sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 29

Em todos os anos, exceto esse, eu assisti à cerimônia de iniciação da Abnegação. É bastante silenciosa. Os iniciados, que passaram trinta dias realizando trabalhos comunitários antes de tornarem-se membros completos, sentam-se lado a lado numa tribuna. Um dos membros mais antigos lê o manifesto da Abnegação, que é um pequeno texto sobre se esquecer de si mesmo e dos perigos de autoenvolvimento. Depois os membros antigos lavam os pés dos iniciados. E todos compartilham uma refeição, cada pessoa servindo aquele à sua esquerda.
A Audácia não faz isso.
O dia da iniciação mergulha o complexo da Audácia na insanidade e no caos. Pessoas espalham-se por todo lado, e a maior parte deles já está embriagada ao meio dia. Luto para conseguir passar por eles e pegar um prato de comida no almoço, e levo para o dormitório comigo. No caminho vejo alguém cair do caminho na parede do Abismo, e a julgar por seus gritos e pela forma como segurava sua perna, ele quebrou alguma coisa.
O dormitório, pelo menos, está quieto. Encaro meu prato de comida. Na hora, me servi somente do que pareceu apetitoso, e agora quando presto atenção, me dou conta de que escolhi um peito de frango simples, uma colher de ervilhas e um pedaço de pão marrom. Comida da Abnegação.
Suspiro. Abnegação é o que eu sou. É o que eu sou quando não estou pensando no que estou fazendo. É o que eu sou quando testada. É o que sou mesmo quando aparento ser corajosa. Eu estou na facção errada?
Pensar na minha antiga facção faz minhas mãos tremerem. Preciso avisar minha família a respeito da guerra que a Erudição está planejando, mas não sei como. Vou achar um meio, mas não hoje. Hoje preciso me concentrar no que me espera. Uma coisa de cada vez.
Como mecanicamente, revezando do frango para as ervilhas para o pão e voltando. Não importa a qual facção eu realmente pertença. Em duas horas vou encarar a paisagem do medo com os outros iniciados, passar por ela, e me tornar um membro da Audácia. É muito tarde para voltar atrás.
Quando termino de almoçar, enterro meu rosto no travesseiro. Não pretendia dormir, mas depois de um tempo, eu durmo, e acordo com Christina sacudindo meus ombros.
— Hora de ir — ela parece pálida.
Esfrego meus olhos para espantar o sono deles. Já estou calçada. Os outros iniciados estão no dormitório, amarrando cadarços, abotoando jaquetas e sorrindo a esmo como se não fosse intencional. Amarro meu cabelo em um coque e visto minha jaqueta preta, fechando o zíper até o pescoço. Em breve a tortura terá terminado, mas conseguiríamos esquecer as simulações? Alguma vez vamos conseguir dormir tranquilamente com a memória de nossos medos na cabeça? Ou finalmente vamos superar nossos medos hoje, como supostamente devemos fazer?
Andamos para o Abismo e em direção ao caminho que leva ao prédio de vidro. Olho para o teto de vidro. Não consigo ver a luz do dia porque solas de sapato cobrem cada pedaço do vidro acima de nós. Por um segundo, imagino ter escutado o vidro partindo, mas é só minha imaginação. Subo as escadas com Christina e a plateia me deixa chocada.
Sou muito baixa para ver acima da cabeça de qualquer um, então encaro as costas de Will e caminho atrás dele. O calor de tantos corpos juntos torna difícil respirar. Gotas de suor se acumularam na minha testa. Um espaço entre a plateia revela o motivo pelo qual todos estão agrupados: uma série de telas na parede à minha esquerda.
Ouço aplausos e paro olhando as telas. A tela da esquerda mostra uma garota vestida de preto na paisagem do medo – Marlene. Observo ela se mover, seus olhos selvagens, mas não consigo dizer qual obstáculo ela está enfrentando. Graças a Deus ninguém aqui conseguirá ver meus medos, só minha reação a eles.
A tela do medo mostra seus batimentos cardíacos. Ele se eleva por um segundo e então cai novamente. Quando atinge um ritmo normal, a tela fica verde e os membros aplaudem. A tela da esquerda mostra o tempo dela.
Afasto-me das telas e corro para alcançar Christina e Will. Tobias estava parado em frente a uma porta do lado esquerdo da sala que eu não havia notado na última vez que estive aqui. Passo por ele sem olhar em sua direção.
A sala é larga e contém outra tela, parecida com as que estavam lá fora. Uma fila de pessoas sentadas em cadeiras está em frente a ela. Eric é um deles, assim como Max. Os outros também são membros antigos. A julgar pelos fios conectados em suas cabeças, e seus olhos desfocados, eles estavam observando a simulação.
Atrás deles há outra fila de cadeiras, todas ocupadas agora. Eu sou a última a entrar, logo não consigo uma para sentar.
— Ei, Tris! — Uriah chama do outro lado da sala. Ele está sentado com outros nascidos na Audácia. Restam apenas quatro deles, os outros já enfrentaram a paisagem do medo. Ele dá um tapinha em sua perna. — Você pode sentar no meu colo se quiser.
— Tentador — respondo sorrindo. — Está tudo bem. Gosto de ficar em pé.
E também não quero que Tobias me veja sentando no colo de outra pessoa.
As luzes acendem na paisagem do medo, revelando Marlene acocorada, seu rosto coberto de lágrimas. Max, Eric e alguns dos outros acordam do torpor da simulação e saem da sala. Segundos depois os vejo na tela, parabenizando-a por ter concluído.
— Transferidos, a ordem pela qual cada um de vocês irá ser testado é a mesma da sua colocação no ranking atualmente — Tobias diz. — Então, Drew, você vai primeiro e Tris, você por último.
Isso significa que cinco pessoas irão antes de mim.
Continuo em pé no fundo da sala, alguns metros longe de Tobias. Eu e ele trocamos olhares quando Eric aplica a injeção em Drew e o manda para a sala da paisagem do medo. Quando minha vez chegar, saberei quão bem os outros foram, e quão bem eu terei que me sair para vencê-los.
A paisagem do medo não é interessante vendo de fora. Consigo ver que Drew está se movendo, mas não do que ele está fugindo. Depois de alguns minutos, fecho meus olhos ao invés de assistir e tento não pensar em nada. Especular sobre quais medos eu terei que enfrentar, e quantos serão é inútil a essa altura. Eu só preciso lembrar que eu tenho a capacidade de manipular as simulações, e isso eu pratiquei antes.
Molly é a próxima. Ela leva metade do tempo de Drew, mas mesmo Molly tem problemas. Ela passa muito tempo respirando pesadamente, tentando controlar seu pânico. Em certo ponto ela até mesmo chega a gritar.
Me impressiona quão fácil é desligar tudo – pensamentos de guerra contra Abnegação, Tobias, Caleb, meus pais, amigos, minha nova facção desvanece. Tudo o que consigo ver é como superar esse obstáculo.
Christina é a próxima. Depois Will. E Peter. Não os assisto. Só sei quanto tempo eles levaram: doze minutos, dez minutos, quinze minutos. E então é meu nome.
— Tris.
Abro meus olhos e caminho para frente da sala de observação, onde Eric me espera com a seringa cheia de um líquido laranja. Mal sinto a agulha quando ele aplica no meu pescoço, mal vejo o rosto cheio de piercings de Eric quando ele pressiona o êmbolo para baixo. Imagino que o soro é adrenalina líquida correndo por minhas veias, me deixando forte.
— Pronta? — ele pergunta.

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