sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 30

Estou pronta. Entro na sala, armada não com uma faca ou uma pistola, mas com o plano que fiz noite passada. Tobias me disse que o estágio três é sobre preparação mental – bolar estratégias para superar meus medos.
Eu gostaria de saber qual a ordem dos medos. Balanço sobre meus pés enquanto espero o primeiro deles aparecer. Já estou com falta de ar.
O chão abaixo de mim muda. Grama cresce do concreto e balança com um vento que eu não consigo sentir. Um céu verde substitui os canos acima de mim. Escuto os pássaros e sinto meu medo como uma coisa distante, um coração martelando e o peito apertado, mas não algo que exista em minha mente. Tobias me disse para descobrir o significado dessa simulação. Ele estava certo; não é sobre pássaros. É sobre controle.
Asas batem próximas ao meu ouvido, e as garras do corvo perfuram meu ombro.
Dessa vez eu não bato no pássaro o mais forte que consigo. Eu me agacho, ouvindo o bater das asas atrás de mim, e corro minha mão pela grama no chão. O que combate a impotência? Poder. E a primeira vez que me senti poderosa no complexo da Audácia foi quando segurava uma arma.
Um inchaço se forma na minha garganta e eu quero que as garras me soltem. Os pássaros chiam e meu estômago se contrai, mas eu sinto alguma coisa dura e metálica na grama. Minha arma.
Aponto a arma para o pássaro no meu ombro, e ele desprende-se do meu ombro em uma explosão de sangue e penas. Giro sob meus calcanhares, apontando a arma para o céu, e vejo uma nuvem de penas escuras descendo. Aperto o gatilho, atirando contra o mar de pássaros acima de novo e de novo, vendo enquanto seus corpos caem no chão.
Enquanto eu miro e atiro, sinto a mesma onda de poder que senti da primeira vez que segurei uma arma. Meu coração desacelera e o campo, arma e pássaros desaparecem. Estou parada no escuro de novo.
Mudo meu pé de lugar e alguma coisa guincha embaixo dele. Me abaixo e deslizo minha mão ao longo de um painel liso e frio – vidro. Pressiono minha mão no vidro nos meus dois lados. O tanque de novo. Não tenho medo de me afogar. Isso não é sobre água; é sobre minha incapacidade de escapar do tanque. É sobre fraqueza. Eu só preciso convencer a mim mesma que sou forte o bastante para quebrar o vidro.
As luzes azuis aparecem, e água desliza sobre o chão, mas não deixo a simulação chegar tão longe. Bato na parede em frente a mim, esperando que o painel quebrasse.
Minha mão é empurrada para trás, causando nenhum dano.
Minha pulsação acelera. E se o que funcionou na primeira simulação não funcionar aqui? E se eu não puder quebrar o vidro se não estiver sobre coação? A água alcança meus tornozelos, subindo cada vez mais rápido. Preciso me acalmar. Me acalmar e manter o foco. Me inclino contra a parede atrás de mim e chuto o mais forte que posso. E de novo. Meus pés latejam, mas nada acontece.
Eu tenho outra alternativa. Posso esperar até que a água encha o tanque – e ela já estava batendo nos meus joelhos – e tentar me acalmar enquanto me afogo. Me apoio contra a parede, balançando a cabeça. Não. Não posso me afogar. Não posso.
Fecho minhas mãos em punho e soco a parede. Sou mais forte que o vidro. O vidro é tão fino quanto gelo recém-formado. Minha mente vai fazê-lo ser. O vidro é gelo. O vidro é gelo. O vidro é...
O vidro se despedaça sob minha mão, e água se espalha pelo chão. E então a escuridão volta.
Sacudo minhas mãos.
Esse deveria ter sido um obstáculo fácil de transpor. Já o enfrentei antes em simulações. Não posso perder tanto tempo de novo.
O que parece ser uma parede sólida me atinge lateralmente, me fazendo perder o fôlego e eu caio, arquejando. Não posso nadar; só vi corpos em águas desse porte, poderosas assim em fotos. Abaixo de mim está uma rocha com bordas irregulares, escorregadias devido à água. A água bate na minha perna, e eu me agarro à parede, sentindo um gosto salgado na boca. Com o canto do olho vejo um céu escuro e uma lua sangrenta.
Outra onda me atinge, batendo contra minhas costas. Bato meu queixo na pedra e estremeço. O mar é gelado, mas meu sangue é quente, escorrendo pelo meu pescoço. Estico meu braço e alcanço a borda da pedra. A água se choca contra minhas pernas com uma força irresistível. Me seguro o mais forte que consigo, mas não sou forte o bastante – a água me puxa e as ondas empurram meu corpo de volta. Ela lança minhas pernas para cima e meus braços para os lados. Colido contra a rocha, minhas costas pressionadas nela, a água batendo em meu rosto. Meus pulmões gritam por ar. Giro e agarro a borda da rocha novamente, me puxando para fora da água. Engasgo e outra onda me atinge, dessa vez mais forte, mas meu apoio é melhor.
Eu não devo ter medo da água. Devo ter medo de estar fora de controle. Diante disso, eu preciso retomar o controle.
Com um grito de frustração, estendo minhas mãos e encontro um buraco na rocha. Meus braços tremem violentamente enquanto me arrasto para cima, e puxo meu pé para cima antes que a água consiga me acertar novamente. Uma vez que meu pé está livre, levanto e começo a correr, meus pés batendo contra a rocha, a lua vermelha na minha frente e o oceano se foram.
Então tudo se vai e meu corpo está parado. Muito parado.
Tento mover meus braços, mas eles estão fortemente amarrados. Olho para baixo e vejo uma corda ao redor do meu peito, braços e pernas. Uma pilha de toras de madeira ao redor dos meus pés, e vejo um mastro atrás de mim. Eu estou acima do chão.
Pessoas saem das sombras, e seus rostos são familiares. São os iniciados carregando tochas, e Peter está liderando-os. Seus olhos parecem fossas negras, ele tem um sorriso afetado que se espalha selvagemente por seu rosto, fazendo aparecer rugas em suas bochechas. Uma risada surge em algum lugar no centro da plateia e várias outras a acompanham. Risadas é tudo que eu escuto.
À medida que elas aumentam, Peter abaixa sua tocha em direção a madeira, e chamas surgem próximas ao chão. Elas rastejam e sobem pelas toras. Não luto contra as cordas, como fiz da primeira vez que enfrentei esse medo. Ao invés disso, fecho meus olhos e engulo tanto ar quanto posso. Isso é uma simulação. Não pode me machucar. O calor das chamas aumenta ao meu redor. Balanço minha cabeça.
— Sente esse cheiro, Careta? — Peter diz, sua voz mais alta do que a risada dos demais.
— Não — digo. As chamas ficando mais alta.
Ele fareja o ar.
— Esse é o cheiro da sua carne assando.
Quando abro meus olhos, minha visão está borrada de lágrimas.
— Sabe que cheiro eu sinto? — Minha voz luta para se sobressair as risadas ao meu redor, as risadas que me oprimem tanto quanto o calor.
Meus braços se contorcem e eu quero lutar contra as cordas, mas não vou, não vou lutar inutilmente, não vou entrar em pânico. Encaro Peter através das chamas, o calor fazendo o sangue brotar sobre minha pele, fluindo através de mim, derretendo a sola dos meus sapatos.
— Sinto cheiro de chuva — digo.
Trovões urgem acima de mim e eu grito quando as chamas atingem meus dedos e a dor atravessa minha pele. Inclino minha cabeça para trás e me concentro nas nuvens se aglomerando no céu, escuras e carregadas de chuva. Uma linha de luz se espalha pelo céu e eu sinto as primeiras gotas caírem na minha testa. Mais rápido, mais rápido! A gota corre pela lateral do meu nariz, e a segunda gota atinge meu ombro, tão grande que parece ser feita de gelo ou de pedra ao invés de água. Correntes de chuva caem ao meu redor, e eu escuto um chiado sobre o riso. Sorrio, aliviada enquanto a chuva apaga o fogo e alivia as queimaduras das minhas mãos. As cordas caem e eu passo minhas mãos por meus cabelos.
Gostaria de ser igual a Tobias e ter somente quatro medos para enfrentar. Mas não sou assim tão destemida.
Puxo minha camisa para baixo e quando olho para cima, estou parada no meu quarto no setor da Abnegação da cidade. Nunca enfrentei esse medo antes. As luzes estão apagadas, mas o quarto é iluminado pelo luar que entra através da janela. Uma das paredes está coberta de espelhos. Viro para eles, confusa. Isso não está certo. Não tenho permissão para ter espelhos.
Olho para o reflexo no espelho: meus olhos arregalados, a cama com o lençol cinza esticado, o guarda-roupa, a estante, as paredes lisas. Meus olhos pulam para a janela atrás de mim.
E para o homem parado do lado de fora.
Um calafrio desce por minha coluna como uma gota de suor, meu corpo se enrijece. Eu o reconheço. Ele é o homem com o rosto marcado por cicatrizes do teste de aptidão. Ele está usando preto e está tão imóvel quanto uma estátua, dois outros homens aparecem a sua esquerda e direita, tão imóveis quanto ele, mas seus rostos são inexpressivos – crânios cobertos de pele.
Eu giro meu corpo e eles estão no meu quarto. Pressiono meus ombros no espelho.
Por um momento o quarto fica em silêncio, e então punhos atingem minha janela, não apenas dois ou quatro ou seis, mas dúzias de pulsos com dúzias de dedos, batendo contra o vidro. O barulho reverbera nas minhas costelas, é tão alto, e então o homem com as cicatrizes e seus dois companheiros começam a andar devagar, com movimentos cuidadosos em minha direção.
Eles estão aqui para me pegar, como Peter, Drew e Al; para me matar. Eu sei disso.
Simulação. Isso é uma simulação. Meu coração martelando no meu peito; pressiono minha mão no vidro atrás de mim e a deslizo para esquerda. Isso não é um espelho, mas sim a porta do closet, digo a mim mesma, onde a arma estará. Estará pendurada na parede da direita, apenas centímetros longe da minha mão. Não tiro meus olhos do homem das cicatrizes, e com a ponta dos dedos encontro a arma e envolvo minha mão no coldre.
Mordo meu lábio e atiro contra o homem das cicatrizes. Não espero para ver se as balas o atingiram – miro em cada um dos homens inexpressivos, o mais rápido que posso. Meu lábio dói com a mordida. As batidas na janela param, mas um som estridente a substitui, e os pulsos transformam-se em dedos tortos, arranhando o vidro, lutando para conseguir entrar. O vidro trinca sob a pressão das várias mãos e então racha e depois quebra.
Eu grito.
Não tenho balas o suficiente na arma.
Corpos pálidos – humanos, mas mutilados, com braços dobrados em ângulos estranhos, bocas muito escancaradas, com dentes pontiagudos, órbitas vazias – entrando no meu quarto, um atrás do outro tropeçando em seus pés, tropeçando na minha direção. Entro no closet e fecho a porta na minha frente. Uma solução. Eu preciso de uma solução. Me afundo no chão e pressiono a lateral da arma contra minha cabeça. Não posso lutar contra eles. Não posso lutar contra eles, então preciso me acalmar. A paisagem do medo vai registrar a diminuição das batidas do meu coração e minha respiração regular e vai passar para o próximo obstáculo.
Sento no chão do closet. A parede atrás de mim racha. Ouço uma batida – os punhos voltaram, batendo contra a porta do closet – mas eu me viro e encaro a escuridão do painel atrás de mim. Não é uma parede, mas sim outra porta. Me atrapalho na tentativa de empurrá-la para o lado e encontro o corredor do andar de cima. Sorrindo, rastejo pelo buraco e me levanto. Sinto cheiro de alguma coisa cozinhando. Estou em casa.
Respiro fundo, observo minha casa desaparecer. Esqueci, por um segundo, que estava no quartel-general da Audácia.
E então Tobias aparece parado na minha frente.
Mas eu não tenho medo de Tobias. Olho por cima do ombro. Talvez tenha algo atrás de mim que eu deva prestar atenção. Mas não – atrás de mim está apenas uma cama com dossel.
Uma cama?
Tobias anda em minha direção, devagar.
O que está acontecendo?
Eu o encaro, paralisada. Ele sorri para mim. Aquele sorriso parece gentil. Familiar.
Ele pressiona sua boca contra a minha e meus lábios se partem. Pensei que fosse ser impossível esquecer que eu estava em uma simulação. Eu estava errada; ele faz todo o resto se desintegrar.
Seus dedos acham o zíper da minha jaqueta e o puxa para baixo devagar até o zíper abrir. Ele tira a jaqueta dos meus ombros.
Oh, é tudo que eu consigo pensar enquanto ele me beija novamente. Oh.
Meu medo é estar com ele. Me preocupei com afeição minha vida toda, mas não sabia quão profunda essa preocupação era.
Mas esse obstáculo não parece com os outros. É um tipo diferente de medo – um pânico nervoso mais do que o terror paralisante.
Ele desliza as mãos pelos meus braços e aperta meu quadril, seus dedos deslizando na pele logo abaixo do meu cinto e eu estremeço.
Gentilmente o puxo de volta e pressiono minhas mãos na testa. Fui atacada por corvos e por um homem com rosto grotesco; o garoto que quase me atirou em um abismo ateou fogo em mim; eu quase me afoguei – duas vezes – e é com isso que eu não consigo lidar? Esse é o medo para o qual eu não tenho solução – um garoto que eu gosto, que quer... transar comigo?
O Tobias da simulação beija meu pescoço.
Tento raciocinar. Tenho que enfrentar meu medo. Tenho que tomar o controle da simulação e achar uma forma de tornar isso menos assustador.
Eu olho para o Tobias da simulação e digo severamente:
— Não vou transar com você em uma alucinação. Certo?
Então eu o agarro pelo ombro e nos viro, empurrando-o contra uma das colunas da cama. Sinto algo além do medo – um formigamento no meu estômago, uma bolha de riso. Me encosto nele e o beijo, minhas mãos envolvendo-se em torno de seus braços. Ele parece forte. Ele parece... bom.
E ele some.
Rio até que meu rosto esteja quente. Devo ser a única iniciada com esse medo.
Um gatilho é puxado na minha orelha.
Quase me esqueci desse. Sinto o peso da arma na minha mão e fecho meus dedos em torno dela, puxando o gatilho com meu dedão devagar. Uma luz brilha através do teto – sua origem desconhecida – e parados no centro do círculo de luz estão minha mãe, meu pai e meu irmão.
— Faça — sibila uma voz próxima a mim.
É uma voz feminina, mas dura, como se estivesse cheia de pedras e cacos de vidro. Parece com Jeanine.
O cano de uma arma é pressionado na minha têmpora, um círculo gelado contra minha pele. O frio viaja por todo meu corpo, deixando os pelos da minha nuca arrepiados. Seco o suor da minha mão na calça e olho para a mulher pelo canto do olho. É Jeanine. Seus óculos estão tortos e seus olhos vazios.
— Faça — ela diz de novo, mais insistente dessa vez. — Faça ou eu mato você.
Encaro Caleb. Ele acena com a cabeça, suas sobrancelhas arqueadas em simpatia.
— Vá em frente, Tris — ele diz delicadamente. — Eu entendo. Está tudo bem.
Meus olhos queimam.
— Não — digo, minha garganta tão apertada que chega a doer. Balanço minha cabeça.
— Vou dar a você dez segundos! — a mulher grita. — Dez! Nove!
Meus olhos pulam do meu irmão para o meu pai. A última vez que o vi, ele me deu um olhar de desprezo, mas dessa vez seus olhos estão amplos e suaves. Eu nunca o vi com essa expressão antes.
— Tris — ele diz. — Você não tem outra opção.
— Oito!
— Tris — minha mãe diz. Ela sorri. Ela tem um sorriso doce. — Nós amamos você.
— Sete!
— Cale a boca! — eu grito, segurando a arma.
Eu posso fazer isso. Posso atirar neles. Eles entendem. Eles estão me pedindo isso. Eles não iriam querer que eu sacrificasse a mim mesma por eles. Eles nem mesmo são reais. Isso é uma simulação.
— Seis!
Não é real. Não significa nada. O olhar gentil do meu irmão parece como duas brocas furando buracos na minha cabeça. Meu suor deixa a arma escorregadia.
— Cinco!
Não tenho outra opção. Fecho meus olhos. Pense. Eu preciso pensar. A urgência fazendo meu coração acelerar depende de uma coisa, e uma coisa só: a ameaça à minha vida.
— Quatro! Três!
O que Tobias disse? Altruísmo e coragem não são tão diferentes.
— Dois!
Solto o gatilho da minha arma e a deixo cair. Antes que eu possa fechar meus olhos, me viro e pressiono a testa contra a arma atrás de mim.
Atire em mim em vez deles.
— Um!
Escuto um clique e um estrondo.

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