domingo, 16 de março de 2014

Capítulo 3

Eu acordo com as palmas das mãos suadas e uma ponta de culpa em meu peito. Estou deitada em uma cadeira na sala espelhada. Quando inclino minha cabeça de volta, vejo Tori atrás de mim. Ela comprime os lábios e remove os eletrodos das nossas cabeças. Espero ela falar alguma coisa sobre o teste – que ele acabou, ou que eu fui bem, embora como eu poderia falhar em um teste como esse? – mas ela não fala nada, só retira os fios da minha testa.
Eu sento ereta e esfrego as palmas na minha roupa. Devo ter feito alguma coisa errada, mesmo que isso tenha acontecido somente em minha mente. Esse estranho olhar no rosto de Tori é porque ela não sabe como falar que tipo de pessoa horrível eu sou? Eu gostaria que ela só acabasse com isso de uma vez.
— Isso — ela fala — foi confuso. Com licença, eu volto logo.
Confuso?
Puxo meus joelhos para o peito e descanso meu rosto neles. Eu gostaria de sentir vontade de chorar, porque as lágrimas poderiam me trazer um sentimento de liberação, mas não sinto. Como você falha em um teste onde não é permitido se preparar para ele?
Enquanto o tempo passa, fico mais nervosa. Tenho que enxugar minha mão a cada segundo conforme o suor acumula – ou talvez eu só faça isso porque me ajuda a me sentir mais calma. E se eles falarem que eu não estou apta para nenhuma das facções? Eu teria que viver na rua, com os sem facção. Eu não posso fazer isso. Viver com os sem facção não é só viver na pobreza e no desconforto; é viver separado da sociedade, separado da coisa mais importante na vida, a comunidade.
Minha mãe me falou uma vez que nós não podemos sobreviver sozinhos, mas mesmo que pudéssemos, não iríamos querer. Sem uma facção, nós não temos propósito e nem razão para viver.
Sacudo minha cabeça. Não posso pensar dessa forma. Eu tenho que ficar calma.
Finalmente a porta abre e Tori entra. Eu agarro os braços da cadeira.
— Desculpe preocupá-la — Tori fala. Ela fica parada próxima ao meu pé com as mãos nos bolsos. Parece tensa e pálida. — Beatrice, os seus resultados são inconclusivos. Tipicamente, cada estágio da simulação elimina uma ou mais facções, mas no seu caso apenas duas foram descartadas.
Eu a encaro.
— Duas? — eu pergunto.
Minha garganta está tão apertada que é difícil falar.
— Se você tivesse demonstrado um desgosto automático pela faca e escolhido o queijo, a simulação teria levado você a um diferente cenário e confirmado sua aptidão para a Amizade. Isso não aconteceu, e é por isso que a Amizade está fora — Tori coça a nuca. — Normalmente, a simulação progride de modo linear, isolando uma facção e descartando o resto. As escolhas que você fez nem mesmo permitiram que a Franqueza, a segunda opção, fosse descartada, então eu tive que alterar a simulação e colocar você em um ônibus. E lá sua insistência na desonestidade descartou a Franqueza. — Ela dá um meio sorriso. — Não se preocupe sobre isso. Só os integrantes da Franqueza falam a verdade nessa.
Um dos nós no meu peito folga. Talvez eu não seja uma pessoa horrível.
— Suponho que isso não é totalmente certo. As pessoas que falam a verdade são os integrantes da Franqueza... e da Abnegação — ela fala. — O que nos deixa um problema.
Fico boquiaberta.
— Por um lado, você se jogou na frente do cachorro para evitar que ele atacasse a garota, o que é uma resposta da Abnegação... mas por outro, quando o homem falou que a verdade poderia salvá-lo, você ainda assim se recusou a falar. Não uma resposta orientada da Abnegação — ela suspira. — Não correr do cachorro sugere Audácia, mas o mesmo aconteceria se você pegasse a faca, o que você não fez. — Ela limpa a garganta e continua. — Sua resposta inteligente ao cachorro indica uma forte afinidade com a Erudição. Eu não tenho ideia do que fazer com a sua indecisão no primeiro estágio, mas...
— Espere — eu a interrompo. — Então você não tem ideia de qual é a minha aptidão?
— Sim e não. Minha conclusão — ela explica — é que você dispõe de igual aptidão para Abnegação, Audácia e Erudição. Pessoas que recebem esse tipo de resultado são... — ela olha para trás dos ombros como se esperasse alguém aparecer atrás dela — são chamadas... Divergentes.
Ela fala a última palavra tão rapidamente que eu quase não ouço e seu olhar tenso de preocupação retorna. Ela caminha ao redor da cadeira e se aproxima de mim.
— Beatrice — ela fala — sob nenhuma circunstância você deve dividir essa informação com alguém. Isso é muito importante.
— Não é permitido compartilhar nossos resultados — eu concordo. — Sei disso.
— Não — Tori agora se ajoelha próxima à cadeira e coloca a mão no braço da cadeira. Nossos rostos estão a centímetros de distância. — Isso é diferente. Eu não quero dizer que você não pode compartilhar isso agora; quero dizer que você nunca deve dividir isso com ninguém, nunca, não importa o que aconteça. Divergência é extremamente perigoso. Você entende?
Eu não entendo – como um teste inconclusivo poderia ser perigoso? – mas ainda assim eu concordo. Não quero dividir meus resultados do teste com ninguém mesmo.
— Ok.
Tiro os braços da cadeira e fico de pé. Eu me sinto insegura.
— Eu sugiro — Tori fala — que você vá para casa. Você tem muitas coisas em que pensar e esperar com os outros pode não ser benéfico para você.
— Tenho que falar para o meu irmão onde eu estou indo.
— Eu o deixarei saber.
Toco minha testa e encaro o chão enquanto saio da sala. Não posso suportar olhar nos olhos dela. Não posso suportar pensar na Cerimônia de Escolha amanhã.
É minha escolha agora, não importa o que o teste fale.
Abnegação. Audácia. Erudição.
Divergente.

+ + +

Decido não pegar o ônibus. Se eu chegar em casa cedo, meu pai vai perceber quando ele checar os registros da casa no final do dia e vou ter que explicar o que aconteceu. No lugar disso eu caminho. Vou ter que interceptar Caleb antes que ele mencione alguma coisa para os nossos pais, mas Caleb pode manter segredo.
Caminho no meio da rua. Os ônibus tendem a ir em direção ao meio-fio, então é mais seguro aqui. Às vezes, nas ruas perto da minha casa, posso ver os lugares onde a linha amarela costumava ficar. Nós não precisamos usá-las agora que existem poucos carros. Não precisamos de semáforos tampouco, mas em alguns lugares eles estão pendurados tão precariamente pelo caminho, como se pudessem cair a qualquer momento.
A renovação se move lentamente através da cidade, que é um mosaico de edifícios novos e limpos e de velhas ruínas. A maioria dos novos edifícios está próximo ao pântano que costumava ser um lago há um longo tempo. A agência voluntária da Abnegação que a minha mãe trabalha é responsável pela maioria dessas renovações.
Quando olho para o estilo de vida da Abnegação como alguém de fora, acho que é lindo. Quando assisto minha família mover-se em harmonia; quando vamos a jantares festivos e depois todo mundo limpa junto sem ter que ser mandado; quando vejo Caleb ajudar estranhos a carregar as compras, eu me apaixono por essa vida novamente. É só quando tento viver essa vida que tenho problemas. Isso nunca parece genuíno.
Mas escolher outra facção significa abandonar minha família. Permanentemente.
Um pouco além do setor da cidade da Abnegação está o trecho de esqueletos de construções e calçadas quebradas pelas quais estou caminhando agora. Existem lugares onde a rodovia está completamente quebrada, revelando sistemas de encanamento e metrôs vazios que precisei ser cuidadosa para evitar, e lugares que o fedor de esgoto e lixo é tão forte que tenho que tampar meu nariz.
Aqui é onde os sem facções vivem. Por não conseguirem completar a iniciação na facção que escolheram, vivem na pobreza, fazendo o trabalho que ninguém quer fazer. Eles são porteiros, trabalhadores da construção e coletores de lixo; fazem tecidos e operam trens e ônibus. Em troca de seu trabalho, conseguem comida e roupa, mas como diz minha mãe, não o suficiente de ambos.
Vejo um homem sem facção parado em uma esquina mais a frente. Está usando uma roupa irregular marrom e a pele da sua mandíbula está solta. Ele me encara e eu o encaro de volta, incapaz de olhar para o outro lado.
— Com licença — ele fala com a voz rouca. — Você tem algo que eu possa comer?
Sinto um nó na minha garganta. Uma voz dura na minha cabeça fala, curve sua cabeça e continue caminhando.
Não. Balanço minha cabeça. Eu não deveria estar com medo desse homem. Ele precisa de ajuda e presume-se que eu deva ajudá-lo.
— Hum... sim — eu falo.
Procuro em minha bolsa. Meu pai fala para eu manter comida em minha bolsa todo o tempo exatamente por essa razão. Ofereço uma pequena sacola de fatias de maçãs desidratadas.
Ele estende o braço, mas em vez de pegar a sacola, a mão dele fecha em torno do meu pulso. Ele sorri para mim. Tem uma fenda entre os dentes da frente.
— Nossa, você não tem olhos bonitos — ele fala. — É uma pena que o resto de você seja tão simples.
Meu coração acelera. Puxo meu braço de volta, mas o aperto dele é mais forte. Cheiro algo acre e desagradável em seu hálito.
— Você parece muito jovem para andar sozinha por aí, querida.
Eu paro de puxar e fico ereta. Sei que aparento ser jovem; não preciso ser lembrada.
— Sou mais velha do que aparento — eu replico. — Tenho dezesseis.
Seus lábios se abrem, revelando um molar cinza com um buraco preto do lado. Não consigo saber se ele está sorrindo ou fazendo uma careta.
— Então hoje não é um dia especial para você? O dia antes da sua escolha?
— Me solta — falo.
Ouço o eco em meus ouvidos. Minha voz soa clara e severa, não o que eu esperava escutar. Sinto como se não fosse eu.
Eu estou preparada. Sei o que fazer. Me imagino levantando o cotovelo e acertando-o. Vejo a sacola de maçãs voando para longe. Escuto meus passos correndo. Estou preparada para entrar em ação.
Mas então ele larga meu pulso, pega as maçãs e fala:
— Escolha sabiamente, garotinha.

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