domingo, 16 de março de 2014

Capítulo 6

Fixo meus olhos do chão e posiciono-me atrás daqueles iniciados que nasceram na Audácia e escolheram voltar para sua facção. São todos mais altos do que eu, assim, mesmo quando levanto minha cabeça, consigo ver apenas ombros envoltos em casacos pretos. Quando a última garota faz sua escolha – Amizade – é hora de partir.
Audácia parte primeiro. Passo por todos os homens e mulheres vestidos de cinza que costumavam ser da minha facção, olhando de forma determinada para as costas da pessoa a minha frente.
Mas eu tenho que ver meus pais uma última vez. Olho sobre meu ombro no último segundo antes de passar por eles e, imediatamente, desejo não ter feito isso. O olhar acusatório do meu pai queima dentro do meu. Primeiro, ao sentir o calor atrás dos meus olhos, penso que ele descobriu uma maneira de atear fogo em mim, de me punir pelo que fiz. A verdade é que estou quase chorando.
Ao lado dele, minha mãe está sorrindo.
As pessoas atrás de mim me empurram para frente, para longe da minha família, que serão os últimos a partir. Eles devem até mesmo ficar para recolher as cadeiras e limpar as travessas. Giro minha cabeça ao redor para encontrar Caleb na plateia da Erudição atrás de mim. Ele está entre os outros iniciados, apertando as mãos de outro transferido, um garoto que era da Franqueza. O sorriso simples que ele expõe é um ato de traição. Meu estômago se contorce e eu viro o rosto. Se isso é assim tão fácil para ele, talvez devesse ser para mim também.
Olho de relance para o garoto a minha esquerda, que era da Erudição e parece tão pálido e nervoso como eu devo estar. Passei todo o tempo me preocupando com qual facção eu escolheria e nunca considerei o que iria acontecer se optasse pela Audácia. O que espera por mim em seu Quartel General?
A plateia da Audácia nos guiando vai em direção às escadas ao invés do elevador. Eu pensei que apenas a Abnegação usava as escadas.
Então todos começam a correr. Escuto gritos e risadas ao meu redor e dezenas de pés trovejantes movendo-se em diferentes ritmos. Não é um ato de altruísmo para a Audácia usar as escadas. É um ato selvagem.
— O que diabos está acontecendo?! — o garoto próximo a mim grita.
Eu apenas balanço a cabeça e continuo correndo. Quando chegamos ao primeiro andar, estou sem fôlego e todos da Audácia irrompem para a saída. Do lado de fora, o ar é puro e fresco, e o céu é laranja do pôr-do-sol. Ele reflete no vidro negro do Eixo.
A multidão da Audácia expande-se à medida que atravessa a rua, bloqueando o caminho de um ônibus e eu preciso correr para alcançar o fim da multidão. À medida que corro, minha confusão se dissipa. Não tenho corrido para lugar algum em muito tempo. Abnegação desencoraja qualquer coisa feita apenas para minha própria satisfação, e é isso que correr significa: minhas pernas queimando, meus músculos doendo, o prazer selvagem de uma genuína corrida. Eu sigo a Audácia rua abaixo e contornando a esquina, quando ouço um som familiar: o apito do trem.
— Ah não — murmura o garoto da Erudição. — Será que devemos saltar nessa coisa?
— Sim — eu digo, sem fôlego.
É bom que eu tenha passado tanto tempo observando os membros da Audácia chegando à escola. O grupo se dissipa em uma longa linha. O trem desliza em nossa direção sob os trilhos de aço, suas luzes piscando, seu apito soando. A porta de cada um dos vagões se abre, esperando que os membros da Audácia pulem para dentro, e eles pulam. Grupo por grupo, até que somente os últimos iniciados ficam para trás. Os iniciados que nasceram na facção, a esta altura, já estão acostumados a fazerem isso. Assim, em um segundo sobram apenas os transferidos.
Dou um passo à frente com algum dos outros e começo a correr. Corremos junto aos vagões por alguns instantes e então nos lançamos de lado. Não sou tão alta ou forte quanto alguns deles, portanto não consigo me impulsionar para dentro do vagão. Agarro-me a uma alça próxima a porta, meu ombro batendo contra o vagão. Meus braços tremem, e finalmente uma garota da Franqueza me segura e me puxa para dentro. Tossindo, agradeço-a.
Escuto um grito e olho sobre meu ombro. O garoto baixo, de cabelos vermelhos da Erudição joga os braços enquanto tenta alcançar o trem. Uma garota da Erudição se inclina para fora tentando segurar a mão do garoto, ela se esforça ao máximo, mas ele já está muito distante. Ele cai sobre seus joelhos perto dos trilhos enquanto nos afastamos, apoiando a cabeça em suas mãos.
Sinto-me desconfortável. Ele falhou na iniciação à Audácia. Agora é um sem facção. Isso pode me acontecer a qualquer momento.
— Você está bem? — a garota da Franqueza que me ajudou pergunta delicadamente.
Ela é alta, com uma pele morena escura e cabelo curto. Bonita.
Eu aceno.
— Eu sou Christina — ela diz, oferecendo-me sua mão.
Há muito tempo não aperto a mão de alguém. Membros da Abnegação cumprimentam uns aos outros abaixando suas cabeças, em sinal de respeito. Eu seguro a mão da garota, incerta, e balanço duas vezes, esperando que não tenha apertado muito forte ou muito fraco.
— Beatrice — eu digo.
— Você sabe para onde estamos indo? — ela precisa gritar através do vento, que sopra fortemente através das portas abertas. O trem ganha velocidade. Eu me sento. Será mais fácil manter meu equilíbrio se estiver mais próxima ao chão. Ela levanta uma sobrancelha para mim.
— Um trem rápido significa vento — eu digo. — Vento significa queda. Abaixe-se.
Christina senta-se próximo a mim, e inclina-se contra a parede.
— Imagino que estamos indo para o Quartel General da Audácia — eu digo. — Mas não sei onde fica.
— E alguém sabe? — ela balança a cabeça, sorrindo. — É como se eles simplesmente surgissem de um buraco no chão, ou algo do tipo.
E então o vento passa pelo interior do vagão, e os outros transferidos são atingidos pela rajada de ar, caindo uns por cima dos outros. Vejo Christina rir, sem escutá-la, e controlo uma risada.
Sobre meu ombro, a luz laranja do pôr-do-sol reflete nos prédios de vidro, e eu consigo ver, fracamente, as filas de casas cinzentas que costumavam ser meu lar.
Seria a vez de Caleb fazer o jantar hoje à noite. Esse pensamento faz meu estômago doer, porque, afinal de contas, eu os abandonei também. Pelo menos eu não era boa em fingir. Pelo menos todos eles sabiam que eu não era altruísta.
Fecho meus olhos e imagino meus pais sentados à mesa em silêncio. É um lampejo remanescente de altruísmo que faz minha garganta se fechar ao pensar neles, ou é egoísmo porque sei que nunca seria sua filha novamente?
— Eles estão saltando para fora do trem!
Levanto minha cabeça. Meu pescoço dói. Estive curvada contra a parede por pelo menos meia hora, escutando as rajadas de vento e vendo a cidade passar por mim. Inclino-me para frente. O trem diminuiu sua velocidade nos últimos minutos, e eu vejo que o garoto que gritou estava certo: os membros da Audácia que estavam nos vagões à frente do nosso estão pulando para fora enquanto o trem passa pelos telhados. Os trilhos estão sete andares acima deles.
A ideia de pular para fora de um trem em movimento para um telhado, sabendo que existe um abismo entre a borda do telhado e o limite dos trilhos, faz com que eu queira vomitar. Forço-me a levantar e tropeço para o lado oposto do vagão onde os outros transferidos formam uma fila.
— Temos que saltar também — uma garota da Franqueza diz.
Ela tem um nariz grande e dentes partidos.
— Ótimo — um garoto da Franqueza replica. — Porque isso faz perfeito sentido, Molly. Saltar de um trem em um telhado.
— Esse é o tipo de coisa pela qual nos inscrevemos, Peter — a garota aponta.
— Bem, eu não vou fazer isso — diz um garoto da Amizade atrás de mim.
Ele tem a pele cor de oliva e usa uma camisa marrom. Ele é o único transferido da Amizade. Suas bochechas brilham com lágrimas.
— Você tem que fazer — Christina diz. — Ou será reprovado. Vamos, vai ficar tudo bem.
— Não, não tenho! Prefiro ser um sem facção a morrer! — o garoto da Amizade balança a cabeça em negativa.
Ele parece estar em pânico. Ele continua sacudindo a cabeça e encarando o telhado, que está ficando cada vez mais próximo.
Não concordo com ele. Prefiro morrer a me tornar vazia, como os sem facção.
— Você não pode forçá-lo a pular — eu digo, olhando para Christina.
Seus olhos castanhos estão arregalados e ela pressiona seus lábios tão forte que eles mudam de cor. Ela me oferece sua mão.
— Aqui — ela diz. Levanto minha sobrancelha em direção a sua mão, prestes a dizer que eu não preciso de ajuda, mas ela adiciona: — Eu só... não posso fazer isso a menos que alguém me puxe.
Eu seguro a mão dela e nos posicionamos na beirada do vagão. Enquanto ele passa pelo telhado, eu conto:
— Um.. Dois... Três!
Um momento sem peso, em que eu me sinto suspensa no ar, e então meus pés atingem o chão firme e uma dor como espinhos atravessa meus calcanhares. A aterrissagem brusca me derruba sobre o telhado. Há cascalho sob a minha bochecha. Solto a mão de Christina. Ela está rindo.
— Isso foi divertido — ela diz.
Christina vai se encaixar junto aos caçadores de emoção da Audácia. Tiro pedaços de cascalho da minha bochecha. Todos os iniciados, exceto o garoto da Amizade, conseguiram pular no telhado, com variáveis níveis de sucesso. A garota da Franqueza com dentes partidos, Molly, segura seu tornozelo, choramingando, e o garoto de cabelos brilhantes, Peter, sorri orgulhosamente – ele deve ter pousado de pé.
E então escuto um lamurio. Viro a cabeça em busca da fonte do som. Uma garota da Audácia está parada na beira do telhado, olhando para o chão abaixo, gritando. Atrás dela um garoto, também da Audácia, a segura pela cintura, impedindo-a de cair.
— Rita — ele diz. — Rita, se acalme. Rita...
Aproximo-me e olho para baixo. Tem um corpo no chão abaixo de nós. Uma garota, seus braços e pernas dobrados em ângulos esquisitos, seus cabelos espalhados em um leque ao redor de sua cabeça. Meu estômago se contorce e eu encaro os trilhos do trem. Nem todos conseguem. E nem mesmo aqueles que já nasceram na Audácia estão a salvo.
Rita afunda sobre seus joelhos, soluçando. Afasto-me. Quanto mais tempo passar encarando-a, mais provável que eu comece a chorar também, e não posso chorar na frente dessas pessoas.
Digo a mim mesma, o mais calmamente possível, É assim que as coisas funcionam por aqui. Fazemos coisas perigosas e pessoas morrem. Pessoas morrem e seguimos em frente para a próxima coisa perigosa. Quanto antes aprender essa lição, maiores serão minha chances de sobreviver à iniciação.
Não tenho mais certeza de que irei sobreviver à iniciação.
Digo a mim mesma que irei contar até três e pronto, seguirei em frente. Um. Imagino o corpo da garota no chão e um arrepio percorre meu corpo. Dois. Escuto o soluço de Rita e as palavras de conforto murmuradas pelo garoto atrás dela. Três.
Com os lábios franzidos, caminho para longe de Rita e da beira do telhado.
Meu cotovelo dói. Puxo a manga da minha camisa para cima a fim de examiná-lo, minha mão está tremendo. A pele está arranhada, mas não está sangrando.
— Ooooh! Escandaloso! Uma Careta mostrando um pouco de pele!
Levanto minha cabeça. “Careta” é uma gíria para Abnegação, e eu sou a única vinda dela. Peter aponta para mim, zombando. Escuto risadas. Minhas bochechas esquentam, e eu deixo minha manga cair.
— Escutem! Meu nome é Max! Eu sou um dos líderes da sua nova facção! — grita um homem do outro lado do telhado. Ele é mais velho do que os outros, com marcas profundas em sua pele escura e cabelos grisalhos. Ele permanece parado na beirada do telhado como se fosse uma calçada. Como se alguém não pudesse cair para morte dali. — Vários andares abaixo de nós, está a entrada para nosso complexo. Se vocês não conseguem reunir coragem para saltar, você não pertence a aqui. Nossos iniciados têm o privilégio de ir primeiro.
— Você quer que nós pulemos de um telhado? — pergunta uma garota da Erudição.
Ela é alguns centímetros mais alta do que eu, com um cabelo castanho discreto e grandes lábios. Boquiaberta.
Não sei por que isso a deixa chocada.
— Sim — Max responde.
Ele parece estar se divertindo.
— Tem água no final ou algo do tipo?
— Quem sabe? — ele levanta as sobrancelhas.
A multidão em frente aos iniciados se divide ao meio, abrindo um caminho para nós.
Olho ao redor. Ninguém parece ansioso em saltar do edifício – seus olhos estão em qualquer lugar, menos em Max. Alguns deles cuidam de pequenos ferimentos ou espanam cascalho de suas roupas. Olho de relance para Peter. Ele está mexendo em uma de suas cutículas. Tentando parecer casual.
Eu sou orgulhosa. Isso vai me meter em encrenca algum dia, mas hoje me faz ter coragem. Ando através da saliência e escuto risadinhas atrás de mim.
Max dá um passo para o lado, deixando meu caminho livre. Aproximo-me da beirada e olho para baixo. O vento chicoteia através das minhas roupas, fazendo o tecido estalar. O prédio em que estou forma um dos lados de um quadrado formado por outros três prédios. No centro do quadrado tem um grande buraco no concreto. Não consigo ver o que tem no fundo dele.
É uma técnica para assustar. Irei pousar seguramente no fundo. Essa certeza é a única coisa que me ajuda a pisar na borda. Meus dentes tremem. Não posso recuar agora. Não com todas aquelas pessoas atrás de mim apostando no meu fracasso. Minhas mãos tateiam ao longo da gola da minha camisa em busca do botão que a mantém fechada. Depois de algumas tentativas, consigo soltar o fecho e tiro-a por sobre meus ombros.
Abaixo dela, uso uma camiseta cinza. É mais apertada do que as outras roupas que eu tenho e ninguém nunca tinha me visto usando-a antes. Enrolo a camisa que usava antes e olho por sobre meu ombro, para Peter. Jogo a bola de tecido para ele o mais forte que consigo, minha mandíbula cerrada. Eu o acerto no peito. Ele me encara. Escuto vaias e gritos atrás de mim.
Olho novamente para o buraco. Arrepios correm meus braços pálidos e meu estômago da um pulo. Se eu não fizer isso agora, não farei nunca. Engulo com força.
Não penso. Apenas dobro meus joelhos e pulo.
O vento sopra em meus ouvidos a medida que o chão surge a minha frente, crescendo e se expandindo ou eu avanço em direção ao chão, meu coração batendo tão forte que machuca, cada músculo em meu corpo tensionado a medida que a sensação da queda aperta o meu estômago. O buraco me cerca e eu caio dentro da escuridão.
Atinjo alguma coisa dura. Está logo abaixo de mim e envolve meu corpo. O impacto tira o ar dos meus pulmões, luto para respirar novamente. Meus braços e pernas ardem.
Uma rede. Tem uma rede no fundo do buraco. Olho para cima do prédio e começo a rir, meio aliviada, meio histérica. Meu corpo treme e eu cubro meu rosto com minhas mãos. Eu acabei de pular de um telhado.
Preciso ficar em terra firme novamente. Vejo algumas mãos se esticando em minha direção pela borda da rede, assim, eu agarro a primeira que alcanço e me impulsiono. Rolo para fora e teria caído de cara no chão de madeira se ele não tivesse me segurado.
“Ele” é um jovem homem ligado à mão que eu agarrei. Seu lábio superior é fino e o inferior cheio. Seus olhos são tão profundos que seus cílios tocam a pele abaixo das sobrancelhas, e eles são de um azul escuro, uma cor lúdica, adormecida e prolongada.
Suas mãos agarram meus braços, mas ele me solta um momento depois que eu fico de pé novamente.
— Obrigada — eu digo.
Estamos parados em uma plataforma a três metros acima do chão. Ao nosso redor, uma caverna se abre.
— Não posso acreditar — uma voz diz atrás do rapaz. Pertence a uma garota de cabelos escuros com três argolas de prata na sua sobrancelha direita. Ela sorri para mim. — Uma Careta, a primeira a pular? Inédito.
— Há uma razão para ela tê-los deixado, Lauren — ele diz. Sua voz é profunda e ressonante. — Qual o seu nome?
— Hum...
Não sei por que estou hesitante. Mas... “Beatrice” apenas não parece mais adequado.
— Pense nisso — ele diz, um sorriso leve sorriso curvando seus lábios. — Você não pode escolher novamente.
Um novo lugar. Um novo nome. Eu posso ser refeita aqui.
— Tris — eu digo confiante.
— Tris — Lauren repete, sorrindo. — Faça o anúncio, Quatro.
O garoto – Quatro – olha por cima do ombro e grita:
— Primeira a pular – TRIS!
Uma plateia se materializa das trevas à medida que meus olhos se ajustam. Eles aplaudem e dão socos no ar, e então outra pessoa cai na rede. Seus gritos a seguem até embaixo. Christina. Todos riem, mas suas risadas são seguidas de mais torcida.
Quatro apoia sua mão nas minhas costas e diz:

— Bem-vinda à Audácia.

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