sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 19

Quando eu entro, a maioria dos outros iniciados - nascidos na Audácia e transferidos – estão reunidos entre os beliches com Peter no centro. Ele segura um pedaço de papel em ambas as mãos.
 “O êxodo massivo dos filhos de líderes da Abnegação não pode ser ignorado ou atribuído a coincidência” — ele lê. — “A recente transferência de Beatrice e Caleb Prior, filhos de Andrew Prior, coloca em questão a solidez dos valores e ensinamentos da Abnegação.”
Frio atravessa minha espinha. Christina, parada na ponta da multidão, olha por cima dos ombros e me encontra. Ela me dá um olhar preocupado. Eu não posso me mover. Meu pai. Agora a Erudição está atacando o meu pai.
  “Por que mais os filhos de um homem tão importante decidiram que o estilo de vida que ele estabeleceu não é admirável?” — Peter continua. — “Molly Atwood, uma companheira da Audácia transferida, sugere que uma educação perturbada e abusiva poderia ser a culpa. Eu a ouvi falar enquanto dormia uma vez, Molly disse, Ela estava dizendo para o pai dela parar de fazer alguma coisa. Eu não sei o que era, mas isso deu pesadelos a ela.
Então essa é a vingança de Molly. Ela deve ter falado com a repórter Erudita com quem Christina gritou.
Ela sorri. Seus dentes são tortos. Se eu bater neles, eu poderia fazer um favor a ela.
— O quê? — demando. Ou eu tento demandar, mas minha voz sai estrangulada. Eu tenho que limpar minha garganta e dizer de novo, — O quê?
Peter para de ler e algumas pessoas se viram. Algumas, como Christina, olham para mim com pena. Sobrancelhas e cantos da boca baixos. Mas a maioria me dá sorrisos presunçosos e olhar sugestivo. Peter se vira por último, com um largo sorriso.
— Me dê isso — digo, segurando minhas mãos. Meu rosto vermelho.
— Mas eu não terminei de ler — ele retruca, riso em sua voz. Seus olhos passeiam pelo papel novamente. — “No entanto, talvez a questão esteja não em um homem desprovido de moralidade, mas nos ideais depravados de uma facção inteira. Talvez a questão seja que nós temos confiado nossa cidade a um grupo de tiranos prosélitos que não sabe nos conduzir longe da pobreza para a prosperidade.
Eu o ataco e tento pegar o papel das mãos deles, mas ele o segura acima da minha cabeça, então não posso alcançar a menos que eu pule, e eu não pularei. Em vez disso, levanto meu calcanhar e bato o mais forte que eu consigo onde os ossos dos pés se conectam com os dedos. Ele range os dentes para abafar um gemido.
Então me lanço para Molly, esperando que a força do impacto a surpreenda e a derrube, mas antes que eu pudesse causar qualquer dano, mãos frias fecham-se na minha cintura.
— É o meu pai! — grito. — Meu pai, seu covarde!
Will me puxa para longe dela, levantando-me do chão. Minha respiração vem rápida, e eu luto para pegar o papel antes que alguém possa ler qualquer coisa. Eu tenho que queimá-lo. Tenho que destruí-lo. Eu devo.
Will me arrasta para fora da sala até o corredor, as unhas cavadas em minha pele. Uma vez que a porta fecha atrás dele, ele me solta e eu o empurro o mais forte que posso.
— O quê? Você pensou que eu não poderia me defender contra um pedaço do lixo da Franqueza?
— Não — diz. Ele fica em frente à porta. — Pensei que eu poderia impedir você de começar uma briga no dormitório. Acalme-se.
— Me acalmar? Me acalmar? É a minha família que eles estavam falando, é a minha facção.
— Não, não é — há círculos escuros embaixo dos olhos dele. — É a sua antiga facção, e não há nada que você possa fazer sobre o que eles falaram, então você pode muito bem, simplesmente, ignorar.
— Você sequer estava ouvindo? — O calor nas minhas bochechas se foi e minha respiração estava mais ofegante agora. — Sua estúpida ex-facção não estava apenas insultando a Abnegação. Eles estão pedindo a derrubada do governo inteiro.
Will ri.
— Não, eles não estavam. Eles são arrogantes e sem graça, e é por isso que eu os deixei, mas eles não são revolucionários. Eles apenas querem falar mais, apenas isso, e eles se ressentem pela Abnegação não ouvi-los.
— Eles não querem pessoas para ouvir, querem pessoas para concordar — retruco. — E você não deveria intimidar pessoas para concordar com você. — Coloco as mãos em minhas bochechas. — Eu não posso acreditar que meu irmão se juntou a eles.
— Ei. Não são todos ruins — ele diz bruscamente.
Eu concordo com a cabeça, mas não acredito nele. Não posso imaginar ninguém saindo da Erudição ileso, embora Will pareça bom.
A porta abre de novo, e Christina e Al saem.
— É a minha vez de ter uma tatuagem — ela diz. — Quer ir com a gente?
Aliso meu cabelo. Eu não posso voltar para o dormitório. Mesmo se Will deixasse, eu estou em desvantagem lá. Minha única escolha é ir com eles e tentar esquecer o que está acontecendo no recinto da Audácia. Eu tenho o bastante para me preocupar sem a preocupação com a minha família.

+ + +

Diante de mim, Al leva Christina sobre suas costas. Ela grita enquanto ele passa pela multidão. As pessoas davam caminho livre quando possível.
Meu ombro continua queimando. Christina me persuadiu a fazer uma tatuagem do selo da Audácia junto com ela. É um círculo com uma chama dentro. Minha mãe não reagiu à que eu tenho na clavícula, então eu não tenho muitas reservas sobre tatuagens. Elas são parte da vida por aqui, apenas parte da minha integração, como aprender a lutar.
Christina também me persuadiu a comprar uma camisa que exponha meus ombros e clavícula, e a passar lápis preto no olho de novo. Eu não me incomodo em objetar mais às mudanças delas. Especialmente depois que eu me encontrei gostando delas.
Will e eu andamos atrás de Christina e Al.
— Eu não posso acreditar que você fez outra tatuagem — ele diz, sacudindo a cabeça.
— Por quê? Porque eu sou uma Careta?
— Não. Porque você é... sensível — ele sorri. Seus dentes são brancos e retos. — Então, qual era o seu medo hoje, Tris?
— Corvos demais — retruco. — Você?
Ele ri.
— Muita acidez.
Eu não pergunto o que isso significa.
— É realmente fascinante como isso tudo funciona — diz. — É basicamente a luta entre seu tálamo, que está produzindo o medo, e seu lóbulo frontal, que toma decisões. Mas a simulação está toda na sua cabeça, então mesmo que sinta que alguém está fazendo isso por você, é apenas você fazendo isso com você mesmo e... — ele para. — Desculpa. Eu pareci como um Erudito. Apenas o hábito.
Encolho os ombros.
— É interessante.
Al quase deixa cair Christina, e ela bate na primeira coisa que ela pode agarrar, que acontece de ser o rosto dele. Ele se encolhe e ajusta seu agarre nas pernas dela. Num relance, Al parece feliz, mas há alguma coisa pesada em seu sorriso. Estou preocupada com ele.
Vejo Quatro parado no abismo, um grupo de pessoas ao redor dele. Ele ri com tanta força que tem que segurar na grade para ter equilíbrio. Julgando pela garrafa em sua mão e o brilho de seu rosto, ele está embriagado, ou bem perto disso. Eu comecei a pensar em Quatro rígido, como um soldado, e esqueci que ele também tem dezoito anos.
— Uh-oh! — diz Will. — Alerta de instrutor.
— Pelo menos não é Eric — digo. — Ele provavelmente nos faria imitar uma galinha ou algo do tipo.
— Sim, mas Quatro é assustador. Lembra quando ele apontou a arma para a cabeça do Peter? Eu acho que Peter se molhou.
— Peter mereceu — digo com firmeza.
Will não discute comigo. Talvez ele tivesse há algumas semanas, mas agora todos nós vimos o que Peter é capaz.
— Tris! — Quatro me chama.
Will e eu trocamos olhares, meio surpresos e meio apreensivos.
Quatro se afasta da grade e caminha para mim. Na nossa frente, Al e Christina param de correr e Christina desliza para o chão. Eu não os culpo de encarar. Nós somos quatro e Quatro está apenas falando comigo.
— Você parece diferente — suas palavras, normalmente cortantes, agora estão lentas.
— Você também — respondo. E ele está: ele parece mais relaxado, jovem. — O que você está fazendo?
— Flertando com a morte — ele retruca, rindo. — Bebendo perto do abismo. Provavelmente não é uma boa ideia.
— Não, não é — eu não tenho certeza se gosto de Quatro desse jeito. Há algo inquietante sobre isso.
— Não sabia que tinha uma tatuagem — ele diz, olhando para a minha clavícula.
Ele dá um gole na garrafa. Seu hálito é forte e intenso. Como o hálito de um homem sem facção.
— Certo. Os corvos — ele diz. Ele dá uma olhada por cima do ombro aos seus amigos, que estão seguindo sem ele, ao contrário dos meus. Ele adiciona: — Eu pediria para você sair com a gente, mas você supostamente não deveria me ver assim.
Estou tentada a perguntar por que ele gostaria de sair comigo, mas suspeito que a resposta tenha alguma coisa a ver com a garrafa na mão dele.
— De que jeito? — pergunto. — Bêbado?
— Sim... bem, não — a voz dele suaviza. — Real, eu acho.
— Fingirei que não.
— Bondade sua — ele coloca os lábios dele perto do meu ouvido. — Você está bonita, Tris.
As palavras dele me surpreendem e meu coração pula. Eu gostaria que não, porque a julgar pelo modo como me olha, ele não tem ideia do que está dizendo. Eu rio.
— Me faça um favor e fique longe do abismo, ok?
— Claro — ele pisca para mim.
Eu não posso evitar, sorrio. Will limpa sua garganta, mas eu não quero me afastar de Quatro, mesmo quando ele anda de volta para seus amigos.
Então Al corre para mim como uma pedra rolando e me joga por cima do ombro. Eu grito, minha face quente.
— Vamos, garota — ele diz. — Eu estou levando você para jantar.
Descanso meus cotovelos nas costas de Al e aceno para Quatro enquanto ele me leva embora.
— Pensei que eu iria salvá-la — Al diz enquanto nós vamos embora. Ele me coloca no chão. — O que foi tudo aquilo?
Ele está tentando parecer alegre, mas ele pergunta quase triste. Ainda se preocupa muito comigo.
— Sim, eu acho que todos nós gostaríamos de saber a resposta para essa pergunta — diz Christina, em uma voz melodiosa. — O que ele disse para você?
— Nada — balanço minha cabeça. — Ele estava bêbado. Ele nem mesmo sabe o que estava dizendo — limpo minha garganta. — Por isso eu estava sorrindo. É... engraçado vê-lo dessa forma.
— Certo — Will aponta. — Não poderia ser porque...
Eu dou uma cotovelada forte nas costelas de Will antes que ele pudesse terminar a frase. Ele estava perto o suficiente para ouvir o que Quatro disse sobre eu estar bonita. Eu não preciso dele dizendo para todo mundo sobre isso, especialmente Al. Não queria que ele ficasse pior.
Em casa, eu costumava passar noites calmas e agradáveis com minha família. Minha mãe tricotava cachecóis para as crianças da vizinhança. Meu pai ajudava Caleb com seu dever de casa. Tinha fogo na lareira e paz no meu coração, como se eu estivesse fazendo exatamente o que eu deveria fazer, e tudo estava quieto.
Eu nunca fui carregada por aí por um garoto grande, ou gargalhado até que minha barriga doesse na mesa de jantar, ou ouvido o rebuliço de centenas de pessoas ao menos tempo.
A paz é contida; isso é livre. 

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