sábado, 22 de março de 2014

Capítulo 34



Apoio-me pesadamente em Tobias. O cano de uma arma pressionada contra minhas costas me impulsiona para frente, através das portas de entrada do quartel general da Abnegação, um prédio cinza liso, de dois andares. Sangue escorre pelo lado do meu corpo. Não estou com medo do que virá; sinto muita dor para sequer pensar nisso.
O cano da arma me empurra em direção a uma porta guardada por dois soldados da Audácia. Tobias e eu passamos por ela e entramos em um escritório simples que contém apenas uma mesa, um computador e duas cadeiras vazias. Jeanine está sentada atrás da mesa, um telefone no ouvido.
— Bem, então mande alguns deles de volta no trem — ela diz. — Ele precisa ser bem guardado, é a parte mais importante – eu não vou falar – preciso desligar agora.
Ela desliga o telefone e concentra seus olhos cinzentos em mim. Seus olhos me lembram aço derretido.
— Rebeldes Divergentes — um dos soldados diz.
Ele deve ser um dos líderes Audácia ou um recruta que foi tirado da simulação.
— Sim, eu consigo ver isso.
Ela tira os óculos e os coloca em cima da mesa. Ela provavelmente os usa mais por vaidade do que por necessidade, porque deve achar que eles a fazem parecer mais inteligente – meu pai disse isso uma vez.
— Você — ela diz, apontando para mim. — Eu esperava. Todos os problemas com o resultado do seu teste de aptidão levantou suspeitas. Mas você... — ela diz balançando a cabeça enquanto olha para Tobias. — Você, Tobias, ou devo chamá-lo de Quatro? Conseguiu me iludir — ela fala baixinho. — Tudo sobre você estava certo: resultado dos testes, simulações de iniciação, tudo. Mas, contudo, aqui está você — ela cruza as mãos apoiando o queixo sobre elas. — Talvez você possa me explicar como isso é possível?
— Você é o gênio — ele diz friamente. — Por que você não me explica?
A boca de Jeanine se curva em um sorriso.
— Minha teoria é de que você realmente pertence à Abnegação. Que sua divergência é fraca.
Seu sorriso se torna mais amplo. Como se ela estivesse se divertindo. Cerro meus dentes e considero me lançar sobre a mesa e estrangulá-la. Se eu não tivesse uma bala no ombro, eu faria isso.
— Sua capacidade de raciocínio dedutivo é assombrosa — cospe Tobias. — Considere-me impressionado.
Olho para ele. Quase me esqueci desse lado dele – a parte que é mais suscetível a explodir do que a deitar e morrer.
— Agora que sua inteligência foi comprovada, você deve querer prosseguir com isso de nos matar — Tobias fecha os olhos. — Você tem muitos líderes da Abnegação para matar.
Se o comentário de Tobias incomoda Jeanine, ela não demonstra. Ela continua sorrindo e representando bem. Ela veste um vestido azul que cobre seu corpo dos ombros até os joelhos, revelando uma camada de gordura em sua cintura. A sala gira enquanto eu tento focalizar seu rosto, e me apoio em Tobias em busca de apoio. Ele desliza seu braço ao meu redor, me segurando pela cintura.
— Não seja bobo. Não tem por que ter pressa — ela diz levemente. — Vocês dois estão aqui para um propósito extremamente importante. Veja só, me deixa perplexa que Divergentes sejam imunes ao soro que desenvolvi, então tenho trabalhado para corrigir isso. Pensei que teria conseguido com o último lote, mas como vocês sabem, eu estava errada. Por sorte, tenho outro lote para testar.
— Por que se preocupar?
Ela e os líderes Audácia não tiveram nenhum problema em matar Divergentes no passado. Por que agora isso seria diferente?
Ela sorri para mim.
— Tenho me feito a mesma pergunta desde que o projeto da Audácia começou... — Ela dá um passo para o lado, deslizando seus dedos sobre a mesa. — Por que a maioria dos Divergentes são os de vontade fraca, tementes a Deus da Abnegação, de todas as facções?
Eu não sabia que a maioria dos Divergentes vinha da Abnegação, e eu não sei por que isso acontece. E provavelmente não viverei o bastante para descobrir.
— De vontade fraca — Tobias zomba. — É preciso uma força de vontade muito grande para manipular as simulações, pelo menos da última vez que chequei. Fraqueza é ter que controlar as mentes de um exército porque é muito difícil para você treinar um.
— Eu não sou tola — Jeanine diz. — Uma facção de intelectuais não é um exército. Nós estamos cansados de ser dominados por um monte de hipócritas que rejeitam todo tipo de riqueza e avanço, mas não poderíamos fazer nada por nós mesmos. E seus membros da Audácia ficaram todos mais do que felizes em me apoiar contanto que eu garantisse a eles um lugar em nosso novo e melhorado governo.
— Melhorado — Tobias ecoa, bufando.
— Sim, melhorado — Jeanine diz. — Melhorado e trabalhando em direção a um mundo em que cada um poderá viver com riquezas, conforto e prosperidade.
— A que custo? — pergunto. Minha voz fraca e lenta. — Toda essa riqueza... não vem de lugar nenhum.
— Atualmente, os sem facção representam um buraco nos nossos recursos — Jeanine responde. — Assim como a Abnegação. Tenho certeza de que assim que os últimos da sua antiga facção forem incorporados ao exército da Audácia, Franqueza irá cooperar e nós finalmente seremos capazes de arrumar as coisas.
Incorporados ao exército da Audácia. Eu sei o que isso quer dizer – ela quer controlá-los também. Quer que todos sejam flexíveis e fáceis de controlar.
— Arrumar as coisas — Tobias repete amargamente. — Não se engane. Você estará morta antes que o dia acabe, você...
— Talvez se você fosse capaz de controlar seu temperamento — Jeanine diz, suas palavras cortando Tobias — não estaria nessa situação, Tobias.
— Eu estou nessa situação porque você me colocou nela — ele atira. — No segundo em que orquestrou um ataque contra pessoas inocentes.
— Pessoas inocentes — Jeanine ri. — Acho isso um pouco engraçado, vindo de você. Eu esperaria que o filho de Marcus entendesse que nem todas as pessoas são inocentes — ela se empoleira na borda da mesa, sua saia subindo e revelando seus joelhos, que eram marcados por cicatrizes. — Você pode me dizer honestamente que não ficaria feliz em saber que seu pai foi morto no ataque?
— Não — Tobias diz entre dentes. — Mas ao menos a maldade dele não envolvia manipular toda uma facção e sistematicamente matar cada líder político que temos.
Eles se encaram por alguns segundos, tempo o bastante para me deixar tensa, e então Jeanine limpa sua garganta.
— O que eu estava dizendo, é que em breve será incumbida a mim a tarefa de manter sob controle dúzias de adultos e crianças da Abnegação, e não é bom para mim que grande parte deles possa ser Divergente como vocês, incapazes de serem controlados pela simulação.
Ela fica de pé e caminha alguns passos para esquerda, suas mãos cruzadas em frente a ela. Suas unhas, como as minhas, roídas.
— Portanto, é preciso desenvolver uma nova forma de simulação a qual eles não sejam imunes. Tenho sido forçada a reavaliar minhas próprias suposições. E é aqui que vocês entram — ela dá alguns passos para a direita. — Você está certo em dizer que vocês têm muita força de vontade. Eu não posso controlar suas vontades. Mas existem algumas coisas que eu posso controlar.
Ela para e olha para nós. Apoio minha cabeça no ombro de Tobias. Sangue escorre pelas minhas costas. A dor tem sido tão constante nos últimos minutos que me acostumei a ela, como uma pessoa se acostumaria ao barulho de uma sirene se ele fosse persistente.
Ela pressiona as palmas das mãos juntas. Não vejo nenhuma satisfação viciosa em seus olhos, e nem uma pitada do sadismo que eu esperava. Ela é mais uma máquina do que maníaca. Ela vê problemas e formula soluções baseado nos dados que coletou. Abnegação ficou no caminho do seu desejo por poder, então ela achou uma forma de eliminá-los. Ela não tinha um exército, logo achou um na Audácia. Sabia que precisaria controlar grandes grupos de pessoas a fim de permanecer segura, então desenvolveu um meio de fazer isso com o soro e os transmissores.
Divergência é só mais um problema que ela precisa resolver, e é isso o que a faz tão aterrorizante – porque ela é esperta o bastante para resolver qualquer coisa, mesmo o problema da nossa existência.
— Eu posso controlar o que você vê e ouve — ela diz. — Então criei um novo soro que vai ajustar o seu entorno para manipular sua vontade. Aqueles que se recusam a aceitar nossa liderança devem ser monitorados de perto.
Monitorado ou ter seu livre arbítrio roubado. Ela tem um dom para palavras.
— Você vai ser a primeira cobaia, Tobias. Beatrice, entretanto... — ela sorri. — Você está muito ferida para ser útil para mim; sua execução vai acontecer assim que esta reunião for encerrada.
Tento controlar o arrepio que passa por mim com a palavra execução, meu ombro gritando de dor, e olho para Tobias. É difícil afastar as lágrimas quando vejo o terror nos olhos escuros dele.
— Não — Tobias diz. Sua voz treme, mas seu olhar é firme enquanto ele balança a cabeça. — Eu prefiro morrer.
— Temo que não tenha muita escolha — Jeanine responde tranquilamente.
Tobias segura bruscamente meu rosto entre suas mãos e me beija, a pressão de seus lábios separando os meus. Esqueço minha dor e o terror de uma morte eminente e por um momento, sou grata porque a memória desse beijo ficará fresca em minha mente enquanto encontro meu fim.
Então ele me solta e eu preciso me apoiar contra a parede em busca de suporte. Sem nenhum outro aviso além do aperto dos seus músculos, Tobias cruza a sala e envolve suas mãos na garganta de Jeanine. Os soldados da Audácia que guardavam a porta lançam-se em direção a ele, suas armas prontas, e eu grito.
São necessários dois soldados para afastar Tobias de Jeanine e empurrá-lo para o chão. Um dos soldados prende os ombros de Tobias com os joelhos enquanto suas mãos seguram a cabeça de Tobias, pressionando seu rosto contra o carpete. Invisto contra eles, mas outro guarda empurra meus ombros, me forçando contra a parede. Estou fraca devido à perda de sangue e sou muito pequena.
Jeanine se apoia contra a mesa, tossindo e ofegando. Ela massageia a garganta, que está vermelha brilhante com as marcas dos dedos de Tobias. Não importa quão mecânica ela pareça, ela ainda é humana; lágrimas cobrem seus olhos enquanto ela pega uma caixa da gaveta da mesa e a abre, revelando uma agulha e uma seringa.
Ainda respirando pesadamente, ela a carrega até Tobias. Tobias range os dentes e acerta um dos guardas no rosto com seu cotovelo. O guarda bate com o cabo de sua arma na lateral da cabeça de Tobias e Jeanine aplica a injeção em seu pescoço. Ele amolece.
Um som escapa da minha boca, não um soluço ou um grito, mas um coaxar, um gemido que soa desconexo, como se viesse de outra pessoa.
— Levantem-no — Jeanine ordena, sua voz áspera.
O guarda levanta, assim como Tobias. Ele não parece com os soldados sonâmbulos, seus olhos estão alertas. Ele olha ao redor por alguns segundos como se estivesse confuso com o que via.
— Tobias! — eu chamo. — Tobias!
— Ele não conhece você — Jeanine diz.
Tobias olha por cima do ombro. Seus olhos cerrados, e começa a vir em minha direção, rápido. Antes que os guardas possam pará-lo, ele fecha a mão ao redor da minha garganta, apertando-a com seus dedos. Eu engasgo, meu rosto quente com o sangue.
— A simulação o manipula — Jeanine diz. Mal posso ouvi-la com meus ouvidos latejando. — Alterando o que ele vê, fazendo-o confundir inimigos com amigos.
Um dos guardas afasta Tobias de mim. Eu arquejo, respirando penosamente e enchendo meus pulmões com ar.
Ele se foi. Controlado pela simulação, ele agora irá matar as pessoas que há três minutos chamava de inocentes. Se Jeanine o tivesse matado, doeria menos do que isso.
— A vantagem dessa versão da simulação — ela diz, seus olhos ardendo. — É que ele pode agir independentemente, e é, portanto, muito mais eficiente do que um soldado estúpido.
Ela olha para os guardas que seguram Tobias. Ele luta contra eles, seus músculos tensos, os olhos focados em mim, mas sem me ver, não da forma como ele costumava me ver.
— Mande-o para a sala de controle. Queremos alguém sensível para monitorar as coisas e, se não me engano, ele costumava trabalhar lá.
Jeanine pressiona suas mãos juntas em frente a ela.
— E levem ela para o quarto B13 — diz, acenando para me dispensar.
Aquele aceno ordena minha execução, mas para ela é só um item a menos em sua lista de tarefas, a única progressão lógica do caminho particular em que ela está. Ela me examina friamente enquanto dois soldados Audácia me empurram para fora da sala.
Eles me arrastam pelo corredor. Sinto-me adormecida por dentro, mas por fora eu grito, me debatendo com vigor. Mordo a mão que pertence ao homem à minha direita e sorrio quando sinto o gosto de sangue na boca. Então ele me bate e tudo some.

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