domingo, 16 de março de 2014

Capítulo 4

Chego à minha rua 5 minutos mais cedo do que o de costume, segundo meu relógio – o único acessório permitido pela Abnegação, e somente porque é prático. Ele tem uma pulseira cinza e caixa de vidro. Se eu o virar da maneira certa, posso ver meu reflexo.
As casas na minha rua são todas do mesmo tamanho e formato. Feitas de cimento, com poucas janelas, em um formato retangular minimalista e econômico. Seus jardins são cobertos de grama e as caixas de correio são feitas de um metal fosco. Para alguns poderia parecer sombrio, mas para mim sua simplicidade é reconfortante.
A razão para a simplicidade não é o desprezo pela singularidade, como algumas facções interpretam. Tudo – nossas casas, roupas, corte de cabelo – tem como objetivo nos ajudar a esquecer nós mesmos e nos proteger da vaidade, ganância e inveja, que são apenas formas de egoísmo. Se temos pouco, queremos pouco e somos todos iguais, então não invejamos ninguém.
Eu tento amar isso.
Sento no primeiro degrau e espero pela chegada de Caleb. Ele não demora. Depois de um minuto vejo o formato de seu robe cinza caminhando pela rua. Ouço risos. Na escola, tentamos não chamar atenção para nós mesmos, mas uma vez que estamos em casa, os jogos e piadas começam. Minha tendência natural para o sarcasmo ainda não é apreciada. Sarcasmo sempre depende de alguém, sempre é à custa de outra pessoa. Talvez seja melhor que a Abnegação queira que eu o reprima. Talvez eu não tenha que deixar minha família. Talvez se eu lutar para me encaixar na Abnegação, minha atuação irá se tornar real.
— Beatrice! — Caleb diz. — O que aconteceu? Você está bem?
— Estou bem.
Ele está com Susan e seu irmão, Robert, e Susan está me dando um olhar estranho, como se eu fosse uma pessoa diferente daquela que ela conhecia esta manhã. Dou de ombros.
— Quando o teste acabou, passei mal. Deve ter sido aquele líquido que eles deram para nós. Sinto-me melhor agora.
Tento sorrir de maneira convincente. Parece que minha desculpa convenceu Susan e Robert, eles não me olham mais como se estivessem preocupados com minha estabilidade mental, mas Caleb cerra seus olhos para mim, do jeito que ele faz quando suspeita da sinceridade de alguém.
— Vocês dois pegaram o ônibus hoje? — perguntei.
Não ligo para como Susan e Robert chegaram da escola, mas preciso mudar de assunto.
— Nosso pai precisou trabalhar até tarde — Susan diz — e nos disse que deveríamos passar algum tempo pensando antes da cerimônia de amanhã.
Meu coração pula à menção da cerimônia.
— Você é bem-vinda para voltar mais tarde, se quiser — Caleb diz educadamente.
— Obrigada — Susan sorri para ele.
Robert levanta uma sobrancelha em minha direção. Eu e ele temos trocado olhares conspiratórios pelos últimos anos enquanto Susan e Caleb flertam de uma forma conhecida apenas pela Abnegação.
O olhar de Caleb acompanha Susan. Tenho que agarrar seu braço para trazê-lo de volta a realidade. Lidero-o até nossa casa e fecho a porta atrás de nós.
Ele vira para mim. Franze suas sobrancelhas negras até que um vinco aparece entre elas. Quando ele faz isso, fica mais parecido com nossa mãe do que com nosso pai. Em um segundo sou capaz de vê-lo vivendo a mesma vida que meu pai escolheu: ficar na Abnegação, aprender uma função, casar com Susan e ter uma família. Será maravilhoso.
E eu posso não ver isso.
— Você vai me contar a verdade agora? — ele pergunta delicadamente.
— A verdade é... — eu digo — eu não deveria discutir isso. E você não deveria perguntar.
— Todas essas regras que você ignora, e você não pode ignorar essa? Nem mesmo por algo que é importante?
Suas sobrancelhas juntam-se novamente, e ele morde o canto dos lábios. Pensando que suas palavras foram acusatórias, parecendo que ele está me sondando por informações – como se realmente quisesse minha resposta.
Cerro meus olhos.
— E quanto a você? O que aconteceu no seu teste, Caleb?
Nossos olhares se encontram. Escuto o apito de um trem, tão fraco que poderia ser o vento assobiando em um beco. Mas reconheço quando escuto. É o som da Audácia, chamando-me para eles.
— Apenas... não diga aos nossos pais o que aconteceu, certo? — digo.
Quero subir para meu quarto e me deitar. O teste, a caminhada, meu encontro com aquele homem sem facção, tudo isso me deixou exausta. Mas meu irmão fez nosso café da manhã, minha mãe preparou nossos lanches e meu pai fez o jantar na noite passada, então é minha vez de cozinhar. Respiro fundo e caminho em direção à cozinha para começar meu trabalho.
Um minuto depois, Caleb se junta a mim. Cerro meus dentes. Ele me ajuda com tudo. O que mais me irrita nele é sua bondade natural, seu altruísmo inato.
Caleb e eu trabalhamos juntos sem conversar. Preparo ervilhas no fogão e ele descongela quatro pedaços de frango. Grande parte do que comemos é congelado ou enlatado, porque as fazendas hoje em dia são muito distantes. Minha mãe me contou uma vez que, há muito tempo, existiam pessoas que não comprariam produtos geneticamente modificados porque viam como algo não natural. Agora nós não temos outra opção.
Quando meu pais chegam em casa, o jantar está pronto e a mesa posta. Meu pai coloca sua pasta próxima à porta e beija minha cabeça. Outras pessoas o veriam como um homem teimoso – teimoso até demais, talvez – mas ele também é amável. Tento ver apenas o bom dele. Eu tento.
— Como foi o teste? — ele me pergunta.
Despejo as ervilha numa travessa.
— Bem — digo.
Eu nunca poderia ser da Franqueza. Minto muito facilmente.
— Ouvi que ocorreu algum tipo de aborrecimento com um dos testes — minha mãe diz.
Assim como meu pai, ela trabalha para o governo, mas ela gerencia os projetos de melhorias da cidade. Ela recruta voluntários para os testes de aptidão. Na maioria das vezes, entretanto, ela organiza trabalhadores para ajudar aqueles sem facção com comida e oportunidades de emprego.
— Sério? — meu pai pergunta. — Um problema com os testes de aptidão é raro.
— Não sei muito a respeito disso, mas uma amiga minha, Erin, me disse que algo deu errado com um dos testes, por isso os resultados precisaram ser reportados verbalmente — minha mãe coloca um guardanapo próximo a cada um dos pratos. — Aparentemente, um dos estudantes ficou doente e foi mandado para casa mais cedo — ela dá de ombros — espero que esteja tudo bem. Vocês dois ouviram alguma coisa a respeito?
— Não — Caleb responde e sorri para minha mãe.
Meu irmão também não poderia ser da Franqueza.
Sentamo-nos à mesa. Sempre passamos a comida para a direita, e ninguém come até que todos estejam servidos. Meu pai estende a mão para minha mãe e para meu irmão, e eles estendem suas mãos para mim. Meu pai agradece a Deus pela comida, pelo trabalho, amigos e família. Nem todas as famílias da Abnegação são religiosas, mas meu pai diz que nós deveríamos tentar não ver essas diferenças porque iria apenas nos dividir. Não tenho certeza do que dizer sobre isso.
— Então... — minha mãe diz para o meu pai — conte-me.
Ela segura sua mão e move o polegar em movimentos circulares sobre seu pulso. Encaro suas mãos unidas. Meus pais se amam, mas raramente mostram afeição como esta em nossa frente. Eles dizem que contato físico é poderoso, então eu tenho estado ciente disso desde que era jovem.
— Diga-me o que está aborrecendo você — ela acrescenta.
Encaro meu prato. O sexto sentido da minha mãe é tão acurado que me surpreende, mas agora eles me repreendem. Por que eu estava tão focada em mim que não percebi seu rosto triste e sua postura caída?
— Tive um dia difícil no trabalho hoje — ele diz. — Bom, na verdade, foi Marcus quem teve um dia difícil. Eu não deveria me aborrecer por isso.
Marcus é o colega de trabalho do meu pai. Ambos são líderes políticos. A cidade é liderada por um conselho de 50 pessoas, composto inteiramente por representantes da Abnegação, porque nossa facção é considerada incorruptível devido ao nosso compromisso com o altruísmo. Nossos líderes são escolhidos por seus colegas devido ao seu caráter impecável, fortaleza moral e habilidades de liderança. Representantes das outras facções podem falar nas reuniões a respeito de determinados assuntos, mas as decisões finais são do conselho. E enquanto o conselho, tecnicamente, toma decisões em conjunto, Marcus é particularmente influente.
Tem sido dessa forma desde o começo da grande paz, quando as facções foram formadas. Eu penso que o sistema permanece porque temos medo do que poderia acontecer se fosse ao contrário: guerra.
— Isso é sobre o relatório de Jeanine Matthews? — minha mãe pergunta.
Jeanine Matthews é a única representante da Erudição, selecionada com base no seu QI. Meu pai reclama sobre ela constantemente.
Olho para cima.
— Um relatório?
Caleb me dá um olhar de aviso. Não deveríamos falar durante o jantar a menos que nossos pais nos façam perguntas diretas, o que eles normalmente não fazem. Nossa capacidade de ouvir é um presente para eles, meu pai diz. Eles nos permitem ser ouvidos após o jantar, na sala da família.
— Sim — meu pai diz. Seus olhos cerram-se. — Aqueles arrogantes, convencidos... — ele para e limpa a garganta. — Desculpem-me. Mas ela liberou um relatório atacando o caráter do Marcus.
Levando minhas sobrancelhas.
— O que dizia? — pergunto.
— Beatrice — Caleb sussurra.
Abaixo minha cabeça, girando o garfo de novo e de novo até que o rubor deixe minhas bochechas. Não gosto de ter a atenção chamada. Especialmente por meu irmão.
— Dizia... — meu pai começa — que a violência e crueldade de Marcus foram os motivos que levaram seu filho a escolher a Audácia ao invés da Abnegação.
Poucas pessoas que nasceram na Abnegação escolhem deixá-la. Quando eles fazem, nós lembramos. Dois anos atrás, o filho de Marcus, Tobias, nos deixou para juntar-se à Audácia e Marcus ficou devastado. Tobias era seu único filho – e sua única família desde que sua esposa morreu dando à luz ao segundo filho do casal. O recém-nascido morreu minutos depois.
Nunca conheci Tobias. Ele raramente comparecia aos eventos da comunidade ou ia com seu pai a nossa casa para o jantar. Meu pai constantemente apontava o quão estranho isso era, mas agora isso não importa mais.
— Cruel? Marcus? — minha mãe balança a cabeça em negativa. — Aquele pobre homem. Como se ele precisasse ser lembrado de sua perda.
— Da traição do seu filho, você quer dizer? — meu pai diz friamente. — A esta altura não deveria me surpreender. A Erudição tem nos atacado com relatórios desse tipo por meses. E esse não é o fim. Mais virão, posso garantir.
Eu não deveria falar novamente, mas não posso evitar e deixo escapar.
— Por que eles estão fazendo isso?
— Por que você não aproveita essa oportunidade para ouvir seu pai, Beatrice? — minha mãe diz gentilmente.
Ela diz isso como uma sugestão, não como um comando. Olho através da mesa para Caleb, ele está com aquele olhar de desaprovação.
Encaro minhas ervilhas. Não tenho certeza se posso viver essa vida de imposições por muito mais tempo. Não sou boa o bastante.
— Você sabe o porquê — meu pai responde. — Porque nós temos algo que eles querem. Valorizar o conhecimento acima de tudo mais resulta em um desejo desregrado por poder, e isso leva homens para lugares sombrios e vazios. Nós deveríamos ser gratos por saber o que é melhor.
Concordo, balançando minha cabeça. Sei que não vou escolher a Erudição, mesmo que os resultados do meu teste sugiram que eu poderia. Eu sou filha do meu pai.
Meus pais limpam a mesa depois do jantar. Nem ao menos deixam Caleb ajudá-los, porque deveríamos ter um tempo só para nós hoje ao invés de ficarmos juntos na sala da família, assim poderemos pensar sobre nossos resultados.
Minha família poderia me ajudar a escolher, se eu pudesse falar sobre meus resultados. Mas eu não posso. O aviso de Tori sussurra em minha memória toda vez que minha força de vontade em manter a boca fechada vacila.
Caleb e eu subimos as escadas juntos e, no topo, quando nos separamos em direção aos nossos quartos, ele me detém com a mão em meu ombro.
— Beatrice — ele diz, olhando profundamente em meus olhos. — Devemos pensar em nossa família... — existe uma aresta em sua voz — mas... mas devemos pensar em nós mesmos também.
Por um momento, eu o encaro. Nunca o vi pensando em si próprio, nunca o ouvi insistir em nada além do altruísmo. Fico tão perplexa com seu comentário que apenas digo o que deveria dizer.
— Os testes não devem mudar nossas escolhas.
Ele sorri um pouco.
— Não devem, não é?
Ele aperta meu ombro e entra em seu quarto. Espio para dentro de seu quarto e vejo uma cama desfeita e uma pilha de livros em sua mesa. Ele fecha a porta. Gostaria de poder contar-lhe que estamos passando pela mesma situação. Desejo poder falar com ele como eu quero ao invés de como eu devo. Mas a ideia de admitir que preciso de ajuda é demais para lidar, assim, vou embora.

Entro em meu quarto e quando fecho a porta atrás de mim, percebo que a decisão deve ser simples. Será preciso um imenso ato de altruísmo para escolher a Abnegação, ou um grande ato de coragem para escolher a Audácia, e talvez apenas escolher um ao invés do outro prove a qual facção eu pertenço. Amanhã, essas duas qualidades irão lutar dentro de mim, e apenas uma poderá vencer.

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