Aperto minha jaqueta ao redor dor meus ombros. Não estive aqui fora por um longo tempo. O sol brilha palidamente contra meu rosto, observo minha respiração formando fumaça no ar.
Pelo menos eu consegui uma coisa: convencer Peter e seus amigos que não sou mais uma ameaça. Eu só preciso me certificar de que amanhã, quando eu enfrentar meu próprio medo, eu prove que eles estão errados. Ontem, falhar parecia algo impossível. Hoje, eu já não tenho mais certeza.
Passo minhas mãos por meu cabelo. A vontade de chorar passou. Junto meu cabelo e o amarro com o elástico que estava no meu pulso. Me sinto mais eu mesma. Isso é tudo que preciso: lembrar quem eu sou. E eu não sou alguém que deixa coisas sem importância, como rapazes e experiências de quase morte, me parar.
Começo a rir, balançando a cabeça. Eu sou?
Escuto o apito do trem. O trem passa pelos trilhos ao redor do complexo da Audácia e continua mais longe do que consigo ver. Onde os trilhos começam? Onde terminam? Como é o mundo além dele? Ando em direção a eles.
Quero ir para casa, mas não posso. Eric nos alertou para não parecermos muito ligados aos nossos pais no dia da visita, logo visitar minha casa seria uma traição à Audácia, e eu não posso arcar com isso. Eric não nos disse que não poderíamos visitar pessoas de outras facções que não fossem as de onde viemos, e minha mãe disse para que eu visitasse Caleb.
Sei que não estou autorizada a sair sem supervisão, mas não consigo me impedir. Ando cada vez mais rápido até que estou correndo. Balançando meus braços, corro ao lado do último vagão até que consigo segurar um dos cabos e me balançar para dentro, estremecendo com a dor que percorreu meu corpo machucado.
Uma vez no vagão, deito de costas para o chão, perto da porta e observo enquanto o complexo da Audácia desaparece atrás de mim. Não quero voltar, mas escolher partir, ser alguém sem facção, seria a coisa mais corajosa que eu teria que fazer e hoje eu me sinto uma covarde.
O vento corre por meu corpo e dá voltas ao redor dos meus dedos. Deixo minha mão descansar para fora do vagão empurrando o vento. Não posso ir para casa, mas posso achar parte dela. Caleb está em cada uma das minhas memórias de infância; ele é parte da minha base.
O trem diminui à medida que se aproxima do coração da cidade, e eu sento para ver os pequenos prédios crescendo entre grandes prédios. Os membros da Erudição vivem em grandes prédios de pedra com vista para o pântano. Seguro no suporte e me inclino para fora a fim de ver para onde vão os trilhos. Eles descem a rua logo antes de virar para leste. Respiro o cheiro de asfalto molhado e ar pantanoso.
O trem mergulha e desacelera, e eu pulo. Minhas pernas estremecem com o impacto da aterrissagem e corro alguns passos para recobrar meu equilíbrio. Caminho ao longo da rua, em direção ao sul, pelo pântano. A terra vazia se estende até muito longe, uma planície marrom colidindo com o horizonte.
Viro à esquerda. Os prédios da Erudição se erguem acima de mim, escuros e não familiares. Como vou achar Caleb aqui?
A Erudição mantém registros, é a natureza deles. Eles devem manter registros de seus iniciados. Alguém tem acesso a eles; só preciso encontrar essa pessoa. Analiso os prédios. Racionalmente falando, o prédio central deve ser o mais importante. Eu deveria começar por lá.
Os membros da facção estão em todo lugar. As normas da Erudição dizem que cada membro deve usar pelo menos uma peça de roupa azul, porque azul faz com que o corpo libere hormônios calmantes, e uma mente calma é uma mente limpa. A cor também representa a facção deles. E parece impossivelmente brilhante para mim agora. Cresci usando roupas discretas e escuras.
Eu esperava me esgueirar pela multidão, evitando cotovelos e murmurando com licença do jeito que sempre fiz, mas não foi preciso. Tornar-me um membro da Audácia me fez notável. A multidão se abria para mim, e seus olhos me seguiam enquanto passava. Tiro o elástico do meu cabelo e o solto antes de entrar pelas portas da frente.
Paro logo na entrada e inclino minha cabeça para trás. O hall é enorme, silencioso e cheira a páginas cobertas de poeira. O chão de madeira estala embaixo dos meus sapatos. Prateleiras se alinham nas paredes de cada lado, mas elas parecem ser mais para fins decorativos, porque computadores ocupam as mesas no centro da sala, e ninguém está lendo. Eles encaram a tela com olhares tensos, focados.
Eu deveria ter imaginado que o prédio principal da Erudição seria uma biblioteca. Um retrato na parede oposta chama minha atenção. É duas vezes mais alto do que eu e quatro vezes minha largura, e retrata uma mulher atraente com olhos cinza lacrimejantes e óculos – Jeanine. Um calor sobe dentro de mim à visão dela. Porque ela é a representante da Erudição, ela é quem liberou o relatório sobre meu pai. Eu não gostava dela desde aquela noite na mesa de jantar com meu pai reclamando sobre ela, mas agora a odeio.
Abaixo do retrato, numa grande placa, lê-se: Conhecimento leva à prosperidade. Prosperidade. Para mim a palavra tem uma conotação negativa. Abnegação a usa para descrever comodismo.
Como Caleb poderia ter escolhido se tornar uma dessas pessoas? As coisas que eles fazem, que eles querem, é tudo tão errado. Mas ele provavelmente pensa o mesmo da Audácia.
Ando em direção à mesa logo abaixo do retrato de Janine. O jovem sentado atrás dela não olha para cima quando pergunta:
— Como posso ajudá-la?
— Estou procurando por alguém — digo. — Seu nome é Caleb. Você sabe onde posso encontrá-lo?
— Não estou autorizado a dar informações para pessoas estranhas — ele responde suavemente, enquanto se esconde atrás do monitor.
— Ele é meu irmão.
— Eu não estou autori...
Bato a palma da minha mão da mesa e ele sai de seu estado de torpor, olhando para mim sobre seus óculos. Cabeças viram em minha direção.
— Eu disse — minha voz sóbria — que estou procurando por alguém. Ele é um iniciado. Você pode, ao menos, me dizer onde encontrá-lo?
— Beatrice? — uma voz atrás de mim diz.
Me viro e Caleb está parado atrás de mim, um livro nas mãos. Seu cabelo cresceu até a altura das orelhas e ele está usando uma camiseta azul e um par de óculos retangulares. Mesmo que ele pareça diferente e eu não esteja mais autorizada a amá-lo, corro até ele o mais rápido que consigo e jogo meus braços ao redor de seus ombros.
— Você tem uma tatuagem — ele diz com a voz abafada.
— Você tem óculos — respondo. Dou um passo para trás e cerro meus olhos. — Sua visão era perfeita, Caleb, o que você está fazendo?
— Hum... — ele olha para as mesas ao nosso redor. — Venha. Vamos sair daqui.
Saímos do prédio e atravessamos a rua. Tenho que correr para acompanhá-lo. Além do quartel general da Erudição tem o que costumava ser um parque. Agora só o chamamos de Millenium e é só um pedaço de terra batida com várias esculturas de metal – uma representa um mamute folheado abstrato, outra é uma espécie de feijão verde maior do que eu.
Nós paramos no concreto ao redor do feijão, onde membros estão sentados em pequenos grupos com jornais ou livros. Ele tira os óculos e os guarda no bolso, então passa uma mão nos cabelos, seus olhos passando pelos meus nervosamente. Como se ele estivesse envergonhado. Talvez eu devesse estar também. Eu estou tatuada, de cabelo solto e usando roupas apertadas. Mas eu não estou.
— O que você está fazendo aqui? — ele diz.
— Queria ir para casa. E você é o mais próximo disso em que consegui pensar.
Ele franze a boca.
— Não fique tão feliz em me ver — eu acrescento.
— Ei... — ele diz, colocando as mãos em meus ombros. — Estou emocionado de ver você, certo? É só que isso não é permitido. Existem regras.
— Não ligo. Eu não ligo, certo?
— Talvez você devesse — sua voz é gentil, usando seu olhar de desaprovação. — Se fosse comigo, eu não gostaria de entrar em confusão com a sua facção.
— O que isso deveria significar?
Eu sei exatamente o que isso significa. Ele vê minha facção como a mais cruel de todas as cinco e nada mais.
— Eu só não quero que você se machuque. Não precisa ficar com tanta raiva de mim — ele diz, inclinando a cabeça. — O que aconteceu com você lá?
— Nada. Nada aconteceu comigo.
Fecho os olhos e massageio a parte de trás do meu pescoço com uma das mãos. Mesmo se eu fosse capaz de explicar tudo para ele, eu não quero. Não consigo nem mesmo achar vontade de fazer isso.
— Você acha... — ele encara os sapatos. — Você acha que fez a escolha certa?
— Não acho que houvesse uma — digo. — E quanto a você?
Ele olha ao redor. Pessoas nos encaram enquanto caminham. Os olhos de Caleb evitam seus rostos. Ele ainda está nervoso, mas não por sua aparência ou por minha causa. Talvez por eles. Agarro seu braço e o puxo para baixo do arco de metal do feijão. Caminhamos embaixo de sua “barriga” vazia. Vejo meu reflexo em todos os lados, deformado pelas curvas das paredes, quebrada por pedaços de sujeira e ferrugem.
— O que está acontecendo? — digo, cruzando os braços. Não havia reparado nas olheiras embaixo de seus olhos antes. — O que tem de errado?
Caleb apoia uma de suas mãos contra a parede de metal. Em seu reflexo, sua cabeça é pequena e amassada de um dos lados, e seu braço parece que está inclinado para trás. Meu reflexo, entretanto, parece pequeno e agachado.
— Alguma coisa grande está acontecendo, Beatrice. Alguma coisa está errada — seus olhos estão selvagens e vidrados. — Não sei o que é, mas as pessoas continuam agitadas, falando discretamente e Jeanine faz discursos sobre como a Abnegação é corrupta todo o tempo, quase todo dia.
— Você acredita nela?
— Não. Talvez. Eu não... — Ele balança a cabeça. — Eu não sei no que acreditar.
— Sim, você sabe — digo severamente. — Você sabe quem são nossos pais. Você sabe quem são nossos amigos. O pai de Susan, você acha que ele é corrupto?
— O quanto eu sei? O quanto eles me permitiram saber? Não éramos autorizados a fazer perguntas, Beatrice; não éramos autorizados a saber de nada! E aqui... — Ele olha para cima e no círculo espelhado acima de nós, vejo nossas pequenas figuras, do tamanho de unhas. Esse, eu penso, é nosso verdadeiro reflexo; é tão pequeno quanto realmente somos. Ele continua, — Aqui, a informação é livre, é sempre disponível.
— Aqui não é a Franqueza. Aqui existem mentirosos, Caleb. Existem pessoas que são tão inteligentes que sabem como manipular você.
— Você não acha que eu saberia se estivesse sendo manipulado?
— Se eles são tão inteligentes quanto você pensa, então não. Eu não acho que você saberia.
— Você não tem ideia do que está falando — ele diz, balançando a cabeça.
— Sim. Como eu poderia saber como uma facção corrupta parece? Eu estou treinando para ser um membro da Audácia, pelo amor de Deus. Pelo menos eu sei do que sou parte, Caleb. Você está escolhendo ignorar o que soubemos a nossa vida inteira – essas pessoas são arrogantes e gananciosas e não vão te levar a lugar algum.
Sua voz endurece.
— Acho que você deveria ir, Beatrice.
— Com prazer — digo. — Ah, e não que isso tenha importância para você, mas mamãe me pediu para dizer a você que pesquisasse o soro da simulação.
— Você a viu? — Ele parece magoado. — Por que ela não...
— Porque — eu disse — a Erudição não deixa mais os membros da Abnegação entrarem em seu complexo. Essa informação não estava disponível para você?
Passo por ele, andando para fora da cavidade espelhada da escultura, e começo a descer a calçada. Nunca deveria ter vindo. O complexo da Audácia parece minha casa agora, pelo menos lá eu sei onde estou parada, em solo instável.
A multidão na calçada diminui e eu olho para ver o motivo. Parados alguns passos a minha frente estão dois homens da Erudição com os braços cruzados.
— Com licença — um deles diz. — Você terá que vir conosco.
+ + +
Um dos homens anda tão perto de mim que consigo sentir sua respiração na minha nuca. O outro homem me guia para dentro da biblioteca e três corredores abaixo para um elevador. Mais para dentro da biblioteca, o chão muda de madeira para azulejos brancos, e as paredes brilham como o teto da sala dos testes de aptidão. O brilho salta das portas do elevador e eu mantenho os olhos semicerrados para poder enxergar.
Tento ficar calma. Faço perguntas do treinamento da Audácia para mim mesma. O que você faz se alguém lhe ataca por trás? Imagino-me empurrando meu cotovelo no estômago ou na virilha do atacante. Gostaria de ter uma arma. Esses são pensamentos da Audácia e estão se tornando meus próprios.
O que você faz se for atacada por duas pessoas ao mesmo tempo? Sigo o homem para baixo, em um corredor vazio e brilhante até um escritório. As paredes são feitas de vidro – sou capaz de adivinhar qual facção desenhou minha escola.
Uma mulher está sentada atrás da mesa. Encaro o rosto dela. O mesmo rosto domina a biblioteca da Erudição; está estampado em cada relatório que a Erudição libera. Por quanto tempo tenho odiado esse rosto? Não consigo lembrar.
— Sente — Jeanine diz.
Sua voz soa familiar, especialmente quando ela está irritada. Seus olhos cinza lacrimejantes se concentram em mim.
— Prefiro ficar em pé.
— Sente — ela diz novamente.
Definitivamente já ouvi aquela voz antes.
Ouvi no corredor, falando com Eric, antes que eu fosse atacada. Eu a escutei mencionar Divergente. E uma vez antes disso, eu ouvi...
— É a sua voz na simulação — digo. — No teste de aptidão, quero dizer...
Ela é o perigo do qual Tori e minha mãe me avisaram a respeito, o perigo de ser Divergente. Sentada bem em frente a mim.
— Correto. O teste de aptidão é, de longe, minha maior conquista como cientista — ela responde. — Dei uma olhada no resultado do seu teste, Beatrice. Aparentemente houve um problema com o seu exame. Nunca foi gravado e seus resultados precisaram ser reportados manualmente. Você sabia disso?
— Não.
— Você sabia que você é uma das duas únicas pessoas que saíram da Abnegação para Audácia?
— Não — digo, tentando reprimir meu choque.
Tobias e eu somos os únicos? Mas os resultados dele foram genuínos, os meus uma mentira. Então é realmente só ele.
Meu estômago se contorce ao pensar nele. Nesse momento eu não me importo o quão singular ele é. Ele me chamou de patética.
— O que a fez escolher Audácia? — ela pergunta.
— O que isso tem a ver com alguma coisa? — Tento suavizar minha voz, mas não funciona. — Você não vai me reprimir por abandonar minha facção e procurar por meu irmão? Facção antes do sangue, certo? — eu paro. — Por falar nisso, por que eu estou no seu escritório em primeiro lugar? Você não deveria ser alguém importante, ou algo do tipo?
Talvez isso a faça recuar um pouco.
Sua boca se contrai por uns segundos.
— Vou deixar as reprimendas com a Audácia — ela diz, inclinando-se para trás na cadeira.
Apoio minhas mãos no encosto da cadeira, me recuso a sentar e cerro meus dedos. Atrás dela está uma janela com vista para toda a cidade. O trem dá uma volta lenta à distância.
— Quanto ao motivo de sua presença aqui... Uma qualidade da minha facção é a curiosidade — ela diz. — E enquanto analisava seus registros, vi que ocorreu mais um erro com outra simulação sua. De novo, não foi possível gravá-la. Você sabia disso?
— Como você acessou meus registros? Apenas a Audácia tem acesso a eles.
— Porque Erudição é quem desenvolve as simulações, nós temos... um acordo com a Audácia, Beatrice — ela inclina a cabeça e sorri para mim. — Eu estou, simplesmente, preocupada com a qualidade de nossa tecnologia. Se falhou quando você estava utilizando, eu preciso garantir que não falhará mais, você entende?
Eu entendo só uma coisa: ela está mentindo para mim. Ela não liga para tecnologia – ela suspeita que tem alguma coisa errada com os resultados do meu teste. Da mesma forma que os líderes da Audácia, ela está fuçando em busca de um Divergente. E se minha mãe quer que Caleb pesquise a respeito do soro dos testes, é provavelmente porque Jeanine o desenvolveu.
Mas o que é tão ameaçador na minha habilidade de manipular as simulações? Por que isso importaria para a representante da Erudição, de todas as pessoas, por que ela?
Não posso responder nenhuma dessas questões. Mas o olhar que ela me dá lembra-me do olhar do cão no teste de aptidão – um olhar perverso, predatório. Ela quer me cortar em pedaços. Mas não posso deitar em submissão dessa vez. Tenho que me tornar um cão de ataque também.
Sinto minha pulsação em minha garganta.
— Eu não sei como eles funcionam — digo. — Mas o líquido que injetaram em mim me deixou nauseada. Talvez o avaliador da simulação tenha ficado distraído por estar preocupado que eu fosse vomitar e esqueceu-se de gravar. Também fiquei doente depois do teste de aptidão.
— Você geralmente tem o estômago sensível, Beatrice? — Sua voz é afiada como uma navalha. Ela tamborila sobre a mesa com suas unhas bem aparadas.
— Nunca desde que era criança — respondo tão delicadamente quanto posso.
Solto o encosto da cadeira e a puxo lateralmente para me sentar. Não posso parecer tensa, mesmo agora sinto minhas entranhas se contorcendo.
— Você tem sido extremamente bem sucedida com as simulações — ela diz. — A que você atribui a facilidade com que você as completa?
— Eu sou corajosa — respondo, encarando seus olhos. As outras facções veem Audácia de certa maneira. Imprudentes, agressivos, impulsivos. Arrogantes. Eu tenho que ser o que ela espera. Sorrio afetadamente para ela. — Sou a melhor iniciada deles.
Inclino-me para frente, apoiando meus cotovelos nos joelhos. Tenho que ir mais longe do que isso para ser convincente.
— Você quer saber por que escolhi Audácia? — pergunto. — Era porque eu estava entediada. — Mais longe do que isso. Mentiras requerem comprometimento. — Eu estava cansada de ser uma benfeitora e eu queria sair.
— Então você não sente falta dos seus pais? — ela pergunta delicadamente.
— Se eu sinto falta de receber bronca por me olhar no espelho? Se sinto falta de ser mandada calar a boca na mesa de jantar? — Balanço minha cabeça. — Não. Eu não sinto falta deles. Eles não são mais minha família.
As mentiras queimam minha garganta enquanto saem da minha boca, ou talvez sejam as lágrimas que tento conter. Imagino minha mãe parada atrás de mim com um pente e uma tesoura, sorrindo fracamente enquanto corta meu cabelo, e eu quero gritar ao invés de insultá-la dessa forma.
— Posso entender com isso que você... — Jeanine esboça um sorriso e pausa por alguns segundos antes de continuar. — Que você concorda com os relatórios que eu publiquei sobre os líderes políticos dessa cidade?
O relatório que rotulou minha família como corrupta, faminta por poder, ditadores moralizantes? O relatório que contém ameaças sutis e fazem alusão a uma revolução? Eles fazem meu estômago doer. Saber que ela é a responsável por eles me faz querer estrangulá-la.
Eu sorrio.
— Completamente.
Um dos lacaios de Jeanine, um homem com uma camisa azul e óculos de sol, me leva de volta até o complexo da Audácia em um lustroso carro prateado, um carro como nenhum outro que eu tenha visto antes. O motor quase não produz som algum. Quando pergunto ao homem sobre isso, ele me diz que é alimentado por energia solar e inicia uma gentil explicação sobre como os painéis no teto convertem luz do sol em energia. Paro de prestar atenção depois de seis segundos e olho para fora da janela.
Não sei o que eles farão comigo quando eu voltar. Imagino que vai ser ruim. Imagino meus pés balançando sobre o abismo e mordo meu lábio.
Quando o motorista se dirige para o prédio de vidro sobre o complexo da Audácia, Eric está esperando por mim na porta. Ele pega meu braço e me leva para dentro do prédio sem agradecer ao motorista. Seus dedos apertam meu braço com tanta força que eu sei que vou ficar com marcas.
Ele para entre mim e a porta que leva para dentro. E começa a estalar seus dedos. Além disso, ele está completamente imóvel.
Dou de ombros involuntariamente.
O som de suas juntas estalando é tudo que eu escuto além da minha própria respiração, que acelera a cada segundo. Quando ele termina, Eric entrelaça seus dedos em frente a ele.
— Bem vinda de volta, Tris.
— Eric.
Ele anda em minha direção, cuidadosamente colocando um pé em frente ao outro.
— O que... — Suas primeiras palavras são baixas — exatamente — ele adiciona, mais alto dessa vez — você estava pensando?
— Eu... — Ele está tão perto de mim que consigo ver os furos dos piercings. — Eu não sei.
— Estou tentado a chamá-la de traidora, Tris — ele diz. — Você nunca ouviu a frase Facção antes do sangue?
Eu já vi Eric fazer coisas terríveis. Já o ouvi falando coisas terríveis. Mas nunca o vi assim. Ele não é mais aquele maníaco; ele está perfeitamente sob controle; perfeitamente posicionado. Cuidadoso e silencioso.
Pela primeira vez, reconheço Eric pelo que ele é: um membro da Erudição disfarçado de Audácia, um gênio assim como um sádico, um caçador de Divergentes.
Eu quero correr.
— Você está insatisfeita com a vida que tem aqui? Você, talvez, se arrependa da sua escolha? — As duas sobrancelhas de Eric levantam, fazendo aparecer vincos em sua testa. — Eu gostaria de ouvir uma explicação do por que você traiu Audácia, a si mesma e a mim... — ele bateu no peito — se aventurando no quartel general de outra facção.
— Eu... — respiro fundo.
Ele me mataria se soubesse o que sou, posso sentir isso. Suas mãos estão fechadas em punho. Estou sozinha aqui, se alguma coisa acontecer comigo, ninguém vai saber e ninguém irá testemunhar.
— Se você não pode explicar — ele diz suavemente. — É provável que eu seja obrigado a reconsiderar sua colocação. Ou, porque você parece tão ligada a sua antiga facção, eu serei forçado a reconsiderar a colocação dos seus amigos. Talvez a pequena garota da Abnegação dentro de você, comece a levar isso com mais seriedade.
Meu primeiro pensamento é de que ele não pode fazer isso, não seria justo. Meu segundo pensamento é de que ele pode, ele não hesitaria nem um segundo. E ele está certo – pensar que meu pensamento imprudente poderia forçar mais alguém a sair da facção fez meu peito doer de medo.
Tento novamente:
— Eu...
Mas é difícil respirar.
Então as portas se abrem e Tobias entra.
— O que você está fazendo? — ele pergunta a Eric.
— Deixe a sala — Eric diz, sua voz mais alta e não tão monótona.
Ele parece mais com o Eric que eu conheço. Sua expressão também muda, tornando-se mais móvel e animada. Eu o encaro, impressionada que ele possa ligar e desligar esse lado dele tão facilmente, e me pergunto qual a estratégia por trás disso.
— Não — Tobias responde. — Ela é só uma garota tola. Não existe necessidade de levá-la a interrogatório.
— Só uma garota tola — Eric bufa. — Se ela é só uma garota tola, não estaria em primeiro lugar, estaria?
Tobias pressiona os dedos na ponte de seu nariz e olha para mim através do espaço entre seus dedos. Ele estava tentando me dizer alguma coisa. Penso rapidamente. Quais conselhos Quatro me deu recentemente?
A única coisa que eu consigo pensar é: finja ser vulnerável.
Funcionou para mim antes.
— Eu... eu só estava envergonhada e não sabia o que fazer.
Coloco minhas mãos no bolso e olho para o chão. Belisco minha perna com tanta força que lágrimas enchem meus olhos, e então olho para cima, para Eric.
— Eu tentei... e...
Balanço minha cabeça.
— Você tentou o quê? — Eric pergunta.
— Me beijar — Tobias diz. — E eu a rejeitei, depois disso ela saiu correndo como uma menina de cinco anos de idade. Não podemos culpá-la por sua estupidez.
Nós dois esperamos.
Eric olha de mim para Tobias e ri, muito alto e por muito tempo – o som é ameaçador e me atinge como lixas de papel.
— Ele não é um pouco velho demais para você, Tris? — ele diz, sorrindo de novo.
Limpo minha bochecha como se estivesse enxugando lágrimas.
— Posso ir agora?
— Tudo bem — Eric diz. — Mas você não está autorizada a deixar o complexo sem supervisão novamente, você me entendeu? — Ele vira para Tobias. — E você... é melhor garantir que nenhum de nossos outros transferidos deixe o complexo novamente. E que nenhum deles tente beijá-lo.
Tobias rola os olhos:
— Certo.
Deixo a sala e caminho para fora de novo, balançando as mãos para me livrar do nervosismo. Sento no chão e coloco os braços ao redor dos meus joelhos.
Não sei por quanto tempo fiquei sentada, minha cabeça abaixada e meus olhos fechados, antes que as portas se abrissem de novo. Pode ter sido vinte minutos ou uma hora. Tobias caminha em minha direção.
Me levanto e cruzo os braços, esperando a repreensão começar. Eu o estapeei e ainda me meti em confusão com a Audácia – precisa ter uma repreensão.
— O quê? — digo.
— Você está bem? — Uma ruga aparece entre suas sobrancelhas, e ele toca minha bochecha gentilmente. Afasto sua mão do meu rosto.
— Bem. Primeiro fui humilhada na frente de todos, depois tive uma conversinha com a mulher que está tentando destruir minha antiga facção, e então Eric quase expulsou meus amigos da Audácia, então é, esse está sendo um dia maravilhoso, Quatro.
Ele balança a cabeça e olha para o prédio em ruínas a sua direita, que é feito de tijolos e mal se assemelha à fina torre de vidro atrás de mim. Deve ser antigo. Ninguém mais constrói com tijolos.
— Por que você se importa, de qualquer forma? — continuo. — Você não pode ser o instrutor cruel e o namorado preocupado ao mesmo tempo.
Fico tensa com a palavra namorado. Eu não pretendia usá-la tão levianamente, mas era tarde demais.
— Você não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo.
— Eu não sou cruel — ele franze a testa para mim. — Eu estava protegendo você essa manhã. Como acha que Peter e seus amigos idiotas iriam reagir se descobrissem que você e eu... — ele suspira. — Você nunca ganharia. Eles sempre diriam que sua colocação é devido ao meu favoritismo e não às suas habilidades.
Abro minha boca para discordar, mas não posso. Algumas colocações inteligentes vêm à minha mente, mas as dispenso. Ele está certo. Minhas bochechas esquentam e eu as esfrio com minhas mãos.
— Você não precisava me insultar para provar nada a eles — digo finalmente.
— E você não precisava correr para o seu irmão só porque eu magoei você — ele diz. Ele massageia sua nuca. — Além disso, funcionou não foi?
— Às minhas custas.
— Eu não achei que fosse te afetar tanto — então ele olha para baixo e encolhe os ombros. — Algumas vezes eu esqueço que posso machucar você. Que você é capaz de ser machucada.
Deslizo minhas mãos para dentro dos bolsos e balanço sobre meus pés. Um sentimento estranho passa por mim – uma doce vulnerabilidade. Ele fez o que fez porque acredita na minha força.
Em casa, Caleb era a pessoa forte, porque podia esquecer-se de si mesmo, porque todas as características que meus pais valorizavam vinham naturalmente para ele. Ninguém nunca foi tão convicto da minha força.
Fico na ponta dos pés, levanto minha cabeça e o beijo. Só nossos lábios se tocam.
— Você é brilhante, sabia? — Balanço minha cabeça. — Você sempre sabe exatamente o que fazer.
— Só porque tenho pensado sobre isso por muito tempo — ele responde, me beijando levemente. — Como eu lidaria se você e eu... — Ele se inclina para trás e sorri. — Ouvi você me chamar de namorado, Tris?
— Não exatamente — encolho os ombros. — Por quê? Você gostaria disso?
Ele desliza suas mãos no meu pescoço e pressiona seus polegares no meu queixo, inclinando minha cabeça para trás até que sua testa se apoie na minha. Por um momento ele fica parado lá, seus olhos fechados, respirando meu ar. Sinto a pulsação na ponta de seus dedos. Sinto o ritmo da sua respiração. Ele parece nervoso.
— Sim — ele diz finalmente. Então seu sorriso desaparece. — Você acha que o convencemos de que você é só uma garota tola?
— Espero que sim. Algumas vezes ajuda ser pequena. Mas não tenho certeza se convenci a Erudição.
Os cantos de sua boca viram para baixo, e ele me lança um olhar grave.
— Tem uma coisa que preciso contar a você.
— O que é?
— Agora não — ele olha ao redor. — Me encontre aqui às onze e meia. Não diga a ninguém onde você está indo.
Eu concordo balançando a cabeça e ele vai embora, tão rápido quanto chegou.
+ + +
— Onde você esteve o dia todo? — Christina pergunta quando volto para o dormitório. O quarto está vazio, todos os outros devem estar jantando. — Procurei por você lá fora, mas não a encontrei. Está tudo bem? Você ficou enrascada com Quatro?
Balanço minha cabeça. Pensar em contar a verdade sobre onde estive me faz sentir exausta. Como posso explicar o impulso de pular no trem e ir visitar meu irmão? Ou a voz calma e assustadora de Eric enquanto me interrogava? Ou a razão pela qual eu explodi e acertei Tobias para começar?
— Eu só precisava sair. Andei por aí por um longo tempo. E não, não estou enrascada. Ele gritou comigo, eu me desculpei... e foi isso.
Enquanto eu falo, tomo cuidado em manter meus olhos firmes nos dela e minhas mãos ainda ao lado do corpo.
— Bom — ela diz. — Porque eu tenho uma coisa para contar a você.
Ela olha por cima do meu ombro e então fica na ponta de pés para ver todos os beliches – provavelmente checando para ver se estão todos vazios. Então ela apoia as mãos nos meus ombros.
— Você consegue ser uma garota por alguns segundos?
— Eu sempre sou uma garota — eu franzo a testa.
— Você sabe o que eu quis dizer. Tipo uma garota boba e irritante.
Enrolo meu cabelo ao redor do meu dedo.
— Ok.
Ela sorri tão largamente que consigo ver a fileira de trás de seus dentes.
— Will me beijou.
— O quê? — eu exijo. — Quando? Como? O que aconteceu?
— Você consegue ser uma garota! — Ela se endireita, tirando as mãos dos meus ombros. — Bom, depois do seu pequeno incidente, nós almoçamos e então caminhamos próximo aos trilhos do trem. Estávamos só falando sobre... nem lembro sobre o que estávamos conversando. E então ele simplesmente parou, se inclinou para mim e... me beijou.
— Você sabia que ele gostava de você? — digo. — Quero dizer, você sabia que ele gostava de você desse jeito?
— Não! — ela ri. — A melhor parte é essa. Nós continuamos andando e conversando como se nada tivesse acontecido. Bom, até eu beijá-lo.
— Há quanto tempo você sabe que gosta dele?
— Não sei. Acho que não sabia. Mas as pequenas coisas... como quando ele me abraçou no funeral, como ele abre a porta para mim como se eu fosse só uma garota e não alguém que pode quebrar a cara dele.
Eu rio. De repente quero contar a ela sobre Tobias e sobre tudo que tem acontecido entre nós. Mas as mesmas razões que Tobias me deu para continuarmos fingindo que não estamos juntos me impedem. Eu não quero que ela pense que minha colocação tem alguma coisa a ver com nosso relacionamento.
Então eu digo apenas:
— Estou feliz por você.
— Obrigada. Eu estou feliz também. E eu pensando que iria demorar até que eu me sentisse desse jeito... você sabe.
Ela senta na beira da minha cama e olha ao redor do dormitório. Alguns dos iniciados já empacotaram suas coisas. Em breve nos mudaremos para o apartamento do outro lado do complexo. Aqueles com trabalhos no governo irão se mudar para o prédio de vidro acima do Abismo. Não terei que me preocupar com Peter me atacando enquanto estou dormindo. Não terei que olhar para cama vazia de Al.
— Não acredito que está quase acabando — ela diz. — É como se tivesse acabado de chegar aqui. Mas também é como... como se eu estivesse longe de casa desde sempre.
— Você sente falta? — Me inclino contra a cabeceira da cama.
— Sim — ela responde. — Algumas coisas são iguais, entretanto. Quero dizer, todo mundo em casa é tão barulhento quanto as pessoas aqui, isso é bom. Mas é mais fácil lá. Você sempre sabe como cada um se sente e como deve agir porque todos dizem a você. Não existe... manipulação.
Concordo. Abnegação me preparou para aspectos da vida na Audácia. A Abnegação não é manipuladora, mas eles também não são transparentes.
— Mas eu não acho que teria passado pela iniciação da Franqueza — ela balança a cabeça. — Lá, ao invés de simulações, você faz testes com detectores de mentira. Todo dia, o dia todo. E o teste final... — Ela enruga o nariz. — Eles te dão essa coisa que chamam de soro da verdade e colocam você em frente a todos e perguntam um monte de coisas realmente pessoais. A teoria é de que se você abrir mão de todos os seus segredos, você não terá nenhum desejo de mentir sobre nada, nunca mais. Tipo, as piores coisas sobre você são expostas, então por que não ser honesto?
Não sei em que ponto acumulei tantos segredos. Ser Divergente. Medos. Como realmente me sinto sobre meus amigos, minha família, Al, Tobias. A iniciação da Franqueza alcançaria coisas que nem mesmo as simulações podem tocar; isso me destruiria.
— Parece horrível — eu digo.
— Sempre soube que não poderia ser da Franqueza. Quero dizer, eu tento ser honesta, mas algumas coisas vocês simplesmente não quer que as pessoas saibam. Além disso, eu gosto de estar no controle da minha própria mente.
Todos nós gostamos.
— De qualquer forma... — ela continua, abrindo o armário à esquerda de nossos beliches.
Quando ela abre a porta, uma mariposa sai de dentro, suas asas brancas batendo em direção ao seu rosto. Christina grita tão alto que o susto quase me faz bater na cara dela.
— Tire isso! Tire isso! Tire isso! — ela grita.
A mariposa voa para longe.
— Ela já foi embora — falo. E depois começo a rir. — Você tem medo... de mariposas?
— Elas são nojentas. Essas asas de papel e seus estúpidos corpos de inseto... — ela estremece.
Continuo rindo. Eu dou tantas gargalhadas que preciso sentar, segurando minha barriga.
— Não tem graça! — ela reclama. — Bom... ok, talvez tenha. Um pouco.
+ + +
Mais tarde naquela noite, quando encontro Tobias, ele não diz nada; só segura minha mão e me puxa em direção aos trilhos do trem.
Ele se impulsiona para dentro de um dos vagões com uma facilidade desconcertante e me puxa depois dele. Perco o equilíbrio e caio contra ele, minha bochecha apoiada em seu peito. Seus dedos deslizam para os meus braços e ele segura meus cotovelos enquanto o trem sacode pelos trilhos. Observo o prédio de vidro acima do complexo da Audácia encolhendo atrás de nós.
— O que você precisava me dizer? — grito acima do barulho do vento.
— Ainda não — ele diz.
Ele se abaixa no chão e me puxa para baixo também, assim ele fica sentado com as costas apoiadas na parede de frente para mim. Dobro minhas pernas ao lado do corpo, no chão poeirento. O vento joga mechas do meu cabelo solto no meu rosto. Ele apoia suas mãos no meu rosto, os dedos deslizando para trás das minhas orelhas, e puxa minha boca para dele.
Escuto o barulho dos trilhos à medida que o trem diminui, o que significa que devemos estar próximos à cidade. O ar é frio, mas seus lábios são quentes, assim como suas mãos. Ele inclina a cabeça e beija a pele logo abaixo da minha mandíbula. Fico feliz que o vento correndo é tão alto que ele não me escuta suspirar.
O vagão vacila, me fazendo perder o equilíbrio e eu coloco minhas mãos para baixo para me manter firme. Um segundo depois percebo que minhas mãos estão nos quadris dele. O osso pressionado contra minhas palmas. Deveria tirá-las, mas não quero. Uma vez ele me disse para ser corajosa e apesar de ter ficado parada enquanto facas eram jogadas em direção ao meu rosto e tenha pulado de um telhado, eu nunca pensei que fosse precisar ser corajosa em pequenos momentos na minha vida. Mas eu preciso.
Me movo, passando uma das pernas ao redor dele para me sentar em seu colo, e com meu coração batendo na garganta, eu o beijo. Ele se endireita e eu sinto suas mãos em meus ombros. Seus dedos deslizam por minha coluna e um calafrio os acompanha até a parte de baixo das minhas costas. Ele abre minha jaqueta alguns centímetros, e pressiono minhas mãos na minha perna para impedi-las de tremerem. Eu não deveria estar nervosa. Esse é Tobias.
O vento frio passa pela minha pele descoberta. Ele tira a jaqueta e olha para as tatuagens acima da minha clavícula. Seus dedos passam levemente por elas e ele sorri.
— Pássaros — ele pergunta. — São gralhas? Continuo me esquecendo de perguntar.
Tento retribuir seu sorriso.
— Corvos. Um para cada membro da minha família. Gosta dela?
Ele não responde. Ele me puxa para perto e pressiona seus lábios em cada um dos pássaros. Fecho meus olhos. Seu toque é delicado, sensível. Um sentimento pesado e quente, como mel sendo derramado, preenche meu corpo, diminuindo meus pensamentos. Ele toca minha bochecha.
— Odeio dizer isso — ele diz. — Mas temos que levantar agora.
Eu concordo e abro os olhos. Ficamos em pé e ele me carrega com ele para as portas abertas do vagão. O vento não é tão forte agora que o trem diminuiu. Já passa da meia noite, então todas as luzes estão apagadas, e os prédios parecem gigantes à medida que crescem da escuridão e então mergulham nela novamente. Tobias aponta para um conjunto de construções, tão longe que parecem ter o tamanho de unhas. Eles são o único ponto brilhante na escuridão que nos cerca. O quartel general da Erudição de novo.
— Aparentemente, ordenanças da cidade não significam nada para eles, porque aquelas luzes ficam ligadas a noite toda.
— Ninguém mais notou? — pergunto.
— Tenho certeza que sim, mas eles não fizeram nada para impedi-los. Talvez porque não queiram arrumar problemas por uma coisa tão pequena — Tobias dá de ombros, mas a tensão no seu rosto me preocupa. — Mas me fez pensar no que a Erudição está fazendo que precise de luzes à noite.
Ele vira para mim, se apoiando contra a parede.
— Há duas coisas que você precisa saber sobre mim. A primeira é que sou muito desconfiado das pessoas no geral — ele diz. — É minha natureza esperar o pior deles. E a segunda é que eu sou inesperadamente bom com computadores.
Eu concordo balançando a cabeça. Ele havia dito que seu outro trabalho era com computadores, mas eu ainda tinha dificuldade em imaginá-lo em frente a uma tela o dia todo.
— Algumas semanas atrás, antes do treinamento começar, eu estava trabalhando e consegui entrar nos arquivos protegidos da Audácia. Aparentemente não somos tão bons quanto a Erudição no que diz respeito à segurança — ele continua — e o que eu descobri pareciam ser planos de guerra. Comandos, lista de suprimentos, mapas. Coisas desse tipo. E esses arquivos foram enviados para a Erudição.
— Guerra?
Tiro o cabelo do meu rosto. Escutar meu pai reclamando da Erudição toda minha vida me deixou cautelosa com eles, e minha experiência na Audácia me fez muito cautelosa com autoridade e seres humanos em geral, então não estou chocada em ouvir que uma facção pode estar planejando uma guerra.
E o que Caleb disse mais cedo. Alguma coisa grande está acontecendo, Beatrice. Olho para Tobias.
— Uma guerra contra a Abnegação?
Ele pega minha mão e entrelaça seus dedos nos meus.
— A facção que controla o governo. Sim.
Meu estômago afunda.
— Todos esses relatórios deveriam suscitar divergências contra a Abnegação — ele diz. Seus olhos focados na cidade além do vagão. — Evidentemente, a Erudição agora quer acelerar o processo. Eu não tenho ideia do que fazer sobre isso... O que poderia ser feito.
— Mas por que a Erudição se aliaria à Audácia?
Então uma coisa me ocorre, uma coisa que me atinge profundamente e me traz inquietação. Erudição não tem armas, e eles não sabem como lutar, mas Audácia sabe.
Encaro Tobias selvagemente.
— Eles vão nos usar — eu digo.
— Me pergunto como eles planejam nos fazer lutar.
Eu disse a Caleb que a Erudição sabia como manipular as pessoas. Eles podem coagir alguns de nós a lutar com informações distorcidas, ou apelando para a ganância – de várias formas. Mas a Erudição é tão meticulosa quanto manipuladora, então eles não vão deixar isso ao acaso. Eles irão garantir que todas as suas fraquezas estejam cobertas. Mas como?
O vento sopra meu cabelo contra meu rosto, cortando minha visão em tiras, eu o deixo lá.
— Eu não sei.
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