Ainda faltava mais de um mês para o Natal, mas na casa de Jess as meninas já estavam obcecadas por ele. Naquele ano, tanto Ellie quanto Brenda tinham namorados no ginásio, e o problema do que dar a eles e o que esperar deles foi motivo de infinitas especulações e brigas. Brigas porque, como sempre, a mãe reclamava que já havia muito pouco dinheiro para poder dar alguma coisa de Papai Noel às pequeninas, e era um absurdo que as maiores ainda viessem com aquela despesa extra, querendo comprar discos ou camisas para uns garotos que ela nunca vira mais gordos.
— O que é que você vai dar para sua namorada, Jess? — perguntou Brenda, torcendo a boca com aquele jeito feio que ela tinha.
Jess tentou ignorar. Estava lendo um dos livros que Leslie lhe emprestara, e as aventuras de um garoto que tomava conta de porcos eram muito mais importantes para ele do que as implicâncias de Brenda.
— Você não sabe, Brenda? — perguntou Ellie, entrando na conversa. — Jess não tem namorada, não tem nenhuma garota especial.
— Bom, você não deixa de ter razão. Ninguém com a cabeça no lugar ia chamar aquele espantalho de garota.
Brenda chegou a cara bem perto de Jess e deu um riso debochado enquanto dizia a palavra garota com seus lábios enormes e pintados. Algo vermelho e quente ferveu dentro dele, e, se não tivesse dado um pulo da cadeira e saído pela porta afora, teria batido nela.
Mais tarde, ficou pensando, tentando descobrir por que tinha ficado tão zangado. Em parte, é claro que tinha sido porque não admitia que alguém tão imbecil como Brenda ficasse rindo de Leslie. Deus do céu, sentia um aperto no coração quando pensava que Brenda é que era sua irmã de sangue e que, na verdade, ele e Leslie não tinham nenhum parentesco, nada em comum.
“Talvez”, pensou, “eu seja um enjeitado, recolhido por aí, como nas histórias. Ou, então, vai ver que há muito tempo, quando ainda tinha água no riacho, eu vim boiando nele, dentro de um cestinho de vime, calafetado com piche. Meu pai me achou e me trouxe para casa porque sempre quis ter um filho e só tinha aquelas meninas idiotas em casa. Meus pais de verdade, e minhas irmãs e irmãos moram muito longe – mais longe do que Virgínia do Oeste, mais até do que Ohio. Em algum lugar, eu tenho uma família, que mora numa casa cheia de livros e que até hoje chora a perda de seu bebê que foi roubado.”
Teve um arrepio e procurou voltar ao que estava examinando, a origem de sua raiva. Estava furioso, também, porque dali a pouco ia chegar o Natal e ele não tinha nada para dar a Leslie. Não que ela esperasse ganhar alguma coisa cara. Era só porque ele tinha de dar alguma coisa a ela, precisava, tanto quanto precisava comer quando estava com fome.
Pensou em fazer para ela um livro com seus desenhos. Chegou a roubar papel e lápis de cera da escola. Mas nenhum desenho parecia bastante bom, e ele acabava sempre rabiscando toda a página semidesenhada, e enfiando o papel no fogão a lenha para queimar.
Na última semana de aulas antes do recesso, estava cada vez mais desesperado. Não podia pedir ajuda ou conselho a ninguém. O pai dissera que lhe daria o equivalente a um dólar por pessoa da família, mas, mesmo se desviasse um pouco do dinheiro dos presentes dos familiares, nem assim conseguiria ter o bastante para comprar para Leslie alguma coisa que valesse a pena.
Além disso, May Belle estava louca para ter uma boneca Barbie, e ele já tinha prometido que ia fazer uma vaquinha com Ellie e Brenda para fazer a vontade da irmã pequena. Depois, o preço da boneca tinha subido e ele descobriu que ia ter de tirar um pouquinho de cada um dos dólares dos outros para completar a quantia do presente de May Belle. De alguma forma, nesse ano May Belle precisava de alguma coisa especial. Estava sempre meio sozinha, abandonada. Ele e Leslie não podiam incluí-la em suas atividades, mas era difícil explicar isso a alguém como May Belle. Por que ela não brincava com Joyce Ann? Não podiam achar que ele fosse ficar o tempo todo preocupado em distraí-la. Mas, enfim... com tudo isso, ela tinha de ganhar a Barbie.
Ou seja, não havia mesmo dinheiro. E ele parecia empacado em seus esforços para fazer alguma coisa para Leslie. Ela não ia ser igual a Brenda e Ellie, não ia rir dele, qualquer que fosse o presente. Mas era uma coisa dele consigo mesmo: tinha que dar a ela um presente do qual se orgulhasse.
Se tivesse dinheiro, comprava um aparelho de televisão. Um desses pequenos, japoneses, que ela podia ter no quarto sem incomodar Judy e Bill. Não parecia justo que eles, com todo o dinheiro que tinham, tivessem resolvido não ter televisão.
É claro que Leslie não ia ficar na frente da tevê do jeito que Brenda ficava: de boca aberta e olhos esbugalhados, como um peixinho no aquário, horas a fio. Mas, de vez em quando, todo mundo gosta de assistir a um programa. Pelo menos, se ela tivesse televisão, seria uma coisa a menos para o pessoal da escola implicar com ela. Mas, evidentemente, não havia a menor possibilidade de que ele pudesse comprar uma tevê. Só pensar nisso já mostrava como ele estava ficando idiota.
E estava mesmo, Deus do céu...
Sentado à janela do ônibus escolar, olhava lá para fora, infeliz. Era um espanto que uma pessoa como Leslie ficasse perdendo tempo com ele. Só mesmo porque não tinha mais ninguém. Se ela tivesse encontrado qualquer outra pessoa naquela escola imbecil... e ele era tão idiota que quase deixara passar o cartaz sem notar. Mas ouviu um clique num cantinho de sua cabeça, e deu um pulo, empurrando Leslie e May Belle.
— Mais tarde eu encontro vocês — murmurou, se despencando pelo corredor, por cima de uma porção de pernas esticadas. — Vou descer aqui, senhora Prentice, por favor...
— Não é o lugar de você descer.
— Tenho que fazer uma coisa para minha mãe — mentiu.
— Desde que não me meta em encrenca... — disse ela, pisando no freio.
— Garanto que não vou. Obrigado.
Antes mesmo do ônibus parar completamente, ele já tinha saltado e estava correndo para o lugar onde vira o cartaz.
“Cachorrinhos”, estava escrito. “Doamos filhotes. Grátis.”
* * *
Jess chamou Leslie para ir encontrá-lo no castelo na véspera do Natal, de tarde. O resto da família tinha ido ao centro comercial de Millsburg, para umas compras de última hora, mas ele resolveu ficar.
O cachorro era miudinho, marrom e preto, com uns olhos castanhos imensos. Jess pegou uma fita na gaveta de Brenda e foi correndo, atravessando o campo e descendo o morro, com o filhote guinchando no colo.
Antes de conseguirem chegar até o leito seco do riacho, o bichinho já tinha lambido a cara dele toda, e molhado toda a frente de sua jaqueta, mas não dava para se zangar.
Ajeitou-o com cuidado debaixo do braço e se balançou na corda, para o outro lado do riacho, com o jeito mais suave que conseguiu. Podia ter andado, descido o barranco e subido do outro lado, em vez de passar por cima daquele pequeno despenhadeiro. Teria sido mais fácil. Mas Jess achava que era preciso entrar em Terabítia da maneira correta, e não podia deixar que o cachorrinho quebrasse o regulamento. Podia dar azar aos dois.
Na fortaleza, amarrou a fita em volta do pescoço do filhote e deu um laço, rindo, enquanto o bichinho se agitava, tentava puxar o pescoço para trás e morder as pontas da fita. Era um animalzinho esperto e cheio de vida... Um presente de que Jess podia se orgulhar.
Não havia a menor dúvida de que Leslie adorou, era só ver o sorriso dela. Na mesma hora, ela se ajoelhou no chão frio, pegou o cachorrinho no colo, e o abraçou bem junto ao rosto.
— Cuidado! — avisou Jess. — Ele tem um chafariz que molha mais do que uma pistola de água.
Leslie o afastou um pouquinho e perguntou:
— É macho ou fêmea?
Pelo menos uma vez na vida, havia alguma coisa que Jess sabia mais do que ela e podia ensinar:
— Macho — respondeu, feliz.
— Então vamos dar a ele o nome de Príncipe Terriano e nomeá-lo Guardião de Terabítia.
A menina botou o cachorrinho no chão e se levantou.
— Aonde é que você vai?
— Para o bosque de pinheiros. Esta é uma ocasião muito especial, um momento de grande alegria.
Mais tarde, Leslie deu a Jess o presente dele. Era uma caixa de aquarelas, com vinte e quatro tubos de tinta, três pincéis e um bloco de papel grosso, de boa qualidade, especial para artistas.
— Deus do céu! — exclamou ele. — Obrigado.
Tentou pensar em algum jeito melhor de dizer o que estava sentindo, mas não conseguia. Só ficou repetindo:
— Obrigado.
— Não é um presente maravilhoso como o seu — disse ela, humilde — mas espero que você goste.
Ele queria dizer como ela fazia com que se sentisse especial e orgulhoso, que o resto do Natal não importava porque aquele dia tinha sido tão bom... mas as palavras de que precisava não lhe vinham à cabeça.
— Ah, gosto, gosto... — disse.
Depois, começou a se levantar e ficou de quatro, latindo para o Príncipe Terriano. O cachorrinho corria em círculos em volta dele, sem parar, deliciado, latindo todo alegre.
Leslie começou a rir. Jess se animou ainda mais. Tudo o que o cachorro fazia, ele imitava, até cair exausto com a língua pendurada. Leslie ria tanto que nem conseguia falar por causa das gargalhadas.
— Você... você é maluco! Como é que a gente vai ensinar ele a ser um bravo guardião? Você está fazendo ele virar um palhaço...
— R-r-r-uf... — rosnou o Príncipe Terriano, rolando os olhos para cima.
Jess e Leslie ficaram caídos no chão, com dor na barriga, de tanto rir.
— Nesse caso... — disse Leslie, finalmente — ... acho que ele vai mesmo ter de ser nosso bobo da corte.
— E o nome dele?
— Ah, pode ficar sendo esse, não faz mal. Até mesmo um príncipe... — acrescentou ela em sua voz mais terabítica — ... mesmo um príncipe pode ser um grande bobo.
Naquela noite, o brilho da tarde continuou com Jess. Nada o atingia, nem mesmo a tagarelice das irmãs, discutindo sobre quando ou quais presentes iam ser abertos. Ajudou May Belle a embrulhar os presentinhos dela e até cantou Lá vem Papai Noel, com ela e com Joyce Ann. Depois Joyce Ann começou a chorar porque eles não tinham lareira e Papai Noel não ia poder entrar.
De repente Jess ficou com pena, porque a pequenina tinha ido ao centro comercial de Millsburg, e tinha visto todas aquelas coisas, e então ficava assim, esperando que um cara de roupa vermelha viesse para lhe dar tudo o que queria e realizar todos os seus sonhos.
May Belle, com seis anos, já era mais esperta e não acreditava mais nessas bobagens. Só torcia era para ganhar aquela Barbie idiota. Jess estava contente por ter feito uma extravagância e ajudado a comprar a boneca.
Joyce Ann não ia se importar porque ele só tinha uma fivelinha de cabelo para ela. Ia botar a culpa em Papai Noel, e não em Jess, por estar ganhando um presentinho tão à-toa.
Meio sem jeito, abraçou Joyce Ann.
— Vamos, menina, não chore. Papai Noel é esperto, ele dá um jeito de chegar. Não precisa de chaminé, não é mesmo, May Belle?
May Belle olhava para Jess, com seus olhos grandes, solenes, bem abertos. Ele piscou para ela, com ar cúmplice, sem que Joyce Ann percebesse. Ela quase derreteu de tão contente.
Na manhã seguinte, Jess a ajudou a trocar a roupa da Barbie, pelo menos umas trinta vezes. Enfiar o vestido fino por cima da cabeça da boneca e fechar os colchetes um por um era difícil para ela, exigia muita habilidade para seus dedinhos de seis anos.
Ele ganhara uma pista de carrinhos de corrida, que tentou fazer funcionar para agradar ao pai. Não era uma daquelas pistas grandes que sempre eram anunciadas na tevê, mas era elétrica, e ele sabia que, para comprá-la, o pai tinha gasto mais dinheiro do que devia. Só que os carrinhos idiotas ficavam caindo toda hora nas curvas, a ponto do próprio pai começar a xingar tudo, impaciente. Jess queria que estivesse tudo bem. Queria tanto que o pai se orgulhasse do presente que dera... do mesmo jeito que ele, Jess, ficara feliz por ter dado o cachorrinho.
— É maravilhoso! Demais mesmo, pai! Eu só não peguei o jeito ainda... — disse Jess, de cara vermelha, jogando para trás o cabelo que caía na testa quando se curvava sobre as oito pistas de plástico.
— Nada disso. Uma porcaria barata, puro lixo, isso é que é... — respondeu o pai, chutando o chão perigosamente perto do brinquedo. — Hoje em dia o dinheiro não vale mais nada, a gente não consegue comprar nada que valha a pena.
Joyce Ann estava deitada na cama aos berros, chorando porque tinha arrancado a corda de sua boneca falante quando puxou com muita força, e agora a boneca não falava mais. Brenda estava de cara feia, porque Ellie ganhara um par de meias compridas, transparentes, cor da pele, e ela só ganhara umas meias soquete. E Ellie não colaborava em nada, se exibindo de um lado para outro nas meias novas, fingindo que estava ajudando a mãe com a ceia de presunto e batata-doce. Deus do céu, tinha horas em que Ellie era tão fresca quanto Wanda Kay Moore.
— Jess Oliver Aarons Junior, se você puder parar de brincar com esses carrinhos pelo menos um pouco, para ir ordenhar a vaca, eu ficaria muito grata. Miss Bessie não tem dia de folga, sabe? Mesmo que você esteja querendo...
Jess deu um pulo e saiu, feliz por ter uma desculpa para ficar longe daquela pista de corrida, que ele não conseguia fazer funcionar direito, nem que fosse apenas para dar um pouco de satisfação ao pai. A mãe parecia não ter notado como ele respondeu depressa ao seu pedido, mas continuou reclamando:
— Não sei o que eu faria sem Ellie. É a única de vocês todos que se importa comigo, para quem faz diferença se eu estou viva ou morta.
Ellie sorria, como um anjo de plástico. Primeiro, olhando para Jess, depois para Brenda, que a encarou de volta.
Leslie devia estar vigiando para ver se ele aparecia, porque assim que Jess saiu para o quintal, viu que ela também vinha correndo, da velha casa dos Perkins, com o cachorrinho nos seus calcanhares, fazendo círculos à sua volta; Leslie tinha de tomar cuidado para não tropeçar nele.
Os dois se encontraram no curral de Miss Bessie.
— Pensei que hoje de manhã você nem ia conseguir sair.
— Sabe como é, Natal, essas coisas...
O Príncipe Terriano começou a mordiscar os cascos de Miss Bessie. Ela bateu as patas no chão, irritada. Leslie pegou o animalzinho no colo, para Jess poder fazer a ordenha. O cachorrinho ficou cheirando tudo, e lambendo a cara dela, de um jeito que nem deixava a menina falar direito. Ela ria, feliz.
— Seu cachorrinho bobo... — disse, carinhosa.
— Isso mesmo!
Era Natal de novo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário