terça-feira, 25 de março de 2014

Capítulo 9 - Um encantamento maléfico

Na segunda-feira depois da Páscoa, a chuva recomeçou, com toda força. Eles não tinham aula naquela semana e era como se os elementos estivessem conspirando para arruinar essas férias tão curtinhas.
Jess e Leslie estavam sentados, com as pernas cruzadas, no chão da varanda da casa dos Burkes, observando como as rodas de um caminhão que passava jogavam para cima montes de água enlameada, sujando toda a traseira do veículo.
— Ele não deve estar a mais de vinte quilômetros por hora — murmurou Jess.
Bem nessa hora, alguma coisa foi jogada pela janela da cabine. Leslie deu um salto e ficou de pé.
— Seu porco! Vai jogar lixo no seu quintal! — gritou ela, enquanto as lanternas traseiras do caminhão se afastavam e as luzes iam sumindo.
Jess também se levantou.
— O que você quer fazer?
— Eu quero é ir para Terabítia — disse ela, olhando desanimada para a chuva.
— Pois então, vamos.
— Ótimo! — disse ela, mais alegre de repente. — Por que não?
Pegou as botas, uma capa, e ficou olhando o guarda-chuva:
— Você acha que a gente consegue se balançar na corda carregando um guarda-chuva?
Ele sacudiu a cabeça.
— De jeito nenhum.
— Está bem. Mas devíamos passar na sua casa e pegar suas botas e uma capa.
Ele deu de ombros.
— Não tenho nada que caiba em mim. É melhor ir assim mesmo.
— Vou pegar um casaco velho do Bill.
Começou a subir a escada. Judy apareceu na saleta de entrada.
— Crianças, o que vocês estão fazendo?
Eram as mesmas palavras que a mãe de Jess poderia ter usado, mas não eram ditas do mesmo jeito. Os olhos de Judy estavam meio vagos enquanto ela falava, e parecia que a voz estava sendo transmitida de algum lugar muito longe, a quilômetros de distância.
— A gente não queria te interromper, Judy.
— Tudo bem, eu estou empacada mesmo. Posso muito bem parar de uma vez. Vocês já almoçaram?
— Não se incomode, Judy. A gente se vira.
Os olhos de Judy focalizaram um pouquinho melhor.
— Você está de botas?
Leslie olhou para os próprios pés.
— Estou... — confirmou, como se só estivesse reparando nesse momento. — A gente está com vontade de ir dar uma volta.
— Está chovendo de novo?
— Está.
— Eu gostava muito de andar na chuva... — disse Judy, sorrindo, do jeito que May Belle sorria dormindo. — Bom, se vocês dois acham que se garantem...
— Claro.
— Bill já voltou?
— Não, ele disse que ia voltar tarde. Não se preocupe.
— Está bem — disse Judy.
Em seguida soltou uma exclamação súbita, como quem encontra de repente alguma coisa perdida:
— Huum! É isso!
E voltou correndo para o quarto, onde na mesma hora recomeçou o toque-toque do teclado da máquina de escrever. Leslie abriu um sorriso.
— Pronto! Desligou de novo!
Ele ficou pensando em como seria aquilo, de viver com uma mãe cujas histórias estavam dentro de sua cabeça, em vez de desfilarem o dia inteiro pela tela da televisão. Seguiu Leslie escada acima, até a saleta onde a menina tirava coisas de dentro de um armário. Ela lhe passou uma capa de chuva bege e um chapéu preto de lã, redondo.
— Não tem bota.
A voz dela vinha das profundezas do armário, abafada por uma fileira de casacos.
— Que tal um par de tamancos?
— Um par de quê?
A cabeça dela apareceu pelo meio dos casacos.
— Tamancos, tamancos. Com sola de madeira, para jardinagem. Os pés ficam mais acima do chão.
Mostrou a ele. Eram enormes.
— Não, eu ia acabar perdendo na lama. Melhor ir descalço.
— Ótima ideia — disse ela, saindo por completo lá de dentro. — Também vou descalça.
O chão estava frio. A lama gelada chegava a doer, se irradiando pelas pernas acima. Então começaram a correr pelo meio das poças, esparramando água e atolando os pés na lama. O P.T. saltitava à frente deles, como se fosse um peixe pulando de um mar marrom para outro, e depois se virava, tocando os dois para adiante, mordiscando seus calcanhares e jogando mais lama em seus jeans que já estavam imundos.
Quando os dois amigos chegaram à beira do riacho, pararam. Era uma visão impressionante. Como nos Dez Mandamentos, na televisão, quando a água despencou por cima do caminho seco que Moisés tinha aberto no mar e varreu todos os egípcios que vinham em sua perseguição, agora aquele leito estreito e fino do riacho tinha virado uma torrente, um mar largo e barulhento, arrastando imensos galhos de árvores, troncos e lixo, girando e afundando coisas em redemoinhos, como as carruagens de guerra dos egípcios. As águas famintas lambiam as margens, e às vezes até chegavam a subir nelas, desafiando e ameaçando quem ousasse lhes impor limites.
— Uau! — exclamou Leslie, numa voz cheia de respeito.
— Uau! — ecoou Jess.
Ele olhou para a corda. Ainda estava enrolada em volta do galho da velha macieira silvestre. Sentiu um frio no estômago.
— Acho que era melhor a gente desistir por hoje.
— Deixe disso, Jess. A gente consegue.
O capuz do agasalho de Leslie tinha caído para trás, e o cabelo dela estava todo molhado e grudado na testa. A menina passou a mão no rosto e nos olhos, para secar um pouco, e depois desenrolou a corda.
— Pronto — disse. — Ponha o P.T. aqui dentro para mim.
— Deixe que eu carrego ele, Leslie.
— Com essa capa de chuva, ele escorrega e cai por baixo.
Ela estava impaciente, querendo ir logo. Então Jess pegou o cachorro encharcado e o enfiou, pelas patas traseiras, na caverna quentinha do agasalho de Leslie.
— Aperte bem o traseiro dele com seu braço esquerdo, e balance com a direita. Sabe como é?
— Eu sei, eu sei — disse ela, já chegando para trás para tomar impulso.
— Segure firme.
— Claro, Jess... Pare com isso.
Ele calou a boca. Queria fechar os olhos, também. Mas obrigou-se a olhar: ela tomou impulso, correu até a margem, pulou, se balançou, e saltou fora da corda, pousando graciosamente em pé do outro lado.
— Pegue!
Jess esticou o braço, mas estava prestando atenção em Leslie e no P.T., e por isso não se concentrou na corda, que escorregou da ponta de seus dedos e se afastou, balançando num arco largo, para fora de seu alcance.
O menino deu um pulo e a agarrou.
Desligando do barulho e da visão da água, tomou impulso e correu para a frente. A torrente gelada lambeu seus calcanhares por um momento, mas num instante ele já estava no ar, por cima da correnteza, e despencava desajeitado do outro lado, aterrissando sentado.
O P.T. na mesma hora pulou para cima dele, com suas patas enlameadas andando por cima da capa de chuva bege, e a língua rosada lixando o rosto molhado de Jess.
Os olhos de Leslie brilhavam.
— Levantai-vos... — disse solene, mal contendo o riso. — Levantai-vos, ó rei de Terabítia, e sigamos adiante para o nosso reino.
O rei de Terabítia fungou e esfregou o rosto nas costas da mão.
— Levantar-me-ei — respondeu ele com toda a solenidade — assim que removerdes este cachorro bobo de minha barriga.
Voltaram a Terabítia novamente na terça e na quarta.
Continuava a chover esporadicamente, de modo que na quarta-feira o riacho já tinha enchido tanto que a água alcançava o tronco da macieira silvestre e eles tinham que correr com água pelo tornozelo para voarem até Terabítia. E do outro lado, Jess tomava muito cuidado para cair em pé: ficar depois uma hora sentado, com a bunda gelada dentro de calças encharcadas, não tinha a menor graça, mesmo num reino mágico.
Para Jess, o medo da travessia aumentava à medida que aumentava a altura do riacho. Leslie parecia não hesitar nunca, e por isso Jess não podia recuar.
Porém, mesmo obrigando seu corpo a ir atrás dela, sua mente ficava para trás, desejando se agarrar no tronco da macieira silvestre, do mesmo jeito que Joyce Ann agarrava a saia da mãe.
Na quarta-feira, quando estavam sentados no castelo, de repente começou a chover tão forte que a água caía do telhado da cabana aos borbotões, num monte de goteiras geladas. Jess tentou se desviar do dilúvio, mas não havia meio de escapar daquelas invasoras desgraçadas.
— Sabeis o que passa por meu espírito, ó rei? — perguntou Leslie, esvaziando no chão o conteúdo de uma caneca de café e colocando a vasilha debaixo da pior goteira.
— O quê?
— Julgo que algum ser maléfico enfeitiçou nosso amado reino, lançando sobre ele a maldição de um encantamento.
— Maldita previsão meteorológica!
Na penumbra, ele podia ver que o rosto de Leslie ficara imóvel, em sua pose mais solene de rainha... expressão que ela costumava reservar aos inimigos vencidos.
Não estava disposta a brincar e achar graça, e ele imediatamente se arrependeu de seus modos tão pouco adequados a um rei.
Leslie preferiu ignorar o comentário e continuou:
— Vamos até o bosque sagrado, invocar os Espíritos e consultá-los, para descobrir de que mal se trata e como devemos combatê-lo. Porque em verdade percebo que não é uma chuva comum esta que se abate sobre nosso reino.
— Tendes razão, minha rainha — concordou Jess, rastejando para fora da pequena entrada da fortaleza.
Debaixo dos pinheiros, até a chuva parecia ter menos poder. Sem a luz do sol filtrada pelas árvores, ficava escuro, quase como se fosse noite, e o som da chuva caindo sobre os galhos bem acima de suas cabeças enchia o lugar de uma música estranha, sem melodia.
Jess sentia uma coisa esquisita, como se fosse um peso no estômago, frio, mistura de apreensão e medo.
Leslie levantou os braços e virou o rosto para o alto, para a cobertura verde escura lá em cima:
— Ó Espíritos do Bosque — começou, solenemente — aqui viemos em nome de nosso reino muito amado, que está sob o encantamento de alguma força maléfica e desconhecida. Dai-nos, vos imploramos, a sabedoria necessária para distinguir que mal é esse, e concedei-nos o poder de vencê-lo.
Cutucou Jess com o cotovelo. Ele levantou os braços também.
— Ahnn...
Sentiu de novo a cotovelada dela.
— Ahnn... Isso mesmo. Por favor, Espíritos, escutai-nos.
A menina se deu por satisfeita. Pelo menos não o cutucou mais. Só ficou ali parada, como se estivesse ouvindo com respeito enquanto alguém falava com ela.
Jess tremia, mas não sabia se era de frio ou por causa do lugar. De qualquer modo, ficou contente quando ela se virou para irem embora. Só conseguia pensar numas roupas secas e numa xícara de café quente. Talvez algo mais: ficar umas horas na frente da televisão, relaxado, sem fazer nada. Obviamente, não era digno de ser rei de Terabítia. Quem já ouviu falar de um rei que tem medo de umas árvores altas e um pouquinho de água?
Na volta, balançou-se por cima do riacho, tão chateado consigo mesmo que nem chegou a ter medo. No meio da travessia, olhou para baixo e pôs a língua de fora para a torrente que roncava lá em baixo. “Quem tem medo do lobo mau? Tralala-lalá...”, cantarolou para si mesmo. E rapidamente olhou para cima de novo, em direção à macieira.
Subindo o morro pelo meio da lama e do capim pisado, batia os pés no chão com força. “Esquerdo, direito, esquerdo, direito”. Mentalmente, ia falando com os pés. “Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato...”
— A gente podia mudar a roupa e ir ver televisão ou qualquer coisa assim na sua casa, que tal?
Teve vontade de abraçar a amiga.
— Maravilha! — respondeu, alegre. — Eu faço um café para a gente tomar.
— Oba! — disse ela, sorrindo, e começou a correr para a velha casa dos Perkins, com aquele jeito lindo que tinha quando corria, e que nem a chuva nem a lama eram capazes de atrapalhar.

* * *

Quando Jess foi dormir naquela quarta-feira, achava que podia relaxar e que tudo ia dar certo, mas acordou no meio da noite com a terrível constatação de que ainda estava chovendo.
Ia ter que dizer a Leslie que não ia a Terabítia. Afinal, ela já tinha dito isso a ele antes, quando estava trabalhando na casa com Bill. E ele não perguntou por quê. Agora era a vez dele.
Não era tanto que ele se incomodasse em dizer a Leslie que estava com medo de ir. O que o incomodava era saber que estava com medo. Era como se tivesse sido feito incompleto, faltando um pedaço – como aqueles quebra-cabeças de May Belle, com uma peça perdida, e aquele buracão no lugar do olho ou da boca de alguém. Deus do céu, era melhor ter nascido sem um braço, do que viver a vida toda sem coragem. Mal conseguiu dormir o resto da noite, ouvindo aquela chuva horrorosa e sabendo que, por mais que a água do riacho subisse, Leslie ainda ia querer atravessá-lo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário