domingo, 16 de março de 2014

Capítulo 2

Os exames de aptidão começam depois do almoço. Sentamo-nos ao longo das extensas mesas do refeitório enquanto os avaliadores chamavam dez nomes por vez, um para cada sala de avaliação. Eu sentei ao lado de Caleb, e em frente a nossa vizinha, Susan.
O pai de Susan anda por toda a cidade a trabalho, então ele tem um carro e a deixa na escola todos os dias. Ele se ofereceu para nos levar também, mas Caleb disse que preferimos sair mais tarde e não queremos incomodá-los.
Claro que não queremos.
Os avaliadores são, na maioria, integrante da Abnegaçãos voluntários, embora haja um voluntário da Erudição em uma das salas de avaliação e um da Audácia em outra para testar os membros da Abnegação como nós, uma vez que as regras determinam que não podemos ser testados por alguém de nossa própria facção. As regras também dizem que não podemos nos preparar de forma alguma para a avaliação, assim, eu não sei o que esperar.
Meu olhar viaja de Susan até a mesa dos integrantes da Audácia, do outro lado da sala. Eles estão rindo, gritando e jogando cartas. Em outra mesa, os integrantes da Erudição discutem sobre livros e jornais, numa busca constante por conhecimento.
Um grupo de garotas da Amizade, vestidas de amarelo e vermelho, senta em círculo no chão da cafeteria, brincando de algum tipo de jogo que envolve canções ritmadas e batidas de mão. A cada minuto escuto gargalhadas delas quando alguém é eliminado da brincadeira e obrigado a sentar no meio do círculo. Na mesa ao lado da delas, garotos da Franqueza gesticulam selvagemente com as mãos. Eles parecem discutir a respeito de alguma coisa, mas não deve ser nada sério, já que alguns deles ainda estão sorrindo.
Na mesa da Abnegação, nos sentamos em silêncio e esperamos. Os costumes da facção determinam comportamento ocioso e supressão das preferências individuais. Não acredito que todos os integrantes da Erudição queiram estudar todo o tempo, ou que cada um dos integrantes da Franqueza goste de debates acalorados, mas eles não podem desafiar as regras de suas facções mais do que eu posso.
Caleb é chamado no próximo grupo. Ele caminha confiante em direção à saída. Não preciso desejar boa sorte para ele, ou dizer que não precisa ficar nervoso. Ele conhece seu lugar, sabe a qual facção pertence, sempre soube. Minha primeira memória dele é de quando nós tínhamos quatro anos de idade. Ele me repreendeu por não dar minha corda de pular para uma garotinha no parquinho que não tinha nada para brincar. Ele não me deu sermões com frequência depois disso, mas eu ainda tenho seu olhar de desaprovação gravado em minha memória.
Tentei explicar-lhe que meus instintos não são iguais aos dele – nem ao menos passou pela minha cabeça ceder meu lugar ao homem da Franqueza no ônibus – mas ele não entendeu.
“Apenas faça o que você deve fazer”, ele sempre diz. É fácil assim para ele, e deveria ser para mim também.
Meu estômago se contorce. Fecho meus olhos e mantenho-os assim durante 10 minutos, até que Caleb volta e senta-se novamente.
Ele está branco como papel, correndo suas palmas ao longo das pernas, como faço quando limpo o suor das mãos. Quando ele as traz de volta, seus dedos tremem. Abro minha boca na tentativa de perguntar alguma coisa, mas as palavras não saem. Não era permitido que eu perguntasse nada a respeito de seu resultado e ele não está autorizado a me contar.
Um dos voluntários da Abnegação anuncia os próximos nomes. Dois da Audácia, dois da Erudição, dois da Amizade, dois da Franqueza, e então:
— Da Abnegação: Susan Black e Beatrice Prior.
Levanto-me porque devo, mas se dependesse de mim, eu permaneceria sentada. Sinto como se tivesse uma bolha em meu peito que aumenta a cada segundo, ameaçando me despedaçar de dentro para fora. Sigo Susan até a saída. As pessoas pelas quais eu passo provavelmente não podem nos diferenciar. Usamos as mesmas roupas e temos o mesmo cabelo loiro. A única diferença é que Susan não deve estar se sentindo como se fosse vomitar e, pelo que posso dizer, suas mãos não tremem tanto ao ponto de ela precisar agarrar as mangas de sua camisa para firmá-las.
Esperando por nós do lado de fora, estava um corredor com dez salas. Elas são utilizadas apenas para os testes de aptidão, então eu nunca estive dentro de nenhuma delas antes. Diferente das outras salas da escola, elas são separadas não por vidro, mas por espelhos. Observo meu reflexo pálido e aterrorizado passando por uma das portas. Susan pisca nervosamente para mim quando entra na sala cinco e eu entro na sala seis, onde uma mulher da Audácia espera por mim.
Ela não tem o olhar severo dos jovens da Audácia que eu já vi. Seus olhos são pequenos, escuros e angulares, e ela usa um blazer preto – como os ternos masculinos – e jeans. Apenas quando ela se vira para fechar a porta que eu percebo uma tatuagem na parte de trás do seu pescoço, um falcão preto e branco com olhos vermelhos. Se eu não estivesse me sentindo como se meu coração tivesse migrado para minha garganta, teria perguntado o que significava. Deve significar alguma coisa.
Espelhos cobrem as paredes internas da sala. Posso ver meu reflexo de todos os ângulos: o tecido cinza obscurecendo o formato das minhas costas, meu pescoço longo, minhas mãos com juntas protuberantes, vermelhas por causa do fluxo do sangue. O teto branco brilhando com as luzes. No centro da sala está uma cadeira reclinável, como aquelas do dentista, com uma máquina próxima a ela. Parece um lugar onde coisas terríveis acontecem.
— Não se preocupe — a mulher diz. — Não irá doer.
Seu cabelo é preto e liso, mas na luz eu vejo seus fios grisalhos.
— Sente-se e fique confortável — ela diz. — Meu nome é Tori.
Desajeitadamente, sento na cadeira e reclino meu corpo, colocando minha cabeça no encosto. As luzes machucam meus olhos. Tori ocupa-se com a máquina a minha direita. Eu tento focar nela e não nos fios em suas mãos.
— Por que o falcão? — deixo escapar enquanto ela fixa os eletrodos na minha testa.
— Nunca conheci um integrante da Abnegação curioso antes — ela diz, levantando suas sobrancelhas para mim.
Eu estremeço e os pelos do meu braço se arrepiam. Minha curiosidade é um erro, uma traição dos valores da Abnegação.
Murmurando um pouco, ela pressiona outro eletrodo na minha testa e explica:
— Em algumas partes no mundo antigo, os falcões simbolizavam o Sol. Quando eu fiz esta tatuagem, imaginei que, se eu sempre o tivesse o sol comigo, nunca teria medo do escuro.
Tentei me impedir de fazer outras perguntas, mas não pude evitar.
— Você tem medo do escuro?
— Eu tinha medo do escuro — ela me corrige, pressionando o próximo eletrodo em sua própria testa e prendendo um fio a ele. Ela dá de ombros. — Agora me lembra da superação do medo.
Ela posiciona-se atrás de mim. Aperto os braços da cadeira tão forte que meus dedos ficam brancos. Ela puxa os fios em direção a ela, prendendo a mim, a ela e a máquina atrás dela. Então me entrega um frasco com algum líquido transparente.
— Beba isto — ela diz.
— O que é isso? — minha garganta fica seca. É difícil engolir. — O que vai acontecer?
— Não posso te dizer isso. Apenas confie em mim.
Tomo fôlego e bebo rapidamente todo o conteúdo do frasco. Meus olhos se fecham.

+ + +

Quando os abro novamente, um instante se passou, mas estou em outro lugar. Estou na lanchonete mais uma vez, mas todas as mesas estão vazias e vejo através das paredes de vidro que está nevando. Na mesa em minha frente estão duas cestas. Em uma delas um pedaço generoso de queijo, na outra, uma faca do tamanho do meu antebraço.
Atrás de mim, a voz de uma mulher diz:
— Escolha.
— Por quê?
— Escolha — ela repete.
Eu olho sobre meu ombro, mas ninguém está lá. Olho novamente para as cestas.
— O que irei fazer com estas coisas?
— ESCOLHA! — ela grita.
Quando ela grita comigo, meu medo desaparece e teimosia toma seu lugar. Faço uma careta e cruzo meus braços.
— Então faremos do seu jeito — ela diz.
As cestas desaparecem. Ouço uma porta abrindo e me viro para ver quem é. Eu vejo não um “alguém”, mas “algo”. Um cachorro com nariz pontudo está parado a alguns metros de mim. Ele abaixa-se, seus lábios repuxados para traz expondo seus dentes brancos, um rosnado cresce do fundo de sua garganta, e eu vejo porque o queijo seria útil. Ou a faca. Mas é tarde demais.
Penso em correr, mas o cachorro seria mais rápido do que eu. Não posso derrubá-lo também. Minha mente pondera. Tenho que tomar uma decisão. Se eu pudesse pular sobre uma das mesas e usá-la como escudo – não, eu sou muito baixa para pular sobre as mesas, e não forte o bastante para levantar uma delas.
O cão rosna e eu quase posso sentir o som reverberando em meus ossos.
Meu livro de Biologia diz que cães podem farejar o medo devido a uma substância química secretada pelas glândulas humanas em estado de coação, a mesma substância liberada pela presa de um cão. Farejar o medo leva-os a atacar. O cachorro avança em minha direção, suas unhas arranhando o chão.
Não posso correr. Não posso lutar. Ao invés disso, respiro o bafo do cachorro e tento não imaginar o que ele acabou de comer. Não tem nem um pouco de branco em seus olhos, apenas um brilho negro.
O que mais eu sei sobre cachorros? Eu não deveria olhá-lo nos olhos. Isso é um sinal de agressão. Lembro-me de pedir um cachorrinho de estimação ao meu pai, quando era pequena, e agora, encarando o chão em frente às imensas patas do cachorro, não consigo lembrar por que. Ele se aproxima, ainda rosnando. Se encará-lo é um sinal de agressão, qual o sinal de submissão?
Minha respiração é alta, mas constante. Fico de joelhos. A última coisa que eu quero é deitar no chão em frente ao cachorro – fazendo com que seus dentes estejam bem à altura do meu rosto – mas é a melhor opção que eu tenho. Estico minhas pernas para trás e deito em meus cotovelos. O cachorro caminha cada vez mais próximo, até que eu sinto seu hálito quente em meu rosto. Meus braços tremem.
Ele late em meu ouvido, e eu prendo meus dentes para me impedir de gritar.
Alguma coisa áspera e molhada toca minha bochecha. O rosnado do cachorro para, e quando eu levanto minha cabeça para olhar, ele está ofegante. Ele lambe meu rosto. Eu franzo as sobrancelhas e sento sobre meus joelhos. O cachorro apoia as patas no meu colo e lambe meu queixo. Eu tremo limpando a baba da minha pele e sorrio.
— Você não é uma besta feroz, é?
Levanto devagar para não assustá-lo, mas ele parece um animal diferente daquele que me encarava segundos atrás. Estico minha mão cuidadosamente, caso precise puxá-la novamente. O cachorro balança minha mão com sua cabeça. E de repente estou feliz por não ter escolhido a faca.
Eu pisco, e quando meus olhos se abrem, uma criança está de pé do outro lado da sala usando um vestido branco. Ela estica as duas mãos e grita “Cachorrinho!”
Quando ela corre em direção ao cachorro ao meu lado, abro a boca para alertá-la, mas é tarde demais. O cachorro se vira. Ao invés de grunhir, ele late e rosna, flexionando seus músculos. Prestes a atacar. Eu não penso, apenas pulo. Arremesso meu corpo sobre o cão, agarrando seu pescoço com meus braços.
Minha cabeça acerta o chão. O cachorro se foi, assim como a garotinha. Ao invés disso, eu estou sozinha – na sala de teste, agora vazia. Viro-me devagar e não consigo ver meu reflexo em nenhum dos espelhos. Abro a porta e caminho para o corredor, mas não é um corredor, é um ônibus e todos os lugares estão ocupados.
Paro entre os bancos e me seguro a um dos encostos. Sentado próximo a mim está um homem com um jornal. Não consigo ver seu rosto, mas posso ver suas mãos. Elas estão cheias de cicatrizes, como se ele as tivesse queimado. Elas seguram o papel como se desejassem destroçá-lo.
— Você conhece esse rapaz? — ele pergunta.
Ele mostra a foto na primeira página do jornal. A manchete diz Assassino brutal finalmente preso! Encaro a palavra “assassino”. Muito tempo se passou desde que ouvi essa palavra, mas mesmo sua forma me enche de pavor. Na foto abaixo da manchete está um jovem homem com um rosto vazio e barba. Sinto como se o conhecesse, mas não consigo lembrar como. E ao mesmo tempo, sinto como se fosse uma má ideia dizer isso ao homem sentado.
— E então? — ouço raiva em sua voz. — Você o conhece?
Uma ideia ruim – não, uma péssima ideia. Meu coração acelera e eu agarro o encosto com mais força para impedir que minhas mãos tremam e me entreguem. Se eu disser ao homem que conheço o rapaz do artigo, alguma coisa terrível poderá acontecer comigo. Mas não posso convencê-lo de que não o conheço. Eu poderia limpar minha garganta e dar de ombros – mas isso seria uma mentira.
Limpo minha garganta.
— Você o conhece? — ele repete.
Dou de ombros.
— E então?
Um tremor atravessa meu corpo. Meu medo é irracional. É apenas um teste, não é real.
— Não — digo em minha voz casual. — Não tenho ideia de quem ele é.
Ele levanta e finalmente posso ver seu rosto. Ele usa óculos escuros e sua boca se dobra em um sorriso ameaçador. Sua bochecha está marcada por cicatrizes, assim como suas mãos. Ele se inclina próximo ao meu rosto. Seu hálito cheira a cigarros. Não é real, lembro-me. Não é real.
— Você está mentindo — ele diz. — Você está mentindo!
— Não estou.
— Posso ver em seus olhos que você está mentindo.
Empertigo-me.
— Não, você não pode.
— Se você o conhece — ele diz em voz baixa — você poderia me salvar. Você poderia me salvar!
Cerro meus olhos.
— Bem... — eu digo. Endureço meu queixo. — Não o conheço.

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