Leslie gostava de inventar histórias sobre os gigantes que ameaçavam a paz de Terabítia, mas os dois sabiam muito bem que o único gigante de verdade em suas vidas era Janice Avery.
Evidentemente, ela não estava atrás apenas de Jess e Leslie.
Janice tinha duas amigas, Wilma Dean e Bobby Sue Henshaw, que também eram grandonas, quase do tamanho dela, e as três gostavam de percorrer o pátio na hora do recreio, arrancando das mãos dos menores as pedrinhas que eles usavam para pular amarelinha, ou então correndo pelo meio das cordas de pular, e davam gargalhadas enquanto os pequenos da 2ª série gritavam.
Às vezes começavam o dia plantadas diante da porta do banheiro feminino e só deixavam as pequeninas entrarem se antes elas lhes dessem o dinheiro que tinham trazido de casa para comprar leite na hora da merenda.
May Belle, infelizmente, custava a aprender essas coisas. O pai tinha trazido para ela um pacote de Estrelex – umas balas novas em forma de estrela, que acabavam de ser lançadas e eram difíceis de achar – e ela estava tão feliz, toda prosa com isso, que quando chegou no ônibus esqueceu tudo o que sabia. Foi logo gritando para outra garota da 1ª série:
— Adivinha o que eu trouxe hoje na merenda, Billy Jean...
— O quê?
— Estrelex! — gritou, tão alto que dava até para um surdo ouvir lá no último banco.
Com o canto do olho, Jess viu Janice Avery chegar para a frente, prestando atenção.
Quando os dois se sentaram, May Belle ainda estava anunciando aos quatro ventos todas as qualidades de suas jujubas de estrela, especiais, vindas diretamente das mãos paternas.
— Foi meu pai que trouxe para mim. De Washington!
Jess lançou outro olhar ao último banco, e segredou ao ouvido de May Belle:
— Era melhor você calar a boca sobre essa porcaria de Estrelex.
— Você está é com ciúme, porque papai não trouxe nada para você.
— Então, está bem... — disse ele, dando de ombros e trocando um olhar com Leslie por cima da cabeça da irmã, como quem diz “Eu bem que tentei avisar, você viu!”.
Nenhum dos dois ficou muito surpreso na hora do recreio, quando May Belle se aproximou deles aos berros:
— Ela roubou minhas Estrelex!
Jess deu um suspiro:
— May Belle, eu não disse para você não ficar anunciando?
— Você tem que matar Janice Avery. Matar! Matar! Mata ela!
— Calma... — disse Leslie, acariciando o cabelo de May Belle, mas ela não queria consolo, queria era vingança.
— Você tem que acabar com ela, dar uma surra, picar em um milhão de pedacinhos...
Ele preferia enfrentar a própria mulher do Godzilla.
— Não adianta brigar nem partir para a violência, May Belle. A esta altura, o pacote inteiro de Estrelex já está a caminho de acolchoar mais ainda aquela bunda gorda da Janice Avery.
Leslie deu um risinho, mas May Belle não estava disposta a embarcar em nenhum tipo de distração.
— Você é um covarde, isso sim, Jesse Aarons! Se não fosse um medroso, dava uma surra em qualquer pessoa que tomasse o pacote de bala Estrelex de sua irmãzinha...
E desatou a chorar, numa nova rodada de soluços.
Jess sentiu todo seu corpo ficando rígido. Disfarçou, evitou olhar para Leslie. Deus do céu, agora não tinha como fugir. A essa altura, ia ter que enfrentar a gorilona.
— Escute aqui, May Belle — explicava Leslie. — Se Jess se meter numa briga com Janice Avery, você sabe muito bem o que vai acontecer.
May Belle enxugou o nariz nas costas da mão.
— Sei, sim — confirmou. — Ela vai dar uma surra nele.
— Não, senhora. Nada disso. O que vai acontecer é que ele é que vai ser expulso da escola, por ter batido numa menina. Você sabe muito bem como o senhor Turner é, com essa história de meninos que brigam com meninas.
— Mas ela roubou minhas Estrelex...
— Eu sei que ela roubou, May Belle. E Jess e eu vamos descobrir um jeito de fazer ela pagar por isso. Não vamos, Jess?
Ele confirmou, mexendo a cabeça para cima e para baixo com energia. Qualquer coisa era melhor do que cair numa promessa de brigar com Janice Avery.
— Que é que vocês vão fazer?
— Ainda não sei. Vamos ter que planejar tudo muito direitinho, com cuidado, nos menores detalhes. Mas uma coisa eu prometo, May Belle: nós vamos dar uma lição nela.
— Jura-por-tudo-que-é-mais-sagrado? Tem que cruzar os dedos na frente do coração e depois dar um beijo neles, bem no lugar do encontro da cruz.
Leslie jurou, solenemente. May Belle se virou para Jess, de repente, e ele teve que jurar também, tentando não se sentir um idiota, fazendo aquela cerimônia toda de cruzar dedos e beijar a cruz diante de uma pirralha do primeiro ano, bem no meio do pátio da escola.
May Belle fungou, bem alto, e ainda deixou escapar:
— Não é a mesma coisa que ver aquela bruxa levar uma surra e ser picada em um milhão de pedacinhos.
— Claro que não é — concordou Leslie. — Também acho que não é, mas é o melhor que se pode fazer enquanto o senhor Turner for o diretor desta escola. Não é mesmo, Jess?
— Claro!
* * *
Naquela tarde, encolhidos em sua fortaleza em Terabítia, fizeram um Conselho de Guerra. Como dar uma lição em Janice Avery sem serem triturados nem suspensos – esse era o problema.
— Talvez a gente pudesse apanhá-la fazendo alguma coisa errada... — sugeriu Leslie, tentando um segundo caminho, depois que ambos tinham descartado a ideia de passar mel no lugar dela no ônibus ou encher de cola o vidro de loção que ela vivia esfregando nas mãos.
— Por exemplo, aquele negócio das meninas ficarem fumando no banheiro. Se a gente conseguisse dar um jeito do senhor Turner passar bem na hora em que a fumaça está saindo pela janela...
Jess sacudiu a cabeça, desanimado.
— Ela não ia levar nem cinco minutos para descobrir quem foi que armou tudo...
Ficaram em silêncio durante algum tempo, enquanto consideravam o que Janice Avery não seria capaz de fazer com alguém que a entregasse ao diretor.
— Temos que dar um jeito de ferrar com ela, sem que ela nem desconfie quem foi.
— Isso! — aprovou Leslie, enquanto mastigava um damasco seco. — Você sabe o que é que uma menina como Janice mais odeia?
— O quê?
— Fazer o papel de boba na frente dos outros.
Jess lembrou da expressão na cara de Janice no dia em que ele tinha feito todo mundo rir dela no ônibus. Leslie tinha razão. Havia uma fresta na carapaça daquela hipopótama velha.
— É mesmo! — concordou ele, começando a sorrir. — Vamos fazer alguma coisa com a gordura dela?
Leslie começou a falar devagarinho:
— Que tal... meninos? Um menino? Qual é o menino de quem ela gosta?
— Willard Hughes, eu acho. Todas as garotas da 7ª série são doidas por ele, só falta se jogarem no chão quando ele passa.
— Então, é por aí...
Os olhos de Leslie estavam brilhando.
O plano veio todo pronto, de repente.
— Vamos escrever um bilhete para ela, e fazer de conta que é do Willard. Que tal?
Jess já estava pegando um lápis na lata e arrancando uma folha do caderno que ficava embaixo de uma pedra. Passou tudo para Leslie.
— Não, você é que vai escrever. Minha letra é bonita demais para fingir que é do Willard Hughes.
Ele se preparou e esperou.
— Bom, vamos lá... — disse ela. — Ahnnn... “Cara Janice”. Não, não, melhor ainda: “Querida Janice...”.
Jess hesitou, na dúvida.
— Pode crer, Jess. Ela cai nessa. Então, vamos: “Querida Janice...”. Nem se preocupe com pontuação, ortografia, essas coisas. Temos que fazer parecer que foi mesmo Willard Hughes que escreveu. Vamos lá: “Querida Janice, pode ser que você não acredite em mim, mas eu te amo.”
— E você acha que ela vai engolir? — perguntou ele, enquanto escrevia.
— Eu já lhe disse, tenho certeza, ela cai direitinho. Meninas assim se acham o máximo e acreditam em qualquer coisa quando estão nesse tipo de situação. Vamos lá, continue: “Se você disser que não me ama, vou ficar arrazado. Por favor, não faça isso. Se você me ama tanto quanto eu te amo, meu amor...”
— Espera aí, mais devagar. Não consigo escrever tão depressa.
Leslie esperou. Quando ele a alcançou, ela prosseguiu, com uma voz gozadora:
— “...venha me encontrar hoje de tarde atrás da escola, na hora da saída. Não se preocupe com o ônibus. Eu quero ir andando com você até em casa, conversando sobre NÓS DOIS...”; põe nós dois com todas as letras maiúsculas “...minha querida. Beijos. Willard Hughes.”
— Beijos?
— É, beijos. E desenha um coração no final, também.
Leslie fez uma pausa, olhando por cima do ombro de Jess, enquanto ele acabava. De repente, lembrou:
— Ah! Importantíssimo. Agora escreva: “P.S.”.
Ele escreveu. Ela ditou:
— “Não conte a ningém. Para que nosso amor seja um segredo, só de nós dois, por enquanto.”
— Para que isso?
— Para ter a certeza de que ela vai contar a alguém, seu bobo. Agora deixa eu ver.
Leslie leu o bilhete, com ar de aprovação:
— Perfeito, Você até escreveu arrasado com z e ninguém sem u.
Estudou mais o pedaço de papel e concluiu, satisfeita:
— Puxa, eu sou mesmo boa nessas coisas.
— É mesmo. Aposto que você tinha um grande amor secreto lá em Arlington.
— Jess Aarons, eu te mato.
— Menina, se você matar o rei de Terabítia, vai se meter numa encrenca.
— É... Vou ser uma regicida — disse ela, orgulhosa.
— Regi... o quê?
— Eu já te contei a história do Hamlet?
Ele se recostou e se preparou para ouvir:
— Ainda não — disse, todo feliz.
Deus do céu, ele adorava as histórias de Leslie. Algum dia, quando soubesse desenhar bem, ia pedir que ela escrevesse aquelas histórias num livro e deixasse que ele fizesse as ilustrações.
— Bom... — começou ela. — Era uma vez um príncipe, na Dinamarca, chamado Hamlet...
Mentalmente, ele ia desenhando o castelo, cheio de sombras, e o príncipe aflito e preocupado caminhando pelo alto das muralhas. Como é que ia fazer um fantasma saindo de dentro da neblina? Com lápis de cera não dava, é claro, mas com tinta, talvez, se pusesse uma cor por cima da outra, bem ralinha, até que desse para ver um vulto pálido saindo do fundo do papel.
Teve um arrepio. Sabia que ia conseguir, se Leslie emprestasse as tintas dela.
* * *
A parte mais difícil do plano para se vingar de Janice Avery era fazer o bilhete chegar às mãos dela.
Os dois se esgueiraram para dentro do prédio na manhã seguinte, bem cedo, antes de o sinal tocar. Leslie foi andando vários metros na frente porque, em caso de serem apanhados, ninguém desconfiaria de que estavam juntos. O senhor Turner ficava furioso com meninos e meninas que fossem apanhados se esgueirando juntos pelos corredores.
Quando ela chegou na porta da sala da 7ª série, olhou lá para dentro. Depois, fez sinal para que Jess entrasse. Os cabelos dele ficaram em pé, desde a nuca.
Deus do céu!
— Como é que eu vou saber qual é a carteira dela?
— Achei que você sabia.
Ele abanou a cabeça.
— Então o jeito vai ser levantar a tampa de todas e olhar lá dentro, uma por uma, até ver o nome dela escrito. Vai acabar achando, mas ande depressa. Eu fico aqui fora, vigiando.
Fechou a porta devagar e o deixou lá dentro, futucando em cada carteira, com cuidado para não tirar nada do lugar. Só que as mãos tremiam tanto que ele mal conseguia puxar alguma coisa à procura de um nome escrito.
De repente, ouviu a voz de Leslie lá fora:
— Ah, senhora Pierce, que bom que a senhora chegou! Eu estava aqui parada, justamente à sua espera...
Deus do céu! A professora da 7ª série estava bem ali fora, a ponto de entrar na sala. Ele ficou gelado. Não dava para ouvir, com a porta fechada, o que a senhora Pierce dizia a Leslie.
— Isso mesmo, um ninho muito interessante. Lá na entrada sul do prédio... — a voz de Leslie estava cada vez mais alta. — E como a senhora entende tanto de ciência, eu estava na esperança de que pudesse ir lá comigo ver, um minutinho só, e me dizer que ninho é, de que pássaro.
Houve um murmúrio de resposta.
— Ah, muito obrigada, senhora Pierce — Leslie estava quase gritando. — Um minutinho só, mas é que é tão importante para mim...
Assim que ouviu os passos das duas se afastando, Jess voou pelas carteiras que ainda faltavam e, felizmente, encontrou uma com um livro que tinha o nome de Janice Avery na capa. Jogou o bilhete lá dentro da carteira, por cima de tudo, e saiu correndo da sala, para o banheiro dos meninos, onde ficou escondido até o sinal tocar e ir para a sua classe.
Na hora do recreio, Janice Avery estava toda de segredinhos e cochichos com Wilma e Bobby Sue. Logo depois, em vez de irem implicar com as meninas pequenas, as três passaram direto, de braços dados, e foram assistir ao jogo de futebol dos meninos maiores. Quando o trio desfilou diante deles, Jess viu a cara toda prosa de Janice, rosada e com ar superior. Olhou para Leslie com o canto do olho e a amiga retribuiu o olhar.
No fim das aulas, quando o ônibus já ia sair, um dos meninos da 7ª série, Billy Morris, gritou para a senhora Prentice esperar um pouquinho, porque Janice Avery ainda não tinha chegado.
— Tudo bem, senhora Prentice, pode ir... — avisou Wilma Dean, bem alto. — Ela não vai voltar de ônibus hoje.
Depois, em voz mais baixa, acrescentou:
— Acho que todo mundo sabe que hoje a Janice tem um encontro muito especial, com um garoto que ela está namorando, vocês todos sabem...
— Quem? — perguntou Billy.
— Willard Hughes. Ele está tão fissurado nela que nem aguenta. Até está indo a pé para casa com ela hoje, só para ficarem juntos.
— Ah, é? Então, como é que o 304 acaba de sair do ponto, ali, com Willard Hughes sentado no banco de trás? Se ele está namorando e tinha um encontro, vai ver que esqueceram de avisar pra ele...
— É mentira sua, Billy Morris!
Billy xingou um palavrão e o banco de trás inteiro começou a maior discussão, sobre se Janice Avery e Willard Hughes estavam namorando ou não e se costumavam ou não se encontrar escondidos.
Quando Billy desceu do ônibus, gritou para Wilma:
— É bom você dizer a Janice que Willard vai ficar furioso quando ficar sabendo do que ela anda espalhando pela escola!
A cara de Wilma estava vermelha quando gritou de volta, pela janela:
— Seu palhaço! Vá contar a Willard, para ver só. Pergunte a ele sobre a carta que ele mandou! Você vai ver!
— Coitada da Janice Avery... — disse Jess, mais tarde, quando já estavam no castelo.
— Coitada! Ela merece tudo isso e muito mais...
— Eu sei... — suspirou ele. — Mas mesmo assim...
Leslie parecia meio chocada:
— Você não está arrependido do que a gente fez, está?
— Não, acho que a gente tinha que fazer. Mas mesmo assim...
— Assim o quê?
Ele sorriu.
— Acho que eu tenho pela Janice alguma coisa parecida com o que você sente pelas baleias assassinas...
Ela deu um soquinho no ombro dele:
— Vamos sair por aí e ver se a gente encontra alguns gigantes, ou uns fantasmas para enfrentar. Estou farta dessa Janice Avery.
No dia seguinte, Janice Avery entrou no ônibus fuzilando todo mundo com os olhos, como se desafiasse qualquer um a dizer qualquer coisa. Leslie cutucou May Belle.
May Belle arregalou os olhos:
— Foram vocês...?
— Pssiu... Fomos, sim.
May Belle se virou completamente para trás, olhando para o último banco. Depois se virou de volta e cutucou Jess:
— Você fez ela ficar furiosa desse jeito?
Jess fez que sim com a cabeça, tentando se mexer o mínimo possível.
— Fomos nós que escrevemos a tal carta — segredou Leslie. — Mas não conte a ninguém, ou ela nos mata.
— Eu sei, claro... — disse May Belle, com os olhinhos brilhando. — Claro que não conto.
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