O ônibus que nós pegamos para a Cerimônia de Escolha está cheio de pessoas em túnicas e calças cinza. Um leve toque da luz do sol queima dentro das nuvens como o extremo de um cigarro aceso. Eu nunca fumarei um – eles estão ligados à vaidade – mas há um grupo de integrantes da Franqueza fumando em frente ao edifício quando saímos do ônibus.
Tenho que levantar minha cabeça para ver o topo do Eixo e mesmo assim parte dele desaparece dentro das nuvens. Esse é o edifício mais alto da cidade. Posso ver as luzes das pontas do prédio da janela do meu quarto.
Sigo meus pais saindo do ônibus. Caleb parece calmo, mas eu também estaria, se soubesse o que iria fazer. Em vez disso, tenho a clara impressão de que meu coração vai sair do meu peito a qualquer minuto, e pego o braço dele para me equilibrar enquanto subo as escadas.
O elevador está cheio de gente, então meu pai se voluntaria para ceder nosso lugar a um grupo da Amizade. Nós subimos as escadas no lugar disso, seguindo-o sem questionar. Estabelecemos um exemplo para os seguidores da nossa facção e logo nós três nos vimos envoltos na massa de tecido cinza subindo os degraus de cimento na penumbra. Acomodo-me ao ritmo deles. O ritmo uniforme dos passos em meus ouvidos e a homogeneidade das pessoas ao meu redor me faz acreditar que posso escolher isso. Posso ser subordinada dentro da mentalidade coletiva da Abnegação, sempre projetando para o exterior.
Mas então minhas pernas ficam doloridas e eu luto para respirar, e sou novamente distraída por mim mesma. Nós temos que subir vinte lances de escadas para chegar à Cerimônia de Escolha.
Meu pai mantém a porta do vigésimo andar aberta e permanece como uma sentinela enquanto todos os integrantes da Abnegação passam. Eu esperaria por ele, mas a multidão me pressiona para frente, para fora da escadaria e para dentro do lugar onde eu decidirei o resto da minha vida.
O lugar era organizado em círculos concêntricos. Nas margens estavam os membros mais velhos de cada facção. Nós ainda não somos chamados de membros; nossas decisões de hoje nos farão iniciados, e seremos membros se completarmos a iniciação.
Nos ordenamos por ordem alfabética, de acordo com o último nome, o qual poderemos deixar para trás hoje. Eu fico entre Caleb e Danielle Pohler, uma garota da Amizade, com as bochechas rosadas e um vestido amarelo.
Filas de cadeiras compõem o próximo círculo. Elas estão organizadas em cinco seções, de acordo com as facções. Nem todos os integrantes das facções vêm para a Cerimônia de Escolha, mas vem o suficiente deles para que a multidão pareça enorme.
A responsabilidade de conduzir a cerimônia muda a cada ano, e nesse ano a responsabilidade é da Abnegação. Marcus fará o discurso de abertura e lerá os nomes em ordem inversa ao alfabeto. Caleb escolherá antes de mim.
No último círculo estão cinco potes tão largos que caberia meu corpo inteiro, se eu me enrolar. Cada um contém uma substância que representa cada facção: pedra cinza para Abnegação, água para Erudição, terra para Amizade, carvão em chamas para Audácia e vidro para Franqueza.
Quando Marcus chamar meu nome, vou caminhar para o centro dos três círculos. Eu não vou falar. Ele vai me oferecer uma faca. Eu vou cortar minha mão e salpicar o sangue dentro da bacia correspondente à facção que eu escolher.
Meu sangue nas pedras. Meu sangue ardendo na brasa.
Antes de meus pais sentarem, eles ficam na frente de Caleb e eu. Meu pai beija minha testa e cumprimenta Caleb no ombro, sorrindo.
— Vejo vocês logo — ele fala. Sem nenhum traço de dúvida.
Minha mãe me abraça e a pouca determinação que eu tinha quase se quebra. Aperto minha mandíbula e encaro o teto, onde lanternas em forma de globo preenchem o lugar com luz azul. Ela me abraça pelo o que parece um longo tempo, mesmo depois que eu deixo minhas mãos caírem. Antes de ela me largar, ela vira a cabeça e sussurra no meu ouvido:
— Eu amo você. Não importa o que aconteça.
Eu encaro as costas dela enquanto vai se afastando. Ela sabe o que eu posso fazer. Ela tem que saber, ou não falaria isso.
Caleb pega minha mão, apertando minha palma tão forte que dói, mas eu não me afasto. A última vez que demos as mãos foi no funeral do meu tio, enquanto meu pai chorou. Nós precisávamos da força um do outro, assim como nesse dia.
O espaço aos poucos ganha ordem. Eu deveria estar observando a Audácia. Deveria estar absorvendo tanta informação quanto posso, mas só consigo encarar as luzes do lugar. Tento me perder no brilho azul.
Marcus fica em pé no pódio entre a Erudição e a Audácia e aclara a garganta no microfone.
— Bem-vindos. Bem-vindos à Cerimônia de Escolha. Bem-vindos ao dia em que nós honramos a filosofia democrática dos nossos ancestrais, que nos fala que todo homem tem o direito de escolher seu próprio caminho no mundo.
Ou, ocorreu a mim, a um dos cinco caminhos pré-determinados. Apertei os dedos de Caleb tão forte quanto ele estava apertando os meus.
— Nossos dependentes estão agora com dezesseis anos. Eles estão no precipício da vida adulta e agora são capazes de decidirem que tipo de pessoas eles serão — a voz de Marcus é solene e dá peso igual a cada palavra. — Décadas atrás, nossos ancestrais compreenderam que não é uma ideologia política, crença religiosa, raça ou nacionalismo que culpa um mundo beligerante. Na verdade, eles determinaram que era culpa da personalidade humana – da inclinação da humanidade para o mal, seja qual forma for. Eles se dividiram em facções que pretendiam erradicar essas qualidades que acreditavam ser responsáveis pela desorganização do mundo.
Meus olhos foram na direção dos potes no centro da sala. Em que eu acreditava? Eu não sei, eu não sei, eu não sei.
— Aqueles que culparam a agressão formaram a Amizade.
Os da Amizade trocaram sorrisos. Eles estavam vestidos confortavelmente, em vermelho ou amarelo. Cada vez que eu os vejo, eles parecem, amáveis, carinhosos, livres. Mas se juntar a eles nunca foi uma opção para mim.
— Aqueles que culparam a ignorância se tornaram Erudição.
Descartar Erudição foi a única parte fácil da minha escolha.
— Aqueles que culparam a hipocrisia criaram a Franqueza.
Eu nunca gostei dos integrantes da Franqueza.
— Aqueles que culparam o egoísmo fizeram a Abnegação.
Eu culpo o egoísmo, eu culpo.
— E aqueles que culparam a covardia foram a Audácia.
Mas eu não sou altruísta o suficiente. Dezesseis anos de tentativa e eu não sou o suficiente.
Minhas pernas entorpecem, como se toda a vida saísse delas e eu imagino como vou caminhar quando o meu nome for chamado.
— Trabalhando juntas, essas cinco facções têm vivido em paz por muitos anos, cada uma contribuindo para um diferente setor da sociedade. Abnegação tem satisfeito nossa necessidade por líderes altruístas; Franqueza tem nos proporcionado dirigentes da lei fiéis e sensatos. Erudição nos tem fornecido professores e investigadores inteligentes; Amizade nos tem dado conselheiros e zeladores em entendimento; e Audácia tem nos fornecido proteção contra ameaças internas e externas. Mas o alcance de cada facção não se limita a essas áreas. Nós damos uma à outra mais do que possa ser adequadamente contabilizado. Em nossas facções, nós encontramos significados, encontramos propósitos, encontramos vida.
Penso no tema que li no meu livro de história das facções: Facção antes do sangue. Mais do que família, nossa facção é onde pertencemos. Isso pode possivelmente ser certo?
Marcus adiciona:
— Afastados delas, não sobreviveríamos.
O silêncio que segue suas palavras é mais forte do que os outros silêncios. É mais pesado do que nossos piores medos, maior inclusive do que o nosso medo da morte: ser sem facção.
Marcus continua.
— Portanto, esse dia marca uma ocasião feliz – o dia no qual nós recebemos nossos novos iniciados, que vão trabalhar conosco em busca de uma sociedade melhor e um mundo melhor.
Uma rodada de aplausos. Isso soou abafado. Eu tento permanecer completamente quieta, porque se meus joelhos estiverem duros e meu corpo rígido, eu não tremo. Marcus lê os primeiros nomes, mas não consigo entender uma só silaba. Como vou saber quando ele chamar meu nome?
Um por um, cada garoto ou garota de dezesseis anos de idade dá um passo fora da linha e caminha para o centro da sala. A primeira garota chamada decide por Amizade, a mesma facção da qual ela veio. Eu assisto o sangue dela cair sobre a terra e ela fica atrás das cadeiras, sozinha.
A sala está em constante movimento, um novo nome e uma nova pessoa escolhendo, uma nova faca e uma nova escolha. Reconheço a maioria deles, mas duvido que eles me conheçam.
— James Tucker — Marcus diz.
James Tucker da Audácia é a primeira pessoa que tropeça no caminho para os potes. Levanta os braços e recupera o equilíbrio antes de cair no chão. Seu rosto está vermelho e ele caminha mais rápido para o centro da sala. Quando chega lá, olha do pote da Audácia para o pote da Franqueza, a chama laranja que aumenta mais e mais a cada momento e o vidro refletindo a luz azul.
Marcus oferece a faca para ele. Ele respira profundamente – eu vejo seu peito subir – e, enquanto ele exala, aceita a faca. Então, arrasta a faca através da palma da mão como um idiota e coloca o braço para o lado. O sangue dele cai sobre o vidro e ele é o primeiro de nós a trocar de facção. A primeira transferência de facção. Um murmúrio se eleva no setor da Audácia e eu olho para o chão.
Eles o verão como um traidor de agora em diante. Sua família da Audácia terá a opção de visitá-lo em sua nova facção. Falta uma semana e meia para o dia de visita, mas eles não vão, porque ele os deixou. Sua ausência perseguirá os corredores e ele será um espaço que eles não poderão preencher. E então o tempo vai passar e o espaço vai ter sumido como quando um órgão é retirado e os fluidos do corpo preenchem o espaço que ele deixou. Humanos não conseguem tolerar o vazio por muito tempo.
— Caleb Prior — fala Marcus.
Caleb aperta minha mão uma última vez e quando ele se afasta, lança um longo olhar sobre o ombro para mim. Eu vejo seus pés moverem em direção ao centro da sala e as mãos dele quando ele aceita a faca de Marcus são hábeis enquanto ele pressiona a faca na outra mão. Então ele fica em pé com sangue escorrendo pela palma e seus lábios se juntam.
Ele expira. E respira. E então ele sustenta a mão no pote da Erudição e seu sangue cai na água, tornando-a de um tom profundamente vermelho.
Eu escuto murmúrios que se estendem em gritos indignados. Mal posso pensar direito. Meu irmão, meu altruísta irmão, mudou de facção? Meu irmão, nascido para a Abnegação, Erudição?
Quando fecho os olhos, vejo a pilha de livros na escrivaninha de Caleb e suas mãos trêmulas deslizando sobre suas pernas depois do teste de aptidão. Porque não me dei conta disso ontem, quando ele disse que eu pensasse em mim, ele estava dando o conselho a si mesmo?
Eu examino a multidão da Erudição – eles têm sorrisos petulantes e empurram uns aos outros. A Abnegação, normalmente tão plácida, fala entre si em sussurros tensos e olham para o outro lado da sala, para a facção que se tornou nossa inimiga.
— Com licença — Marcus fala, mas a multidão não o ouviu. Ele grita: — Silêncio, por favor!
A sala fica em silêncio. Exceto por uma campainha.
Eu ouço meu nome e um estremecimento me empurra para frente. No meio do caminho para o centro da sala, estou certa de que vou escolher Abnegação. Posso ver isso agora. Eu me imagino crescendo como uma mulher em uma túnica da Abnegação, casando com o irmão de Susan, Robert, sendo voluntária aos finais de semana, a paz da rotina, as horas quietas passadas em frente da lareira, a certeza de que estarei segura e se não boa o suficiente, melhor do que sou agora.
A campainha, eu percebi, estava nos meus ouvidos.
Eu olho para Caleb, que está de pé atrás dos integrantes da Erudição. Ele me encara de volta e acena discretamente, como se soubesse o que eu estava pensando e concordasse. Meus passos falham. Se Caleb não se encaixava na Abnegação, como eu poderia? Mas que escolha eu tenho, agora que ele nos deixou e eu sou a única que resta? Ele não me deixou opção.
Eu enrijeço minha mandíbula. Eu serei a filha que fica; tenho que fazer isso pelos meus pais. Eu tenho.
Marcus me oferece a faca. Eu olho dentro dos olhos dele – eles são de um azul escuro, uma cor estranha – e pego a lâmina. Ele assente e eu me dirijo para os potes.
O fogo da Audácia e a pedra da Abnegação estão ambos a minha esquerda, um em frente ao meu ombro e outro atrás. Eu seguro a faca na minha mão direita e toco a lâmina na minha palma. Apertando meus dentes, arrasto a lâmina para baixo. Dói, mas dificilmente percebo. Tenho minhas duas mãos sobre o peito e minha próxima respiração sai estremecida.
Abro meus olhos e estiro meu braço. Meu sangue cai no carpete entre os dois potes. Então, com um arquejo que não consigo conter, movo minha mão e meu sangue arde nas brasas.
Eu sou egoísta. Eu sou corajosa.
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