhar a tralha dela) e cantavam canções como Meu lindo balão, Esta terra é sua terra, Livre para ser você e eu, Soprando no vento e, porque o senhor Turner, que era o diretor, fazia questão, também Deus salve a América.
Miss Edmunds ficava tocando violão e deixava as crianças se revezarem nos triângulos, címbalos, pandeiros e bongôs. Deus do céu, eles conseguiam fazer uma barulhada!
Todos os professores odiavam as sextas-feiras. E um monte de meninos fazia de conta que também detestava. Mas Jess sabia que eles estavam fingindo. Como se fosse um xingamento, os meninos a chamavam de hippie ou pacifista, mesmo depois de terminada a Guerra do Vietnã, quando tudo já devia estar bem de novo para quem quisesse gostar da paz. Mas eles zombavam de Miss Edmunds porque ela não usava batom, ou porque o corte dos jeans dela era esquisito. É verdade que Miss Edmunds era a única professora que podia ser vista usando calça comprida na Escola Primária de Córrego da Cotovia. Vá lá que fosse moda em Washington e em seus bairros elegantes, ou até mesmo em Millsburg, mas em Córrego da Cotovia era a coisa mais fora de moda. Levaram muito tempo para aceitar que uma coisa que todo mundo via a toda hora na televisão podia estar bem em qualquer lugar.
Por isso, os estudantes da Escola Primária do Córrego da Cotovia passavam a sexta-feira todinha sentados diante das carteiras, com os corações batendo forte de expectativa ao ouvirem o alegre pandemônio que vinha da sala dos professores enquanto sua vez não chegava; depois passavam sua meia hora com Miss Edmunds, encantados por aquela beleza selvagem e fascinados por seu entusiasmo, e depois saíam, fazendo de conta que não admitiam serem hipnotizados por uma dessas hippies de jeans apertados, com maquiagem carregada em volta dos olhos e nem um pouquinho de batom na boca.
Jess se limitava a ficar calado. Não ia adiantar nada se tentasse defender Miss Edmunds diante daqueles ataques injustos e hipócritas. Além disso, ela era muito superior àquele comportamento idiota. Nada podia atingi-la. Mas, sempre que possível, ele roubava uns minutos na sexta-feira apenas para ficar perto dela e ouvir sua voz, suave e macia como se fosse de camurça, a lhe garantir que ele era um “garoto ótimo”.
“Nós somos parecidos”, Jess dizia para si mesmo, “Miss Edmunds e eu”. A linda Julia. As sílabas rolavam por sua cabeça como uma sucessão de acordes do violão. “Córrego da Cotovia não é um lugar para nós – Julia e eu.” “Você é um diamante num palheiro”, lhe dissera ela um dia, tocando de leve seu nariz com a ponta de um dedo eletrizante. Mas ela é que era um diamante, cintilando no meio daquele ambiente enlameado, sem grama, cheio de tijolos sujos.
— Jesseee!
Jess enfiou o bloco e os lápis debaixo do colchão e ficou deitado de bruços, com o coração batendo forte junto à colcha. A mãe estava na porta:
— Já ordenhou a vaca?
Pulou para fora da cama.
— Estou indo.
Passou por ela e saiu, agarrando o balde que ficava do lado da pia, e o banquinho junto à porta. Tão rápido que nem deu tempo para ela lhe perguntar o que estava fazendo.
As luzes estavam acesas nos três andares da velha casa dos Perkins. Estava quase escuro. As tetas de Miss Bessie estavam cheias, e a coitada da vaca se mexia de um lado para o outro, desconfortável. Deveria ter sido ordenhada horas antes. Ele se sentou no banquinho e começou a trabalhar: o leite morno jorrava no balde.
Lá longe, na estrada, de vez em quando passava um caminhão, já com os faróis acesos. Dali a pouco, o pai ia chegar, e também aquelas meninas tagarelas que sempre davam um jeito para ir se divertir e deixar a mãe e ele para fazerem todo o trabalho.
O que será que elas tinham comprado com todo aquele dinheiro? Deus do céu, o que ele não daria por um bloco novo, de papel de desenho de verdade, e uma caixa daquelas canetas de marcar, com as cores escorrendo para a página sem nenhum esforço, com a velocidade do pensamento, era só tocar... Não como aqueles cotocos de lápis velhos da escola, que a gente tinha que apertar, com força, até que alguém viesse encher o saco dizendo que assim iam quebrar.
Um carro estava entrando no quintal. Era o dos Timmons. As meninas tinham chegado em casa antes do pai.
Jess podia ouvir suas vozes alegres se despedindo enquanto batiam as portas do carro. A mãe ia servir o jantar para elas e, quando ele entrasse, estariam todas rindo e conversando. A mãe ia até esquecer que estava cansada e zangada. Ele era o único que tinha que aturar aquilo.
Às vezes se sentia tão sozinho no meio de todo aquele mulherio... Até o único galo tinha morrido, e ainda não tinham arranjado outro. Com o pai longe, desde antes de o sol nascer até bem depois de escurecer, quem estava por perto para saber como ele se sentia?
E não era melhor nos fins de semana. O pai estava sempre tão exausto da maratona da semana, e com tanta coisa para fazer em casa, que, quando não estava trabalhando, acabava dormindo na frente da televisão.
— Ei, Jess!
Era May Belle. A pirralha não era capaz nem de deixar o cara pensar sossegado.
— O que é que você quer agora?
Ela se encolheu toda, como se estivesse diminuindo uns dois tamanhos de roupa.
— Tenho uma coisa pra te contar — disse ela, inclinando a cabeça.
— Você já devia estar na cama — resmungou ele, zangado consigo mesmo por estar cortando a dela.
— Ellie já voltou mais Brenda.
— Com Brenda. Com...
Será que não conseguia parar de implicar com a irmã? Mas a notícia que a pequena trazia era deliciosa demais para que ela conseguisse se controlar.
— Ellie comprou uma blusa transparente, e mamãe está tendo um ataque!
“Ótimo”, pensou ele. Mas disse:
— Não é motivo para festejar.
Tuque-tuque-tuque...
— Papai! — exclamou May Belle, encantada, e saiu correndo em direção à estrada.
Jess viu o pai parar o caminhão e se inclinar para destravar a porta, para que May Belle pudesse entrar. Virou-se para o outro lado. Menina de sorte. Ela podia correr para junto do pai, abraçá-lo e dar um beijo nele. Era uma coisa que dava um aperto de dor por dentro: toda vez que Jess via o pai pegar as pequenas e pôr nos ombros, ou se abaixar para abraçá-las.
Tinha impressão de que fora considerado grande demais para essas coisas desde o dia em que nascera.
Quando o balde ficou bem cheio, deu um tapinha em Miss Bessie para que ela saísse do lugar. Ajeitando o banquinho debaixo do braço esquerdo, carregou o balde pesado com cuidado, para não derramar nem uma gota do leite.
— Hoje você se atrasou um pouco com essa ordenha, não foi, filho?
Foi a única coisa que o pai disse diretamente a ele, a noite toda.

* * *

Na manhã seguinte, ele quase não despertou com o barulho da caminhonete. Mesmo antes de acordar por completo, dava para sentir como ainda estava cansado. Mas May Belle estava sorrindo para ele, apoiada num dos cotovelos.
— Ei, você hoje não vai correr? — perguntou.
— Não — respondeu ele, jogando o lençol longe. — Eu hoje vou voar.
Como estava mais cansado do que de costume, teve que fazer um esforço ainda maior. Fez de conta que Wayne Pettis estava ali, um pouquinho à sua frente, e que ele não podia ficar para trás. Seus pés batiam no chão irregular, enquanto ganhava impulso com os braços, cada vez mais forte.
Ia alcançá-lo.
— Preste atenção, Wayne Pettis — disse, entredentes — vou te passar. Você não vai ganhar de mim.
— Se está com tanto medo da vaca — disse uma voz — por que não pula a cerca? É mais fácil...
Jess parou no meio da ação, como aquele efeito que aparece nos filmes da televisão quando a imagem se congela, e virou, quase perdendo o equilíbrio, para ver quem fizera a pergunta – era alguém sentado na cerca perto da velha casa dos Perkins, com as pernas nuas e morenas balançando.
A pessoa tinha um cabelo castanho meio arrepiado, cortado bem curtinho junto ao rosto e usava uma dessas camisetas azuis que parecem roupa de baixo, com uns jeans muito desbotados, cortados logo acima dos joelhos.
Sinceramente, não dava para saber se era menino ou menina.
— Ei! — cumprimentou ele, ou ela, apontando com a cabeça para a casa velha dos Perkins. — Acabamos de nos mudar para ali.
Jess parou onde estava, e ficou olhando.
A pessoa desceu da cerca, escorregando, e andou em sua direção.
— Achei que a gente podia ser amigo — disse. — Não há mais ninguém por perto.
“Menina”, concluiu ele. Sem dúvida nenhuma, menina. Mas não tinha a menor ideia de como é que podia ter tanta certeza. Tinha mais ou menos a mesma altura que ele – mas nem tanto, era um pouquinho mais baixa, como teve o prazer de constatar quando ela se aproximou.
— Meu nome é Leslie Burke.
Ela até tinha um desses nomes meio bobos que servem para menino ou menina, mas agora ele tinha certeza de que não se enganara.
— O que foi que aconteceu?
— Ahn?
— Aconteceu alguma coisa?
— É... não...
Apontou o dedo em direção à própria casa, depois tirou o cabelo da testa e se apresentou:
— Jess Aarons.
Uma pena que a menina que May Belle queria veio no tamanho errado.
— Bem... bem... — cumprimentou-a com um gesto de cabeça. — Vou indo.
Deu meia-volta e tomou o caminho de casa. Não adiantava tentar correr mais nessa manhã. Era melhor ordenhar logo Miss Bessie e ficar livre disso de uma vez.
— Ei! — gritou Leslie, parada no meio do pasto, com a cabeça levantada e as mãos na cintura. — Onde é que você está indo?
— Tenho que trabalhar — respondeu ele, virando-se ligeiramente.
Mais tarde, quando saiu com o balde e o banquinho, ela tinha ido embora.

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