terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 3 - O campeão da 5ª série

Jess não tornou a ver Leslie Burke, a não ser de longe, até o primeiro dia de aula, na terça-feira seguinte, quando o senhor Turner a trouxe até a sala da 5ª série da Escola Primária de Córrego da Cotovia.
Leslie ainda estava vestida com a mesma calça cortada e a mesma camiseta azul. Calçava tênis sem meias. Quase dava para ver um ar de surpresa subindo feito uma fumacinha na sala, como o vapor que sai de um radiador de carro quando a gente tira a tampa. Todos estavam ali, sentadinhos, com suas melhores roupas de domingo de primavera. Até Jess estava usando sua única calça de veludo cotelê e uma camisa bem passada.
Pelo jeito, ela nem ligou para a reação geral. Ficou parada ali na frente deles, dizendo com os olhos “Tudo bem, pessoal, estou aqui”, em resposta aos olhares boquiabertos, enquanto a senhora Myers zanzava de um lado para o outro que nem uma barata tonta, tentando ver se descobria onde podia colocar a carteira extra. A sala era pequena e ficava no porão. E cinco fileiras, com seis carteiras cada, já a deixavam atulhada demais para ser confortável.
— Trinta e um... — resmungava sem parar a senhora Myers, por cima de seu queixo duplo. — Trinta e um... Ninguém tem mais de vinte e nove.
Acabou resolvendo colocar a carteira junto à parede lateral, lá na frente.
— Fique aqui por enquanto... ahn... Leslie. É o melhor que podemos fazer... por enquanto. Esta classe já tem muita gente.
E lançou um olhar quase agressivo em direção ao vulto do senhor Turner, que se afastava.
Leslie ficou quieta, esperando que o menino da 7ª série que tinha sido mandado lá embaixo para trazer a carteira acabasse de colocá-la na posição certa, encostada no aquecedor e debaixo da primeira janela.
Sem fazer barulho, ela a empurrou um pouco para a frente do aquecedor, e se instalou. Depois, virou-se e, mais uma vez, contemplou o resto da turma.
Na mesma hora, trinta pares de olhos focalizaram, de repente, os arranhões nos tampos das carteiras. Jess passou o dedo indicador em volta de um coração, com dois pares de iniciais, BR + SK, tentando adivinhar de quem podia ter herdado aquela carteira. Provavelmente, de Sally Koch. Na 5ª série, geralmente as meninas desenhavam muito mais aquelas coisas de corações do que os meninos. Além disso, BR devia ser Billy Rudd, e todo mundo sabia que na primavera anterior Billy estava a fim de Myrna Hauser. É claro que aquelas iniciais podiam estar ali havia muito mais tempo, e nesse caso...
— Jesse Aarons. Bobby Greggs. Distribuam os livros de Matemática. Por favor.
Ao dizer a última palavra, a senhora Myers exibiu seu famoso sorriso de primeiro dia de aula. As séries mais adiantadas costumavam dizer que a senhora Myers nunca sorria, a não ser no primeiro e no último dia de aula.
Jess levantou-se e foi até a frente.
Quando passou pelo lugar de Leslie, ela deu um sorrisinho e fez um ligeiro aceno com os dedos, sem levantar a mão, numa espécie de cumprimento. Ele a saudou com a cabeça. Não podia deixar de ficar com pena dela. Devia ser constrangedor se sentar bem na frente de todo mundo daquele jeito, ainda mais quando a pessoa está vestida de um modo esquisito no primeiro dia de aula.
E não conhece ninguém.
Foi distribuindo os livros, como a senhora Myers tinha mandado. Gary Fulcher agarrou o braço dele, quando passou:
— Vai correr hoje?
Jess confirmou, com a cabeça. Gary deu um risinho zombeteiro. “Ele acha que vai me derrotar, o cabeça-oca”. Pensando nisso, Jess sentiu um calorzinho por dentro. Sabia que estava melhor do que na primavera anterior. Fulcher podia achar que ia chegar em primeiro lugar, agora que Wayne Pettis estava na 6ª série, mas ele, Jess, tinha preparado uma surpresinha para o velho Fulcher, quando chegasse a hora do recreio. Era como se tivesse engolido gafanhotos. Estava pronto para disparar e mal conseguia esperar.
A senhora Myers distribuía os livros quase como se fosse o presidente dos Estados Unidos, de tanto que encompridava o processo com uma porção de assinaturas e cerimônias absurdas. Passou pela cabeça de Jess que ela também estava querendo adiar as aulas de verdade, o máximo possível.
Enquanto não chegava sua vez de passar adiante algum livro, Jess arrancou uma folha de caderno e começou a desenhar. Estava brincando com a ideia de fazer um livro inteiro, só de desenhos.
Precisava definir um personagem principal e fazer uma história com ele. Rabiscou uma porção de animais, tentando pensar num nome. Se tivesse um título bom, já era meio caminho andado.
O elefante elegante?
Soava bem. Dante, o elefante elegante?
Ainda melhor. Ou O caso do crocodilo crocante? Nada mal...
— Que é que você está desenhando? — perguntou Gary Fulcher, debruçado sobre a carteira dele.
Jess cobriu a página com o braço.
— Nada.
— Ah, deixe eu ver...
Jess sacudiu a cabeça.
Gary se esticou e tentou puxar a mão de Jess, para descobrir o papel.
— O caso do cro... puxa, Jess, deixe eu ver... — murmurou ele, meio rouco. — Não vai tirar pedaço.
Puxou com força o polegar de Jess, torcendo-o para trás. Jess cobriu o papel com os dois braços, enquanto pisava com o calcanhar no dedão do pé de Gary Fulcher.
— Aaai!
— Meninos! — gritou a senhora Myers, perdendo os últimos vestígios de seu sorriso mecânico.
— Ele pisou no meu dedo.
— Sente-se direito, Gary.
— Mas ele...
— Sente-se! Jesse Aarons, não quero mais nem um pio vindo do seu lugar. Se não, você fica sem recreio. Agora, todos copiando o dicionário.
Jess sentiu o rosto ficando quente.
Guardou a folha do caderno de novo dentro da carteira e abaixou a cabeça. Mais um ano inteiro daquilo. Mais oito anos daquilo. Não tinha certeza de conseguir aguentar.

* * *

Todos lancharam sem sair das carteiras. Havia mais de vinte anos que o distrito prometia um refeitório a Córrego da Cotovia, mas parecia que o dinheiro nunca dava.
Jess ficara com tanto medo de perder o recreio que até agora, mastigando seu sanduíche de mortadela, continuava de boca fechada e olhos baixos, comendo sobre o coração com as iniciais.
À sua volta, todo mundo conversava. Não deviam falar enquanto comiam, mas era o primeiro dia e até mesmo Myers Boca-de-Monstro lançava menos faíscas no primeiro dia.
— Ela está comendo mingau.
Duas carteiras adiante da dele, Mary Lou Peoples se esforçava para manter seu posto de segunda menina mais fresca da 5ª série.
— É iogurte, sua imbecil. Você não vê televisão, é? — cortou Wanda Kay Moore, a fresca número um, que se sentava logo na frente de Jess.
— Eca!
Deus do céu, será que elas não conseguiam deixar os outros em paz? Por que é que Leslie Burke não podia comer o que tivesse vontade?
Ele esqueceu que estava tentando comer em silêncio e tomou um gole de leite fazendo barulho.
Wanda Moore virou para trás, fazendo uma careta:
— Jesse Aarons, esse som é repugnante...
Ele olhou bem para a cara dela e deu outro gole baruIhento.
— Você é nojento!
Rrrrringue! O sinal do recreio. Num pulo, os meninos já se acotovelavam junto à porta, todos querendo sair primeiro...
— Sentem-se, garotos... Deus do céu!
... enquanto as meninas fazem fila para sair para o pátio.
— Primeiro, as damas.
Os meninos se agitavam na beirada das cadeiras, como mariposas lutando para sair dos casulos. Será que ela nunca ia deixar que eles voassem?
— Muito bem, meninos, agora é sua vez... Se vocês quiserem ir...
Eles não lhe deram a menor chance de mudar de ideia. Já estavam quase alcançando o final do campo antes que ela chegasse à metade da frase.
Os dois primeiros a chegar lá fora começaram a riscar o chão com a ponta do pé, para marcar a linha de chegada. O chão tinha sido encharcado por várias chuvas passadas, e depois tinha endurecido com a estiagem do verão, de modo que eles tiveram de desistir de traçar a linha com a ponta dos tênis e trataram de riscá-la com um pedaço de pau.
Os meninos da 5ª série, ardendo de impaciência com a nova importância que acabavam de adquirir, davam ordens aos da 4ª a torto e a direito, enquanto os menores tentavam se meter pelo meio deles sem chamar a atenção.
— Quantos de vocês vão correr? — perguntou Gary Fulcher.
— Eu...
— Eu...
— Eu...
Todo mundo gritava ao mesmo tempo.
— É gente demais. Ninguém da 1ª, nem da 2ª nem da 3ª série... a não ser, talvez, os dois primos Butcher e Timmy Vaughn. O resto só vai atrapalhar.
Vários ombros deram mostras de desânimo, mas de qualquer modo os meninos menores obedeceram e recuaram.
— Muito bem. Isso nos deixa com vinte e seis, vinte e sete... fiquem quietos... vinte e oito. Confere, Greg? — perguntou Fulcher a Greg Williams, que parecia a sombra dele.
— Exato. Vinte e oito.
— Muito bem. Então, vamos fazer as eliminatórias, como sempre. Dividimos em quatro grupos. Primeiro, correm os do grupo um. Depois, os do dois...
— A gente já sabe, chega...
Todo mundo estava impaciente com Gary, que tentava a todo custo parecer o Wayne Pettis desse ano.
Jess estava no grupo quatro, o que para ele era ótimo. Estava louco para correr, mas na verdade não se incomodava de ter a oportunidade de ver como estavam os outros, desde a primavera. Fulcher estava no grupo um, claro, porque tinha começado tudo com ele mesmo. Jess conteve um sorriso pelas costas de Fulcher, e enfiou as mãos nos bolsos de suas calças de veludo cotelê, até o dedo médio da mão direita se meter num buraco que havia no fundo.
Gary ganhou a primeira bateria com a maior facilidade e ainda ficou cheio de fôlego para dar ordens na organização da segunda. Alguns dos meninos menores saíram de perto e foram brincar de escorregar no barranco que ficava entre o terreno mais alto e o mais baixo.
Pelo canto do olho, Jess viu que alguém vinha descendo e chegando perto. Virou as costas e fingiu que estava se concentrando nas ordens que Fulcher gritava.
— Ei! — Leslie Burke tinha chegado junto dele.
Jess chegou ligeiramente para o lado.
— Ahnnn...
— Você não vai correr?
— Mais tarde.
Quem sabe, se ele não olhasse para ela, a menina ia embora, voltava ao terreno lá de cima, que era o lugar dela.
Gary mandou Earle Watson dar o sinal de partida. Não havia ninguém com muita velocidade naquele grupo. Jess ficou observando as costas curvadas e as camisas dos corredores esvoaçando.
Na linha de chegada, estourou uma briga entre Jimmy Mitchell e Clyde Deal. Todo mundo foi ver de perto. Jess estava consciente de que Leslie Burke continuava grudada no cotovelo dele, mas tomou o maior cuidado para não olhar na direção dela.
— Clyde — decretou Gary Fulcher. — Quem ganhou foi Clyde.
— Eles empataram, Fulcher — protestou um aluno da 4ª série. — Eu estava parado bem aqui e vi.
— Clyde Deal ganhou.
Jimmy Mitchell estava apertando a mandíbula. De raiva.
— Quem ganhou fui eu, Fulcher. De onde você estava, nem dava para ver nada.
— O vencedor foi Deal — insistiu Gary, ignorando os protestos. — Estamos perdendo tempo. Agora o pessoal do grupo três. Vamos logo.
Os punhos de Jimmy se ergueram:
— Não é justo, Fulcher.
Gary virou as costas e saiu caminhando em direção à linha de largada.
— Deixa os dois disputarem a final... Que mal faz? — disse Jess, em voz alta.
Gary parou de andar e se virou para encarar Jess. E, em seguida, olhou para Leslie Burke. Com a voz destilando sarcasmo, zombou:
— Só falta agora você querer deixar alguma garota correr também...
O rosto de Jess ficou quente. Mas, como quem não se importa, ele só disse:
— Claro. Por que não?
Virou-se para Leslie e perguntou:
— Quer entrar na corrida?
— Claro — confirmou ela, sorrindo. — Por que não?
— Você não tem medo de disputar a corrida com uma menina, não é, Fulcher? Ou será que tem?
Por um minuto, achou que Gary ia enchê-lo de socos, e ficou tenso, esperando. Não podia deixar Gary desconfiar que estava com medo e que sentia um aperto na garganta. Mas o outro não o atacou e, em vez disso, saiu num passo apressado, dando ordens aos meninos do grupo três, que se preparavam para a disputa.
— Você pode correr no grupo quatro, Leslie — disse Jess, em voz bem alta, para ter certeza de que Fulcher tinha ouvido.
Depois, se concentrou nos corredores.
“Viu só”, disse a si mesmo, “você pode enfrentar um mandão que nem Fulcher. É só não esquentar a cabeça”.
Bobby Miller ganhou fácil no grupo três. Era o melhor na 4ª série, quase tão rápido quanto Fulcher. “Mas não é tão bom quanto eu, agora”, pensou Jess. Estava começando a ficar realmente animado. Não havia ninguém no grupo quatro que pudesse ganhar dele numa corrida. Mas, de qualquer modo, era bom ir logo dando um susto em Fulcher, e correr bem rápido naquela bateria de aquecimento.
Leslie se alinhou a seu lado, à direita. Ele chegou um pouquinho para a esquerda, mas parecia que ela nem tinha reparado.
Dado o sinal, Jess disparou. Sentia-se bem... até mesmo distinguindo o chão áspero nas solas gastas dos seus tênis velhos. Estava indo bem. Quase podia sentir o cheiro do espanto de Gary Fulcher diante de seu progresso. Os outros meninos gritavam, torciam, faziam mais barulho do que tinham feito nas outras baterias. Talvez estivessem todos notando como ele melhorara. Queria olhar para trás e ver onde os outros estavam, mas resistiu à tentação. Ia parecer convencimento. Concentrou-se na linha à sua frente. A cada passo, ela chegava mais perto. “Ah, Miss Bessie, se você pudesse me ver agora...”
Sentiu antes de ver. Alguém se aproximava, veloz. Automaticamente, fez mais esforço, deu mais impulso. Aí a forma chegou à sua visão lateral. E de repente, passou a sua frente. Ele se esforçou ainda mais, deu tudo. Estava quase sem fôlego, o suor escorria e entrava nos olhos. Mas de qualquer modo, percebeu o vulto. A calça desbotada e cortada cruzou a linha de chegada quase um metro antes dele.
Leslie se virou e olhou para ele com um sorriso amplo no rosto bronzeado. Ele tropeçou e, sem dizer uma palavra, começou a andar, quase correndo, de volta para a linha de partida. Esse era o dia em que ia ser campeão... ia ser o corredor mais veloz da 4ª e 5ª séries juntas, e nem ao menos conseguira ganhar a sua bateria.
Em nenhum dos extremos do campo se ouvia um grito, ou um “Viva!” sequer. Os outros meninos estavam tão chocados quanto ele. A gozação viria mais tarde, ele tinha certeza.
Mas, pelo menos, na hora, ninguém dizia uma palavra.
— Muito bem — Fulcher assumiu o comando de novo, tentando mostrar que continuava controlando a situação. — Agora os vencedores se alinham para a disputa final.
Andou em direção a Leslie e ordenou:
— Você já se divertiu. Agora pode correr e ir brincar amarelinha lá em cima.
— Mas eu ganhei a eliminatória — disse ela.
Gary baixou a cabeça, como um touro que fosse investir.
— Menina não pode brincar no terreno daqui de baixo. É melhor você ir lá para cima antes que alguma professora te veja.
— Mas eu quero correr — disse ela, tranquila.
— Tudo bem, já correu...
— O que é que está acontecendo, Fulcher? — perguntou Jess, com toda sua raiva vindo à tona, como se não pudesse ser controlada. — O que é que há? Está com medo de disputar com ela?
Fulcher ergueu o punho, ameaçador, mas Jess se afastou. Fulcher ia ter que deixá-la correr agora, ele sabia. E deixou.
Com raiva e resmungando, mas deixou.
E ela o derrotou. Chegou em primeiro lugar e virou seus olhos imensos e brilhantes para um bando de caras suadas e zangadas, com ar de idiotas.
O sinal tocou. Jess começou a atravessar o terreno de baixo, ainda com as mãos enfiadas nos bolsos, bem no fundo. Ela o alcançou. Ele tirou as mãos dos bolsos e foi andando mais depressa para a colina. Já se metera em encrenca demais por causa dela. Mas a menina apertou o passo, recusando-se a ser deixada para trás.
— Obrigada — disse.
— É? — disse ele, enquanto pensava “Por quê?”.
— Você é o único menino nesta porcaria desta escola em quem vale a pena a gente dar um tiro.
— Pois então, atire — disse ele.
No ônibus, naquela tarde, ele fez uma coisa que nunca pensara fazer. Sentou-se ao lado de May Belle. Era o único jeito de garantir que Leslie não ia se instalar ao lado dele. Deus do céu, aquela garota nem desconfiava que há coisas que simplesmente não se fazem.
Ficou olhando pela janela, lá para fora, mas sabia que ela tinha chegado perto e sentado logo ali, do outro lado do corredor.
Percebeu que ela tinha dito “Jess” uma vez, mas como o ônibus era muito barulhento, deu para fazer de conta que não tinha ouvido. Quando chegou a hora de descer, ele agarrou a mão de May Belle e a puxou para fora, o tempo todo consciente de que Leslie vinha bem atrás. Mas ela não tentou falar com ele de novo, nem os seguiu. Só saiu correndo para a velha casa dos Perkins.
Ele não conseguiu deixar de se virar para ver. Ela corria como se isso fizesse parte de sua natureza. Fez com que ele se lembrasse do voo dos patos selvagens no outono. Tão suave... A palavra “bonito” lhe veio à mente, mas ele a sacudiu para longe, e tratou de ir depressa para casa.

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