terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 4 - Os reis de Terabítia

Como o primeiro dia de aula foi uma terça-feira, depois de um feriado, a semana foi meio curta. Ainda bem, porque a cada dia tudo ia ficando pior do que na véspera.
Leslie continuou a ir para junto dos meninos na hora do recreio, e todos os dias ela ganhava a corrida. Na sexta-feira, um bom número de meninos da 4ª e da 5ª séries já estavam preferindo brincar de deslizar no barranco entre os dois terrenos.
Como ficaram poucos, não precisavam mais fazer eliminatórias com várias baterias, e isso diminuía muito a emoção. Correr era agora uma coisa sem graça. E tudo por causa de Leslie.
Agora Jess sabia que nunca iria conseguir ser o corredor mais veloz entre os alunos da 4ª e da 5ª série juntos, e seu único consolo era que Gary Fulcher também não conseguiria. Eles chegaram a disputar todas as etapas da competição da sexta-feira, mas, como tudo acabou com mais uma vitória de Leslie, todo mundo teve a certeza absoluta de que aquilo significava o fim das corridas para sempre, nem precisava dizer nada.
Pelo menos, era sexta-feira, dia de Miss Edmunds voltar. A aula de Música da 5ª série era logo depois do recreio. Jess tinha passado por Miss Edmunds no saguão logo cedo e ela o tinha parado para conversar, toda interessada:
— E então? Continuou desenhando durante o verão?
— Sim, senhora.
— Posso ver seus desenhos ou é segredo?
Jess jogou para trás o cabelo que caía sobre a testa, vermelho:
— Eu mostro pra senhora.
Ela sorriu, aquele sorriso lindo, de dentes perfeitos e lançou para trás dos ombros os cabelos negros e brilhantes:
— Ótimo! Estou esperando.
O menino cumprimentou com a cabeça e ela tornou a sorrir. Até os dedos dos pés dele ficaram quentes e formigando.
Agora, sentado no tapete no chão da sala dos professores, tornava a sentir aquela sensação de calor gostoso, que se espalhava por todo o seu corpo apenas com o som da voz dela. Até mesmo quando ela estava só falando, sua voz brotava de dentro, rica e melodiosa.
Miss Edmunds brincou um pouco com o violão, dando uns acordes, conversando enquanto apertava as cordas, em meio ao tilintar das pulseiras. Como sempre, estava de jeans, e se sentava com as pernas cruzadas diante deles, como se esse fosse o jeito normal de todos os professores.
Perguntou a alguns dos alunos como estavam, e como tinham passado o verão. Eles resmungaram alguma coisa de volta.
Não falou diretamente com Jess, mas lançou para ele um olhar, com aqueles olhos azuis, que fez com que ele vibrasse como uma das cordas que ela estava afinando.
De repente, reparou na presença de Leslie e pediu para ser apresentada. Uma das garotas se encarregou disso. Então ela sorriu para Leslie, que sorriu de volta – a primeira vez que Jess se lembrava de ter visto Leslie sorrir desde que ela vencera a corrida da terça-feira.
— O que é que você gosta de cantar, Leslie?
— Qualquer coisa...
Miss Edmunds tocou alguns acordes a esmo e depois começou a cantar, mais baixinho do que costumava:

Vejo uma terra brilhante
E está chegando a hora
Em que vamos viver nela
Você e eu, de mãos dadas...

Um a um, todos foram começando a cantar junto, primeiro bem baixinho, para combinar com o jeito dela, mas à medida que a canção se aproximava do fim, as vozes foram se somando e crescendo, de modo que quando chegaram ao final que dizia “Livres para sermos quem somos”, a escola inteira podia ouvir.
Levado pela alegria deliciosa que sentia, Jess se virou e seu olhar cruzou com o de Leslie. Sorriu para ela. E por que não? Não havia nada que impedisse. Afinal de contas, do que é que ele tinha medo? Deus do céu. Às vezes ele se portava de um jeito tão esquisito, que ele mesmo não entendia. Inclinou a cabeça e sorriu de novo. Ela sorriu de volta.
Sentado ali, no chão da sala dos professores, ele sentia que aquilo era o começo de uma nova fase de sua vida, e resolveu, deliberadamente, que ia ser mesmo.
Não precisou anunciar formalmente a Leslie que tinha mudado de ideia a respeito dela. A menina já sabia. Instalou-se no banco ao lado dele no ônibus e até chegou mais perto, para dar lugar para May Belle no mesmo assento.
Foi conversando sobre Arlington, sobre a imensa escola onde estudava antes, nos arredores da cidade, e que tinha uma sala de música maravilhosa, mas não tinha uma só professora que fosse tão bonita nem tão legal quanto Miss Edmunds.
— Vocês tinham um ginásio de esportes?
— Tínhamos. Eu achava que tudo quanto era escola tinha. A maioria, pelo menos — suspirou ela. — Sinto muita falta mesmo. Eu era muito boa em ginástica.
— Aposto que você odeia estar aqui.
— Odeio.
Durante um momento, ela ficou quieta, pensando na escola antiga. Jess percebeu e também começou a imaginar como seria uma escola novinha em folha, com um ginásio todo equipado, muito maior do que o que eles tinham.
— Aposto que você também tinha um monte de amigos lá.
— Tinha mesmo.
— Por que vocês vieram para cá?
— Meus pais estão querendo reavaliar sua escala de valores.
— O quê?
— Eles chegaram à conclusão de que estavam muito ligados em dinheiro, sucesso, essas coisas, então resolveram comprar aquele sítio velho, e cuidar dele um pouco, trabalhar a terra, e pensar sobre o que é mesmo importante na vida.
Jess estava olhando para ela com a boca aberta. Sabia que estava, mas não conseguia evitar. Era a coisa mais ridícula em que ele já ouvira falar.
— Mas você é que acaba pagando.
— Pois é...
— Eles não pensam em você não, é?
— A gente conversou muito sobre isso tudo — explicou ela, pacientemente. — Eu também tinha vontade de vir.
Olhou um pouco pela janela, por trás dele, e concluiu:
— Antes de chegar a hora e a gente viver uma coisa, nunca dá mesmo para saber como é que vai ser.
O ônibus tinha parado. Leslie segurou a mão de May Belle e a ajudou a saltar. Jess foi atrás, tentando entender como é que duas pessoas adultas e uma menina esperta como Leslie podiam querer deixar uma vida confortável num bairro bom de uma cidade para vir morar num lugar daqueles.
Ficaram olhando o ônibus se afastar.
— Não dá para uma família viver só do que produz na terra hoje em dia, sabe? — disse ele, finalmente. — Meu pai tem que ir trabalhar em Washington, senão o dinheiro não dá...
— O problema não é o dinheiro.
— Claro que é.
— Não, quero dizer, para nós não é... — corrigiu ela.
Ele levou um minuto para entender. Nunca tinha conhecido ninguém para quem dinheiro não fosse o problema.
— Ah!...
Depois disso, ficou sempre tentando tomar cuidado para não falar com ela sobre dinheiro.
Mas Leslie tinha outros problemas em Córrego da Cotovia, que eram muito mais complicados do que a falta de dinheiro. O da televisão, por exemplo.
Tudo começou quando a senhora Myers leu em voz alta uma redação que Leslie tinha escrito sobre seu passatempo favorito.
Todo mundo tinha tido que escrever sobre o mesmo assunto. Jess escolhera futebol, que ele na verdade detestava, mas não era bobo e sabia que se resolvesse falar em desenho, todo mundo ia rir dele. A maioria dos meninos jurava que ficar vendo os jogos dos Washington Redskins pela televisão era seu passatempo favorito. As meninas se dividiam: as que não ligavam muito para o que a senhora Myers ia dizer escolheram os programas de auditório de tevê, e as outras, como Wanda Kay Moore, que ainda estavam pretendendo ter as melhores notas, escolheram ler bons livros. Mas a senhora Myers não leu nenhuma redação em voz alta, a não ser a de Leslie.
— Quero ler esta redação para vocês. Por duas razões. A primeira é que é muito bem escrita. E a segunda é que trata de uma atividade muito pouco comum... para uma menina.
A senhora Myers deu seu primeiro sorriso para Leslie, que abaixou os olhos e ficou olhando a carteira. Ser a queridinha da professora era a pior coisa que podia acontecer a alguém em Córrego da Cotovia.
— Mergulho submarino, por Leslie Burke.
A voz aguda da senhora Myers foi lendo e cortando as frases de Leslie numas sentencinhas engraçadas. Mas, mesmo assim, o poder das palavras de Leslie carregou Jess com ela para debaixo d’água. De repente, ele mal conseguia respirar. E se alguém mergulhasse e a máscara se enchesse de água e não desse para voltar à superfície a tempo? Ele suava, se sentia quase sufocando. Tentou se acalmar, não entrar em pânico. Era o passatempo favorito de Leslie. Ninguém ia inventar que adorava mergulhar se não fosse verdade. Quer dizer que Leslie fazia isso muito, sempre. Que ela não tinha medo de ir lá no fundo, bem fundo, num mundo sem ar e com pouca luz.
Deus do céu, ele era mesmo um covarde. Como é que ele podia ficar assim, nesse estado, quase tremendo, só de ouvir a senhora Myers ler? Como se fosse mais nenenzinho do que Joyce Ann. O pai queria que ele fosse um homem. E ali estava ele, permitindo que uma menina que não tinha nem dez anos completos o tirasse do sério e o deixasse naquele estado, apavorado, só por descrever daquela maneira como era mergulhar para ver as coisas bonitas que existem debaixo d’água. Ele estava mesmo sendo um bobo. Um bobalhão.
— Tenho certeza — disse a senhora Myers — de que vocês todos ficaram tão impressionados quanto eu, com a maravilhosa descrição de Leslie.
Impressionados? Deus do céu, ele quase tinha se afogado... Por toda a classe se ouviu um barulho de papéis, e de pés se arrastando.
— Agora eu vou lhes dar um dever de casa...
Resmungos abafados.
— ... que eu tenho certeza de que vocês vão gostar.
Exclamações de descrença.
— Hoje à noite, às oito horas, no canal 7, vai ser exibido um especial sobre um famoso explorador submarino, Jacques Cousteau. Eu quero que todo mundo assista. Em seguida, escrevam uma página contando o que aprenderam.
— Uma página inteira?
— Exatamente.
— Se errar na ortografia de alguma palavra, a gente perde ponto?
— Erro de ortografia não faz perder ponto sempre, Gary?
— Os dois lados do papel?
— Basta um, Wanda Kay. Mas dou um crédito maior a quem fizer um trabalho mais longo.
Wanda Kay sorriu, toda convencida. Já dava para ver umas dez páginas tomando forma naquela cabeça pontuda que ela tinha.
— Senhora Myers...
— Sim, Leslie...
Deus do céu, se a senhora Myers continuasse arreganhando aquele sorriso, daquele jeito, ia acabar rachando a cara ao meio.
— E se alguém não puder assistir ao programa?
— Diga a seus pais que é um dever, para nota. Tenho certeza de que eles vão deixar.
— E se...
A voz de Leslie falhou. Depois, ela sacudiu a cabeça para o lado, e deu um pigarro. As palavras saíram mais fortes do que nunca.
— E quem não tiver televisão em casa?
“Leslie, Leslie, não diga isso. Você pode assistir na minha”. Mas já era tarde demais para salvá-la. As exclamações de descrença já não estavam mais sendo sussurradas, porém se erguiam bem alto, como uma muralha, um paredão barulhento de desprezo.
A senhora Myers apertou os olhos e piscou.
— Bom, nesse caso... — ela hesitou, piscando cada vez mais, dava para ver que estava pensando num jeito de salvar Leslie. — Nesse caso, a pessoa pode escrever uma redação de uma página sobre algum outro assunto. Não pode, Leslie?
A professora tentava sorrir para Leslie, por cima do tumulto que se formou na turma, mas não adiantava.
— Meninos, silêncio! Silêncio! Silêncio!
O sorriso que estava dando para Leslie se transformou de repente, virando uma cara feia que fez todo mundo ficar quieto.
Em seguida, distribuiu umas folhas mimeografadas com uns problemas de aritmética. Jess lançou um olhar em direção a Leslie, que estava de cabeça baixa sobre a folha de papel, vermelha até as orelhas.
Na hora do recreio, enquanto brincava de deslizar no barranco, viu que Leslie tinha sido cercada por um bando de meninas, chefiadas por Wanda Kay. Não conseguia ouvir o que elas estavam dizendo, mas pelo jeito orgulhoso com que Leslie levantava a cabeça e estava toda durinha, dava para ter certeza de que estavam todas zombando dela. Então Greg Williams o agarrou e, enquanto brincavam de lutar, Leslie desapareceu.
Na verdade, ele não tinha nada a ver com aquilo, mas empurrou Greg ladeira abaixo e gritou, sem ser para ninguém em especial:
— Tenho que ir embora!
Parou perto da porta do banheiro das meninas. Dali a poucos minutos, Leslie saiu. Dava para ver que tinha chorado.
— Ei, Leslie! — chamou baixinho.
— Suma da minha frente!
Ela se virou de repente e foi se afastando, bem depressa. De olho na porta da secretaria, ele correu atrás dela – ninguém podia ficar pelos corredores ou no saguão na hora do recreio.
— Leslie, o que foi que houve?
— Você sabe muito bem o que foi que houve, Jess Aarons.
— Sei — confirmou ele, coçando a cabeça. — Se ao menos você tivesse ficado de boca fechada, podia ver na minha...
Mas ela já tinha dado as costas outra vez, e saído a toda velocidade pelo saguão.
Antes que ele conseguisse terminar a frase e alcançá-la, ela já estava batendo a porta do banheiro das meninas bem na cara dele.
Jess saiu do prédio. Não podia se arriscar a ser apanhado pelo senhor Turner rondando a porta do banheiro feminino, como se fosse um tarado ou qualquer coisa assim.
Quando acabaram as aulas, Leslie entrou no ônibus antes dele e foi se sentar bem no cantinho do último banco – bem onde o pessoal da 7ª série gostava de sentar. Ele lhe fez um sinal com a cabeça, para avisar que ela viesse mais para a frente, mas a menina nem olhou na direção dele. Já dava para ver a turma da 7ª vindo para o ônibus – aquelas meninas mandonas e peitudas e os meninos malvados, magricelas, de olhos apertados e cara feia.
Eles iam matar a Leslie por ter invadido seu território. Jess deu um pulo, disparou até o fundo do ônibus e agarrou a menina pelo braço.
— Você tem que voltar para seu lugar de sempre, Leslie.
Enquanto falava, já estava sentindo os meninos maiores empurrando às suas costas, pelo corredor estreito. Na verdade, Janice Avery, que de toda a 7ª série era justamente a pessoa que mais fazia questão de dedicar a vida a infernizar qualquer um que fosse menor do que ela, já estava bem junto dele, dando ordens:
— Passa para lá, pirralho!
Ele se plantou onde estava, o mais firme que podia, embora o coração estivesse querendo sair pela boca.
— Vamos, Leslie... — chamou.
E então se virou para encarar Janice Avery – do cabelo louro e cacheado, foi descendo pela blusa apertada e pelas calças largas, até chegar nos tênis gigantescos. Quando terminou, engoliu em seco, olhou bem para a cara invocada dela e disse, quase com firmeza:
— Acho que aqui atrás não vai ter lugar que dê para você e mais Janice Avery!
Algum engraçadinho gritou de longe:
— Os Vigilantes do peso mandaram lembrança, Janice!
Os olhos de Janice pareciam que iam saltar fora, de tanta raiva, mas ela chegou para o lado, e deu lugar para que Jess e Leslie passassem, a caminho do banco onde sempre sentavam.
Leslie olhou para trás enquanto sentava, e depois se inclinou para a frente, disfarçando, enquanto falava:
— Ela vai se vingar de você, Jess. Está furiosa.
Jess sentiu um calorzinho por dentro, percebendo o tom de respeito na voz de Leslie, mas nem ousou olhar para trás.
— Está pensando o quê? Acha que eu ia deixar qualquer gorda idiota me assustar?
Só quando saíram do ônibus foi que ele conseguiu engolir direito, sem engasgar. Deu até um tchauzinho para o banco de trás, enquanto o ônibus se afastava.
Leslie sorria para ele, por cima da cabeça de May Belle.
— Bom, tchau... — ele se despediu contente.
— Ei, que tal a gente fazer alguma coisa juntos hoje de tarde?
— Eu também. Também quero fazer alguma coisa junto... — guinchou May Belle.
Jess olhou para Leslie. Viu que estava escrito “não” nos olhos dela.
— Hoje não, May Belle. Leslie e eu temos que fazer uma coisa sozinhos desta vez. Você pode levar meus livros para casa e dizer a mamãe que eu fui até a casa dos Burkes. Está bem?
— Você não tem nada para fazer lá. Vocês não tinham combinado nada...
Leslie chegou perto e se inclinou para junto de May Belle, apoiando a mão no ombro magro da pequena.
— May Belle, você quer umas bonecas de papel? Novinhas?
May Belle olhou em volta, desconfiada.
— De que tipo?
— Daquelas vestidas como no tempo da colônia.
May Belle sacudiu a cabeça.
— Só quero se for noiva. Ou Miss América.
— Dá para fazer de conta que são todas noivas. Todas têm vestidos compridos, e lindos...
— Qual o problema com elas?
— Problema nenhum. Estão novinhas.
— Então, por que é que você quer me dar?
— Quando você tiver a minha idade — disse Leslie, suspirando — não vai mais querer brincar com bonecas de papel, só isso. E minha avó me mandou algumas de presente. Sabe como é, avó sempre esquece que a gente está crescendo.
A única avó de May Belle que estava viva morava na Geórgia e nunca mandava nada para ela.
— Você já recortou as bonecas?
— Não, de verdade. Nem são de recortar, elas têm um picote, é só destacar. E as roupas também. Nem precisa de tesoura.
Podiam ver que ela estava fraquejando.
— Que tal você vir com a gente — sugeriu Jess — e dar uma olhada nelas? Se gostar, pode levar para casa de uma vez, quando for dizer a mamãe que eu fiquei aqui... Está bem?

* * *

Depois de acompanharem com os olhos a corrida de May Belle pelo morro abaixo, agarrada a seu novo tesouro, Jess e Leslie se viraram e saíram em disparada pelo campo aberto que ficava atrás da velha casa dos Perkins, indo até o riacho seco que separava os pastos e campos do bosque. Lá ficava uma árvore velha, uma macieira silvestre, bem na margem do leito do riacho. E alguém – há tanto tempo que nem se sabia mais quem era – deixara uma corda pendurada nela.
Os dois se revezavam, agarrando a corda e balançando do alto do barranco sobre o riozinho lá embaixo. Era um dia glorioso de outono, e, quando olhavam para cima enquanto se balançavam, tinham a sensação de estar flutuando, quase voando.
Jess se inclinava para trás e bebia a cor clara e densa do céu. Estava à deriva, solto, como uma nuvem gorda, branca e preguiçosa, levada de um lado para outro sobre o azul.
— Sabe o que é que a gente precisa? — perguntou Leslie de repente.
Do jeito que ele estava se sentindo, meio embriagado de tanto céu, não conseguia imaginar nada de que precisasse na Terra.
— Precisamos de um lugar — continuou ela. — Um lugar só para nós. Um lugar tão secreto que a gente não contasse a ninguém no mundo sobre ele.
Jess voltava, e arrastou os pés no chão para poder parar o balanço. Ela prosseguia, abaixando a voz, quase num sussurro:
— Podia ser um país secreto e nós dois íamos ser os reis, os donos dele. Mandar em tudo.
As palavras dela mexeram em qualquer coisa dentro dele. Bem que gostaria de ser o dono de alguma coisa, poder mandar. Nem que fosse de alguma coisa de mentirinha.
— Boa ideia — concordou. — E onde podia ser isso?
— Ali no bosque, onde ninguém ia poder vir e se meter.
Havia umas partes do bosque de que Jess não gostava. Lugares escuros, onde se sentia quase como se estivesse debaixo d’água. Mas não disse nada.
— Já sei... — ela estava se animando cada vez mais. — Podia ser um lugar mágico, como Nárnia, daqueles livros de histórias. E o único jeito de chegar lá podia ser se balançando nesta corda encantada.
Leslie segurou a corda enquanto falava, os olhos brilhando de entusiasmo.
— Venha — chamou ela. — Vamos descobrir um lugar para construir nosso castelo, nossa fortaleza.
Só tinham dado uns poucos passos para dentro do bosque, do outro lado do riachinho, quando Leslie parou.
— Que tal aqui? — perguntou.
— Ótimo! — concordou Jess, aliviado porque não iam se embrenhar no fundo do bosque.
É claro que, se precisasse, ele iria mais para dentro com Leslie, porque não era covarde e não se importaria de explorar até um pouco mais adiante, indo mais longe pelo meio das colunas de pinheiros, cada vez mais escuras e altas. Mas como um lugar permanente, a que eles iriam sempre, aquele era o lugar que ele também escolheria – onde ainda havia uns arbustos mais baixos e floridos, e dava para brincar de esconder entre os carvalhos e os pinheiros. Um lugar em que o sol se derramava em raios dourados pelo meio das árvores e vinha aquecer seus pés, como um banho morno.
— Ótimo! — repetiu, concordando vigorosamente com um gesto de cabeça. — Este lugar é muito bom para se construir alguma coisa.
O chão embaixo das árvores estava seco e era fácil de limpar. O terreno era quase plano. Ia ser bom.
Leslie deu o nome de Terabítia a esse país secreto, só dos dois, e emprestou a Jess todos os livros de C. S. Lewis sobre Nárnia – O sobrinho do mago, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa – e todos os volumes da continuação... Assim ele ia ficar sabendo de como as coisas se passavam num reino mágico, como os animais e as árvores devem ser protegidos, e como um governante deve se portar.
Isso era o mais difícil. Quando Leslie falava, com as palavras fluindo sonoras de sua boca, tão majestosas, dava para ver que ela tinha tudo para ser uma rainha de verdade. Ele mal conseguia se defender com o inglês comum, quanto mais com a linguagem poética de um rei...
Mas era capaz de fazer muitas coisas.
Os dois trouxeram tábuas e todo tipo de material do monte de sucata que ficava junto ao pasto de Miss Bessie, e assim construíram seu castelo-fortaleza no lugar que tinham encontrado no bosque. Leslie arrumou umas latas vazias de leite em pó, e encheu uma grande com biscoitos e frutas secas e uma pequena com barbantes e pregos. Também encontraram cinco garrafas vazias de Pepsi, que lavaram bem e encheram de água. Era uma reserva para o caso, como disse Leslie, de serem “sitiados”.
Como Deus na Bíblia, eles olharam o que tinham feito e acharam bom.
— Você podia desenhar um retrato de Terabítia, para a gente pendurar no castelo — sugeriu Leslie.
— Não consigo.
Como é que ia explicar a Leslie de um jeito que ela entendesse? Difícil expressar o quanto queria, o quanto lutava para alcançar e captar a vida trêmula à sua volta, e como, por mais que tentasse, ela escapava, escorria pelo meio de seus dedos, e deixava apenas um fóssil seco na página...
— Simplesmente não consigo pegar a poesia das árvores — disse ele.
Ela balançou a cabeça, como quem concordava, e disse:
— Não faz mal. Um dia você consegue.
Ele acreditou. Porque ali, naquela luz sombreada da fortaleza, tudo parecia possível. Eram só os dois, os donos do mundo, e não tinham inimigos. Nem Gary Fulcher, nem Wanda Kay Moore, nem Janice Avery, nem os próprios medos e carências de Jess, nem qualquer um dos adversários que Leslie imaginava atacando Terabítia, nada nem ninguém seria capaz de derrotá-los.

* * *

Poucos dias depois de terminarem o castelo, Janice Avery levou um tombo no ônibus da escola e gritou que Jess tinha dado uma rasteira nela. Fez tanto escândalo que a senhora Prentice, que dirigia o ônibus, mandou Jess descer e ele teve que ir à pé até em casa, mais de cinco quilômetros.
Quando Jess finalmente conseguiu chegar a Terabítia, Leslie estava toda encolhida debaixo de uma das frestas do telhado, buscando um pouco de luz para ler.
Na capa do livro, havia a figura de uma baleia assassina atacando um golfinho.
— O que é que você está fazendo? — perguntou ele ao entrar e se aproximar dela, sentando-se a seu lado no chão.
— Estou lendo. Eu tinha que fazer alguma coisa. Aquela garota!
Dava para ver a raiva dela explodindo na cara, como se fosse um foguete subindo.
— Não faz mal. Eu não me incomodo de andar essa distância.
Afinal de contas, o que era uma caminhada em comparação com coisas bem piores que Janice Avery poderia ter feito?
— É o princípio, Jess. É isso que você precisa entender. Gente assim tem que ser detida. Senão, acabam virando tiranos e ditadores.
Ele se esticou e pegou o livro da baleia das mãos dela, fingindo que estava prestando atenção naquela figura violenta da capa. Perguntou a Leslie:
— Isso estava lhe dando alguma ideia?
— O quê?
— Pensei que você estava tendo alguma ideia a respeito de como conseguir deter Janice Avery.
— Não, seu bobo. A gente tenta é salvar as baleias. Algumas estão ameaçadas de extinção.
Ele devolveu-lhe o livro.
— Então o negócio é salvar as baleias e dar um tiro nas pessoas, hein? — brincou.
Finalmente, ela deu um sorriso.
— Acho que sim, mais ou menos... Me diga uma coisa, você já ouviu falar na história da Moby Dick?
— Quem?
— Bom, era uma baleia branca imensa, chamada Moby Dick...
E Leslie começou a contar uma história maravilhosa sobre uma baleia e um capitão de navio meio maluco, que estava resolvido a acabar com ela. Jess chegava a sentir cócegas nas pontas dos dedos, de tanta vontade de desenhar aquilo tudo. Talvez até conseguisse, se tivesse tintas boas. Tinha que haver um jeito de fazer aquela baleia bem branca, se destacando contra a água escura.

* * *

Primeiro, eles se evitavam na escola. Mas em outubro, já estavam pouco ligando que os outros soubessem sobre sua amizade.
Gary Fulcher, como Brenda, adorava implicar com Jess e falar na “amiguinha” dele. Jess nem se importava. Sabia muito bem que quando os outros falavam em “amiguinha” estavam pensando numa amiguinha que corria atrás deles no recreio, tentando agarrar para dar um beijo. Não dava para imaginar Leslie correndo atrás de um garoto. Era como se a senhora Myers do Queixo Duplo fosse subir no mastro da bandeira. Gary Fulcher podia ir para onde bem entendesse, pentear macaquinhos.
Na verdade, não havia tempo livre na escola, a não ser durante o recreio, e, agora que não havia mais corridas, Jess e Leslie geralmente procuravam algum lugar sossegado, sentavam e conversavam.
A não ser por aquela meia hora mágica às sextas-feiras, o recreio era a única coisa de que Jess gostava na escola. Leslie sempre era capaz de aparecer com alguma coisa engraçada, que ajudava a aguentar aquele dia comprido. Muitas vezes, era uma brincadeira com a senhora Myers. Leslie era uma daquelas pessoas que ficam quietinhas, sentadas em seu lugar na aula, sem puxar conversa, nem ir para o mundo da Lua ou mascar chicletes, enquanto fazem direitinho seus deveres. No entanto, seu cérebro estava sempre aprontando tanta coisa que, se a professora pudesse, ao menos uma vez, olhar do outro lado daquela máscara de perfeição, ia ficar tão horrorizada que sairia correndo.
Jess mal conseguia ficar sério em classe, só imaginando o que devia estar-se passando por trás daquele olhar angelical de Leslie.
Uma manhã inteira, como ela contara no recreio, fora dedicada a imaginar a senhora Myers em uma daquelas fazendas especiais para gordos, que existem no Arizona. Na sua imaginação, a senhora Myers era uma daquelas pessoas viciadas em comida, que escondem balas nos lugares mais esquisitos – até dentro da torneira de água quente! – e acabam sendo descobertas e humilhadas publicamente na frente de todas as outras gordas.
Naquela tarde, Jess teve visões da professora vestida apenas com uma combinação cor-de-rosa, sendo pesada numa balança. “Você anda nos enganando novamente, sua Gordinha!”, diziam as diretoras, todas bem altas e magrelas. E a senhora Myers ficava quase chorando.
— Jesse Aarons!
A voz aguda da professora penetrou em seu sonho. Ele nem conseguia olhar diretamente para a senhora Myers. Ia cair na gargalhada, na cara dela. Achou melhor olhar apenas para a barra do vestido dela, aliás bem torta.
— Sim, senhora.
Tinha que aprender com Leslie. A senhora Myers sempre o pegava quando se distraía, mas nunca desconfiava que Leslie não estivesse prestando atenção. Deu uma olhada em direção à amiga. Estava completamente absorvida em seu livro de Geografia – pelo menos era o que parecia, para alguém que não soubesse.

* * *

Fazia frio em Terabítia em novembro.
Eles não tinham coragem de acender uma fogueira no castelo, embora às vezes fizessem um foguinho do lado de fora e se encolhessem junto dele. Durante algum tempo, Leslie chegou a ter dois sacos de dormir na fortaleza, mas no começo de dezembro o pai notou a ausência deles em casa, e ela teve que levá-los de volta.
Na verdade, foi Jess quem insistiu para que ela os levasse. Não exatamente porque tivesse medo dos Burkes. Os pais de Leslie eram jovens, com dentes bem brancos e muito cabelo – os dois.
Leslie os chamava de Judy e Bill, o que no fundo incomodava Jess muito mais do que ele gostaria de admitir. Não era da sua conta o jeito de sua amiga se dirigir aos pais. Mas a verdade é que não conseguia se acostumar.
Os dois Burkes eram escritores, pai e mãe. Ela escrevia romances e, segundo Leslie, era mais famosa do que ele, que escrevia sobre política. Era mesmo impressionante olhar para a prateleira da estante onde estavam os livros que escreviam. A senhora Burke assinava como Judilh Hancock na capa, o que podia confundir um pouco, mas, quando se olhava a contracapa, lá estava o retrato dela, jovem e séria. O senhor Burke ia a toda hora a Washington, para terminar as pesquisas de um livro em que estava trabalhando. Mas tinha prometido a Leslie que, depois do Natal, ia ficar em casa, fazer uns consertos, cuidar do jardim, ouvir música, ler uns livros em voz alta e só ia escrever quando tivesse um tempo livre.
Eles não combinavam muito com a ideia que Jess fazia de gente rica, mas dava para ver que os jeans que eles usavam não tinham vindo de uma loja qualquer. Não havia televisão na casa dos Burkes, mas havia montanhas de discos e uma aparelhagem de som que parecia ter saído do Jornada nas estrelas. E embora o carro deles fosse pequeno, era italiano, e tinha todo o jeito de ser caríssimo.
Eram sempre muito simpáticos com Jess quando ele aparecia por lá, mas depois começavam de repente a falar sobre política francesa ou quartetos de cordas (que, no começo, Jess achou que era uma caixinha quadrada feita de barbante grosso), ou sobre os esforços para salvar os lobos na região madeireira, ou as sequoias, ou as baleias cantoras, e ele ficava morrendo de medo de abrir a boca e mostrar de uma vez por todas como era idiota.
Também não se sentia à vontade quando Leslie vinha a sua casa. Joyce Ann ficava olhando fixamente para ela, com o dedo indicador na boca, babando. Brenda e Ellie sempre davam um jeito de fazer algum comentário sobre a “amiguinha” dele. A mãe ficava toda dura e cerimoniosa, meio esquisita, como quando a chamavam à escola para alguma coisa. Depois, ficava falando das roupas “estranhas” de Leslie. Ela sempre usava calças, mesmo para ir à escola. Seu cabelo era “mais curto do que o de um menino”. Seus pais eram “quase hippies”.
May Belle então, ou tentava se meter entre Leslie e ele, ou fazia cara emburrada porque ficava de fora. O pai só tinha visto Leslie umas poucas vezes, e acenara com a cabeça, para indicar que estava notando a presença dela. Mas a mãe disse que tinha certeza de que ele não estava gostando nada daquilo, e que reclamava que o filho só brincava com meninas, e os dois estavam muito preocupados, sem saber em que ia dar uma coisa daquelas.
Jess nem se importava com “onde aquilo ia dar”. Pela primeira vez na vida, quando ele se levantava de manhã tinha alguma coisa boa à sua espera. Leslie era mais do que uma amiga. Era um outro ele – mesmo, um Jess mais animado. Era o caminho que levava à Terabítia e a todos os mundos que se abriam mais adiante. Terabítia era o segredo deles.
E era ótimo ser secreto, porque como é que Jess ia poder explicar a alguém de fora o que era? Só de ir andando pela colina abaixo, a caminho do bosque, já lhe dava um calorzinho bom correndo nas veias. Quanto mais chegava perto do leito seco do riacho e da corda na macieira silvestre, mais forte sentia seu coração bater. Segurava a ponta da corda e se balançava para a outra margem com uma espécie de euforia selvagem, e então pousava suavemente os pés, sabendo que era mais alto, mais forte e mais sábio naquela terra misteriosa.
O lugar predileto de Leslie, depois do castelo-fortaleza, era a floresta de pinheiros. Lá, as árvores ficavam tão juntinhas no alto, que o sol mal conseguia penetrar. Com aquela luz escassa, não crescia capim nem arbusto algum debaixo das árvores, e o chão ficava forrado de agulhas de pinheiro, douradas e perfumadas.
— Eu achava que este lugar era assombrado — confessou Jess a Leslie, na primeira tarde em que criou coragem para levá-la até lá.
— Mas é — disse ela. — Só que não precisa ter medo. Não é assombrado com nada ruim.
— Como é que você sabe?
— Dá para sentir. Ouça só.
Primeiro, ele ouviu o silêncio das coisas paradas. Era essa imobilidade que sempre o assustara antes. Mas, dessa vez, foi como o momento em que Miss Edmunds acabava de terminar uma canção, logo depois que os acordes se encerravam num silêncio. Leslie tinha razão.
Ficaram ali parados, sem se mexer, para que os estalinhos das agulhas de pinheiro secas embaixo de seus pés não quebrassem o encanto. Bem longe, lá do mundo cotidiano em que os dois viviam, veio o som do grasnar de gansos voando para o sul.
Leslie respirou fundo.
— Este não é um lugar comum — murmurou. — Até mesmo os reis de Terabítia só vêm aqui de vez em quando, nos momentos de grandes alegrias ou imensas dores. Temos que lutar para que fique sempre assim: sagrado. Não podemos perturbar os Espíritos.
Ele concordou, com a cabeça, sem falar. E, em silêncio, os dois voltaram para a margem do riacho seco, onde dividiram uma refeição solene, de biscoito e frutas secas.

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