terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 8 - Páscoa

Mesmo já sendo primavera, bem perto da Páscoa, ainda eram muito raras as noites em que o tempo estava suficientemente quente para que Miss Bessie pudesse ficar lá fora no pasto.
Para não falar na chuva.
Choveu a cântaros durante todo o mês de março. Pela primeira vez em muitos anos, correu água pelo leito do riacho, e não foi só um fiozinho, não. Quando eles se balançavam na corda para passar para o outro lado, dava até um pouco de medo olhar lá para baixo e ver aquela água correndo nas pedras.
Jess costumava levar o Príncipe Terriano dentro da jaqueta, mas o cachorrinho estava crescendo tão depressa que a qualquer momento podia rebentar o zíper do agasalho, despencar lá de cima, dentro d’água, e se afogar.
Ellie e Brenda já estavam discutindo sobre o que iam vestir para ir à igreja no Domingo de Páscoa. Desde que a mãe se aborrecera com o pastor, três anos antes, esse era o único dia do ano em que a família Aarons ia à igreja, e era um grande acontecimento.
A mãe vivia reclamando de como eram pobres, mas se preocupava muito (e juntava todo o dinheiro que conseguia economizar para isso) em garantir que ninguém passasse vergonha por causa da aparência da família. Porém, no dia em que todos planejavam ir juntos ao centro comercial de Millsburg comprar roupas novas, o pai chegou cedo de Washington. Tinha sido demitido. Ninguém ia ter roupas novas naquele ano.
Logo Ellie e Brenda começaram a chorar, como se fossem duas sirenes de alarme avisando sobre um incêndio.
— Então não posso ir à igreja... — dizia Brenda. — Ninguém pode me obrigar. Não tenho nada para vestir, e vocês sabem disso.
— Quem mandou engordar demais? — murmurou May Belle.
— Ouviu o que ela disse, mãe? Eu mato essa peste!
— Brenda, cale a boca! — ordenou a mãe, irritada, mas o tom foi mudando para uma voz de desânimo. — Temos coisas muito mais sérias com que nos preocupar, muito pior do que roupas para a Páscoa.
O pai levantou-se, fazendo barulho, e se serviu de uma xícara do café que estava no bule em cima do fogão.
— Não dá para fazer um crediário? — perguntou Ellie, na sua voz choraminguenta.
Brenda se meteu.
— Sabe o que muitas pessoas fazem? Abrem um crediário, pegam a roupa, vestem, e depois devolvem, dizem que não serviu e exigem o dinheiro de volta. As lojas nem ligam.
O pai parecia que estava rugindo:
— Nunca ouvi uma coisa tão absurda na minha vida. Você não ouviu sua mãe dizer para calar a boca, menina?
Brenda parou de falar, mas estava mascando chicletes e estourou uma bola fazendo o máximo de barulho que conseguiu, como se quisesse provar que não se entregava.
Jess conseguiu escapulir, e se alegrava porque estava podendo ir ao curral, aproveitar a companhia complacente de Miss Bessie. Ouviu baterem à porta.
— Jess?
— Oi, Leslie, entre!
Primeiro ela olhou, depois se sentou a seu lado, no chão, perto do banquinho.
— O que houve?
— Ih, nem pergunte! — disse ele, enquanto apertava as tetas da vaca compassadamente, ouvindo o barulhinho do leite no fundo do balde, plinc, plinc, plinc!
— Tão ruim assim, é?
— Meu pai foi despedido. E Brenda e Ellie estão tendo um ataque porque vão ficar sem roupa nova na Páscoa.
— Puxa, que pena! Quer dizer, essa história do seu pai...
Jess deu um riso forçado.
— É. Também não estou preocupado com as meninas. Se é que eu conheço aquelas duas, vão acabar dando um jeito de conseguir as roupas novas. Dá até vontade de vomitar, quando a gente vê o jeito que elas ficam se exibindo na igreja.
— Eu não sabia que vocês iam à igreja.
— Só na Páscoa.
Ele se concentrou um pouco no úbere morno da vaca, depois comentou:
— Na certa você acha que isso é meio bobo...
Ela não respondeu, durante um minuto.
— Eu estava pensando que gostaria de ir.
Ele interrompeu a ordenha.
— Leslie, às vezes eu não te entendo.
— Bom, eu nunca fui a uma igreja na minha vida. Ia ser uma experiência nova para mim.
Ele voltou ao trabalho, dizendo:
— Você ia odiar.
— Por quê?
— Porque é chato.
— Bom, mas mesmo assim eu gostaria de ir e ficar sabendo, eu mesma. Será que seus pais deixam eu ir com vocês?
— Não pode ir de calça.
— Eu tenho uns vestidos, Jess Aarons.
Será que aquele era o dia das surpresas sem fim?
— Olhe aqui. Abra a boca.
— Por quê?
— Abra a boca e não pergunte nada — disse ele.
Ao menos uma vez na vida ela obedeceu. Ele esguichou um pouco de leite morno, direto na garganta de Leslie.
— Jesse Aarons! — exclamou ela, engasgando e deixando um pouco de leite escorrer pelo queixo.
— Não, não. Agora não abra a boca. Senão, vai desperdiçar um leite ótimo.
Leslie começou a rir, engasgando e tossindo.
— Puxa, se eu conseguisse acertar desse jeito com o bastão de beisebol numa bola, ia ser um campeão. Deixe eu tentar de novo.
Leslie controlou o riso, fechou os olhos e, solenemente, abriu a boca.
Mas agora quem estava rindo era Jess, e não conseguia ficar com a mão firme.
— Seu desastrado! Jogou leite dentro da minha orelha!
Leslie levantou o ombro e esfregou a orelha na manga do agasalho. Caiu na gargalhada de novo.
— Eu agradeceria se você acabasse logo com isso e voltasse para casa — disse o pai, parado na porta.
— Acho melhor eu ir embora — disse Leslie, baixinho, levantando-se e caminhando para a porta. — Com licença.
O pai de Jess chegou para o lado, para que ela passasse. Jess esperou que ele dissesse mais alguma coisa, mas ele só ficou parado ali por uns instantes, e depois se virou e saiu.

* * *

Ellie disse que iria à igreja, se a mãe a deixasse usar a blusa transparente, e Brenda iria se ganhasse, pelo menos, uma saia nova. No fim, todo mundo acabou ganhando alguma coisa nova, menos Jess e o pai, que não ligavam para isso. Mas Jess ficou achando que sua boa vontade poderia lhe dar algum poder de barganha com a mãe.
— Já que eu não vou ganhar roupa nova, será que posso pedir para Leslie ir conosco à igreja?
— Aquela menina?
Dava para ver que a mãe estava revirando as ideias na cabeça, procurando algum bom motivo para dizer que não:
— Ela não se veste direito.
— Mãe! — disse ele, de um jeito escandaloso e artificial que até parecia Ellie falando. — Leslie tem vestidos. Centenas de vestidos.
A mãe teve que dar o braço a torcer.
Mordeu o lábio inferior, como Joyce Ann às vezes fazia, e falou tão baixinho que mal dava para Jess ouvir.
— Não quero ninguém se achando melhor que a minha família.
Jess teve vontade de dar um abraço na mãe, botar o braço em volta do ombro dela, como fazia com May Belle quando a pequena precisava ser consolada.
— Ela não vai se achar melhor do que ninguém, mãe. De verdade.
A mãe suspirou.
— Está bem. Se ela for decentemente vestida...

* * *

Leslie foi vestida decentemente. O cabelo estava penteado diferente, meio revirado para dentro, e ela vestia uma espécie de jardineira azul-marinho por cima de uma blusa estampada com umas florzinhas com ar antigo. Embaixo das meias vermelhas que vinham até o joelho, estava um par de sapatos pretos brilhantes, de verniz, que Jess jamais vira, porque Leslie em geral só usava tênis, como todas as outras crianças de Córrego da Cotovia.
Até seus modos estavam comportadíssimos.
Tinha desaparecido aquela faísca que sempre estava em tudo o que dizia, e ficava só respondendo para a mãe de Jess “Sim, senhora”, “Não, senhora”, como se soubesse perfeitamente da mania de respeito que a senhora Aaron tinha.
Jess imaginava como o esforço devia ser grande, porque Leslie nunca dizia “senhora”, naturalmente.
Comparadas com Leslie, Brenda e Ellie pareciam uma dupla de pavões com penas falsas na cauda. As duas insistiram em viajar na cabine da caminhonete com os pais, o que ficava muito apertado, ainda mais considerando o tamanho de Brenda. Jess, Leslie e as meninas menores subiram para a carroceria todos contentes, e se ajeitaram em cima dos sacos velhos que o pai pusera forrando o assoalho, junto à cabine.
O sol não estava exatamente brilhando, mas era o primeiro dia em que a chuva parara realmente de cair enquanto cantavam Ó Senhor, que bela manhã, Belas campinas e ainda Cante uma canção, que Miss Edmunds tinha ensinado a eles. Cantaram até Jingle bells, porque Joyce Ann pediu.
O vento levava o som das vozes para longe. Isso fazia a música parecer misteriosa, enchendo Jess de uma sensação de poder sobre as montanhas, que lhe surgia ali, naquela simples carroceria da caminhonete.
O trajeto foi curtinho demais, principalmente para Joyce Ann, porque tinham chegado bem na hora em que estavam começando a cantar Lá vem Papai Noel, logo depois de Jingle bells, que era a canção de que mais gostava.
Jess brincou de fazer cócegas nela, para que risse de novo, e, assim, quando os quatro desceram do carro, estavam novamente sorridentes e felizes.
Tinham se atrasado um pouquinho, mas isso não incomodava Ellie e Brenda, porque significava que teriam de atravessar a igreja toda, até o primeiro banco, desfilando por aquele corredor comprido – o que garantia que todos os olhares estariam voltados para elas, e muitas expressões seriam de inveja. Deus do céu, elas eram mesmo umas nojentas. E a mãe ainda tinha ficado com medo de que Leslie desse vexame.
Jess afundou a cabeça entre os ombros e se enfurnou no banco, depois que aquela fileira de mulheres se acomodou antes dele e do pai.
Ir à igreja parecia ser sempre a mesma coisa. Jess conseguia se desligar, como fazia na escola, obrigando o corpo a se levantar e sentar junto com o resto da congregação, enquanto sua mente pairava longe daquilo tudo, não exatamente pensando ou sonhando, mas, pelo menos, livre e solta.
Uma ou duas vezes, teve consciência de que estava em pé, envolvido por um canto alto e nem sempre muito afinado. Em alguns raros momentos de consciência, ouvia Leslie cantando com os outros, e começou vagamente a se perguntar por quê, afinal de contas, ela estava fazendo aquilo.
O pastor começou a fazer o sermão, com aquela sua voz meio traiçoeira: vinha falando mansinho durante vários minutos, todo suave, e de repente, bang!, estava berrando com as pessoas. Cada vez que isso acontecia, Jess tinha um sobressalto, e levava alguns minutos para conseguir relaxar de novo. Como não estava prestando atenção às palavras, a cara vermelha do homem, com gotas de suor escorrendo, parecia estranha e fora de lugar, naquele santuário chato. Era como se Brenda resolvesse fazer uma cena porque Joyce Ann encostara o dedo no batom dela.
Na saída, levaram algum tempo para conseguir arrastar Ellie e Brenda do ajuntamento de pessoas que se formava na frente da igreja. Jess e Leslie se adiantaram, ajeitaram as meninas na carroceria, e se sentaram para esperar.
— Puxa, adorei ter vindo!
Jess se virou para Leslie, incrédulo.
— Muito melhor do que ir ao cinema — ela acrescentou.
— Você está brincando.
— Não, não estou.
E não estava mesmo. Dava para ver na cara dela, enquanto dizia:
— Toda essa coisa de Jesus é muito interessante, você não acha?
— Como assim?
— Aquelas pessoas todas querendo acabar com ele, matar e tudo, e ele não tinha feito mal algum — explicou ela, hesitando. — Na verdade, é uma história muito bonita... como a de Abraham Lincoln, ou Sócrates. Ou Aslam.
— Não é nada bonita — interrompeu May Belle. — É horrível, dá medo na gente. Imagine, enfiarem uns pregos bem no meio das mãos de alguém.
— May Belle tem razão — concordou Jess, escarafunchando lá no fundo da memória para explicar. — Mas como todos nós somos pecadores e malvados, Deus tinha que mandar Jesus para morrer.
— Você acredita mesmo que isso é verdade?
Ele ficou chocado.
— Está na Bíblia, Leslie.
Ela olhou para ele como se fosse discutir, depois pareceu mudar de ideia.
Sacudiu a cabeça e disse:
— É uma coisa meio maluca, não acha? Você tem que acreditar nisso e detesta. Eu não tenho que acreditar e acho que é lindo. Muito doido.
May Belle estava com os olhos arregalados, como se Leslie fosse um animal estranho num jardim zoológico:
— Você tem que acreditar na Bíblia, Leslie.
— Por quê?
Era uma pergunta sincera. Leslie não estava querendo bancar a esperta.
— Porque se você não acreditar na Bíblia — explicou May Belle com os olhos arregalados — Deus vai te mandar para o inferno quando você morrer.
— Onde foi que ela ouviu uma coisa dessas? — perguntou Leslie, virando-se para Jess, como se o acusasse de ter feito alguma coisa terrível com a irmã.
Ele sentiu o sangue subir, o rosto esquentar, apanhado por aquelas palavras e aquele tom de voz. Abaixou os olhos, passou a mão nos sacos de estopa que forravam o assoalho, e começou a brincar com a borda esfiapada do tecido.
— E é verdade, não é, Jess? — a voz esganiçada de May Belle exigia uma confirmação. — Não é verdade que Deus manda para o inferno quem não acredita na Bíblia?
Jess jogou para trás o cabelo que lhe caía no rosto.
— Acho que é — murmurou.
— Pois eu não acredito — disse Leslie. — E nem acho que você leu a Bíblia.
— Li uma grande parte, quase tudo — disse Jess, ainda brincando com os dedos no tecido. — Acho que é o único livro que tem lá em casa.
Levantou os olhos para Leslie e deu um sorriso meio sem graça. Ela sorriu também.
— Tudo bem. Mas eu não consigo acreditar que Deus sai por aí condenando as pessoas ao inferno.
Sorriram um para o outro, tentando ignorar a voz aflita de May Belle.
— Mas Leslie — insistia a pequena — e se você morrer? O que vai acontecer com você, se morrer de repente?

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