Respiro pelo meu nariz. Dentro, fora. Dentro.
— É apenas uma simulação, Tris — Quatro diz calmamente.
Ele está errado. A última simulação sangrou em minha vida, andando e dormindo. Pesadelos, não apenas encarando a multidão, mas sentimentos que eu tive na simulação – terror e desamparo, que suspeito ser do que estou com medo. Ataques súbitos de terror no chuveiro, café da manhã, no caminho até aqui. Unhas roídas até o sabugo. E eu não sou a única a me sentir assim, posso dizer.
Ainda assim, aceno com a cabeça e fecho meus olhos.
+ + +
Estou na escuridão. A última coisa que eu lembro é da cadeira de metal e a agulha no meu braço. Dessa vez não há campo, não há corvos. Meu coração bate em antecipação. Que monstros vão rastejar da escuridão e roubar a minha racionalidade? Quanto eu terei que esperar por eles?
Uma esfera azul acende a alguns metros acima de mim e depois outra, enchendo a sala de luz. Eu estou no chão da Caverna, perto do abismo, e os iniciantes em pé ao meu redor, seus braços cruzados e expressões vazias. Procuro por Christina e a encontro em pé entre eles. Nenhum deles se move. O silêncio deles faz minha garganta apertar.
Vejo algo a minha frente – meu próprio reflexo, fraco. Eu o toco, e meus dedos encontram o vidro, frio e suave. Olho para cima. Tem um painel em cima de mim: eu estou numa caixa de vidro. Pressiono acima da minha cabeça pra ver se consigo abrir a caixa. Não se mexeu. Eu estou aprisionada.
Meu coração bate rápido. Não quero ficar aprisionada. Alguém bate no vidro na minha frente. Quatro. Ele aponta para meus pés, sorrindo presunçoso.
Há alguns segundos, meus pés estavam secos, mas agora tenho alguns centímetros de água e minhas meias estão ensopadas. Agacho para saber de onde a água está vindo, mas parece que está vindo do nada, subindo pela parte inferior da caixa. Olho para Quatro e ele encolhe os ombros. Ele se junta à multidão de iniciados.
A água sobe rápido. Está agora no nível dos meus tornozelos. Eu bato contra o vidro com o meu punho.
— Ei! — digo. — Deixe-me sair daqui!
A água sobe pelas minhas pernas nuas, fresca e suave. Eu bato no vidro mais forte.
— Tirem-me daqui!
Olho para Christina. Ela se inclina para Peter, que está ao lado dela, e sussurra alguma coisa no ouvido dele. Ambos dão risada.
A água está nas minhas coxas. Bato com os dois punhos no vidro. Eu não estou tentando chamar a atenção deles mais, estou tentando quebrar. Freneticamente, bato contra o vidro o mais forte que eu posso. Dou um passo para trás e jogo meu ombro contra a parede: uma, duas, três, quatro vezes. Bato na parede até que meu ombro doa, gritando por ajuda, vendo a água subir sobre minha cintura, costela, meu peito.
— Socorro! — grito. — Por favor! Por favor, me ajudem!
Bato no vidro. Eu morrerei nesse tanque. Arrasto minhas mãos trêmulas pelo cabelo.
Vejo Will em pé entre os iniciados, e alguma coisa faz um clique na minha mente. Alguma coisa que ele disse. Vamos, pense. Eu paro de tentar quebrar o vidro. É difícil de respirar, mas eu tenho que tentar. Precisarei da maior quantidade de ar que eu conseguir em alguns segundos.
Meu corpo sobe, sem peso, na água. Flutuo perto do teto e inclino minha cabeça para trás quando a água alcança meu queixo. Ofegante, pressiono meu rosto no vidro acima de mim, puxando o máximo de ar que eu posso. Então a água me cobre, me aprisionando dentro da caixa.
Não entre em pânico. Não adianta: meu coração acelera e meus pensamentos dispersam. Mergulho batendo nas paredes. Chuto o vidro mais forte, mas a água deixa o movimento mais lento. A simulação está dentro da minha cabeça.
Eu grito e água enche a minha boca. Se estiver na minha mente, eu controlo. A água queima meus olhos. Os rostos passivos dos iniciantes me encaram de volta. Eles não ligam.
Eu grito de novo e bato minha mão na parede. Eu ouço alguma coisa. Um som de rachar. Quando puxo minha mão de volta, há uma rachadura no vidro. Eu bato minha outra mão próxima da primeira vez e consigo outra rachadura no vidro, essa maior, passando da minha palma e meus dedos tortos. Meu peito queima como se eu tivesse engolido fogo. Eu chuto a parede. Meus dedos doem pelo impacto, e eu ouço um gemido baixo.
O painel quebra e a força da água contra minhas costas me empurra para frente. Há ar novamente.
Eu suspiro e sento. Estou na cadeira. Engulo seco e agito as mãos. Quatro está parado à minha direita, mas ao invés de me ajudar, ele está me olhando.
— O quê? — pergunto.
— Como você fez aquilo?
— Fazer o quê?
— Quebrar o vidro.
— Eu não sei.
Quatro finalmente me oferece a sua mão. Balanço minhas pernas para o lado da cadeira e quando levanto, me sinto firme. Calma.
Ele suspira e me agarra pelo cotovelo, meio me conduzindo e meio me arrastando pela sala. Nós andamos rapidamente pelo corredor, então eu paro puxando meu braço. Ele olha para mim em silêncio. Ele não vai me informar sem incentivo.
— O que foi? — exijo.
— Você é Divergente — ele responde.
Eu o encaro, medo pulsando por mim como eletricidade. Ele sabe. Como ele sabe? Eu devo ter escorregado. Dito alguma coisa errada.
Eu deveria agir normalmente. Inclino-me para trás, pressionando meu ombro na parede e digo:
— O que é Divergente?
— Não se faça de idiota — ele diz. — Eu suspeitei da última vez, mas dessa vez é óbvio. Você manipulou a simulação, você é Divergente. Eu vou deletar a gravação, mas a menos que você queira acabar morta no fundo do abismo, você vai descobrir uma forma de esconder isso durante as simulações! Agora, se você me der licença.
Ele anda de volta para a sala de simulação e bate a porta atrás dele. Sinto meu coração na garganta. Eu manipulei a simulação, eu quebrei o vidro. Eu não sabia que isso era um ato Divergente.
Como ele sabia?
Desencosto da parede e começo a andar pelo corredor. Preciso de respostas, e sei quem as têm.
+ + +
Ando diretamente para a sala de tatuagem, onde vi Tori pela última vez.
Não há muitas pessoas, é meio da tarde e a maioria deles estão no trabalho ou na escola. Há três pessoas na sala: o outro tatuador, que está desenhando um leão no braço de um cara, e Tori, que está organizando uma pilha de papeis no organizador. Ela olha para cima quando eu entro.
— Olá, Tris — ela diz. Ela olha para o outro tatuador, que está muito focado no que está fazendo para nos notar. — Vamos lá para trás.
Eu a sigo por trás da cortina que separa as duas salas. A sala ao lado contém algumas cadeiras, agulhas de reposição, tinta, blocos de papel e arte-final emoldurada. Tori abaixa a cortina, fechando-a e senta em uma das cadeiras. Sento perto dela, batendo meu pé para que eu tenha alguma coisa para fazer.
— O que está acontecendo? Como as simulações estão indo?
— Muito bem — concordo com a cabeça algumas vezes. — Um pouco bem demais, ouvi dizer.
— Ah.
— Por favor, me ajude a entender — digo baixinho. — O que significa ser... — hesito. Eu não deveria dizer a palavra Divergente aqui. — O que diabos eu sou? O que isso tem a ver com as simulações?
O comportamento de Tori muda. Ela se inclina para trás e cruza os braços. A expressão dela torna-se cautelosa.
— Entre outras coisas, você... você é uma pessoa que está consciente, quando em uma simulação, de que o que está experimentando não é real — ela diz. — Alguém que pode manipular a simulação ou até mesmo pará-la. E também... — ela se inclina para frente e me olha nos olhos — alguém que, já que você também é da Audácia... tende a morrer.
Um peso se instala em meu peito, como se cada sentença que ela falou se empilhasse ali. Tensão se instala dentro de mim, até que eu não consigo segurar mais – preciso chorar ou gritar ou...
Deixo escapar uma risada dura que morre da mesma forma repentina que começou e digo:
— Eu vou morrer, então?
— Não necessariamente. Os líderes da Audácia não sabem sobre você ainda. Eu deletei seu resultado de aptidão do sistema imediatamente e manualmente conectei como Abnegação. Mas não se engane: se eles descobrirem sobre você, eles irão te matar.
Olho para ela em silêncio. Ela não parece louca. Ela parece cautelosa, com um pouco mais de urgência e eu não suspeitaria que fosse desequilibrada, mas ela deve ser. Não há um assassinato em nossa cidade desde que nasci. Mesmo que um sujeito fosse capaz, os líderes de uma facção não seriam.
— Você é paranoica. Os líderes da Audácia não me matariam. As pessoas não fazem isso. Não mais. Há um acordo sobre isso… com todas as facções.
— Ah, você acha isso? — Ela coloca as mãos nos joelhos e me encara, suas características tensas de repente. — Eles pegaram meu irmão, por que não você, uh? O que te faz especial?
— Seu irmão? — digo arregalando meus olhos.
— Sim. Meu irmão. Ele e eu fomos transferidos da Erudição, mas o teste dele foi inconclusivo. No último dia de simulação, acharam o corpo dele no abismo. Disseram que foi suicídio. Porém meu irmão estava indo bem nos treinamentos, ele estava namorando outra iniciante, ele estava feliz — ela sacode a cabeça — você tem um irmão, certo? Não acha que saberia se ele fosse um suicida?
Tento imaginar Caleb se matando. Até mesmo o pensamento soa ridículo para mim. Mesmo se Caleb estivesse miserável, isso não seria uma opção.
As mangas dela estão arregaçadas, então posso ver a tatuagem de um rio no braço direito. Ela fez isso depois que o irmão dela morreu? Era o rio outro medo que ela venceu?
Ela baixa alguns tons sua voz.
— Na segunda fase do treinamento, Georgie foi muito bem, muito rápido. Ele disse que as simulações não eram nem mesmo assustadoras para ele... que eram como um jogo. Então os instrutores tiveram um interesse especial nele. Se empilhavam na sala quando ele fazia a simulação, ao invés de simplesmente deixar o instrutor reportar seus resultados. Sussurrando sobre ele o tempo inteiro. No último dia de simulações, um dos líderes da Audácia foi vê-lo. No dia seguinte, Georgie tinha ido.
Eu poderia ir bem nas simulações se eu mascarasse o que quer que tenha sido que me ajudou a quebrar o vidro. Eu poderia ir tão bem que todos os instrutores tomariam conhecimento. Eu poderia, mas irei?
— Isso é tudo? — digo. — Apenas mudar as simulações?
— Duvido que seja, mas é tudo o que eu sei.
— Quantas pessoas sabem sobre isso? — pergunto, pensando em Quatro. — Sobre manipular as simulações.
— Dois tipos de pessoas. Pessoas que querem você morta. Ou pessoas que vivenciaram isso elas mesmas. Em primeira mão. Ou em segunda, como eu.
Quatro me disse que ele deletaria as minhas filmagens quebrando o vidro. Ele não me quer morta. Ele é Divergente? Era um membro da família? Um amigo? Uma namorada?
Empurro o pensamento para fora da mente. Não posso deixá-lo me distrair.
— Eu não entendo — digo lentamente. — Por que os líderes da Audácia se importam se eu posso manipular a simulação?
— Se eu tivesse descoberto, eu já teria dito a você — ela pressiona os lábios. — A única coisa que eu sei é que mudar a simulação não é com o que eles se importam, é apenas um sintoma de outra coisa. Alguma coisa com que eles se importam.
Tori pega minha mão e pressiona entre suas palmas.
— Pense sobre isso. Essas pessoas te ensinaram a usar uma arma. Eles te ensinaram a lutar. Você acha que eles se importam de feri-la? Matá-la?
Ela solta a minha mão e fica de pé.
— Tenho que ir ou Bud fará perguntas. Tome cuidado, Tris.
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