quinta-feira, 17 de abril de 2014

Capítulo 1

A greve de fome havia começado duas horas após partirem de Paris.
Cheio de frescura, Saladin cheirou a lata aberta de comida para gato e torceu o nariz.
— Vamos, Saladin — insistiu Amy Cahill, a garota de 14 anos. — Esse é o seu jantar. Vai ser uma longa viagem até Viena.
O gato, da raça Mau Egípcio, soltou um bufo arrogante que era uma aula em comunicação não verbal: Você só pode estar brincando comigo.
— Ele está acostumado a comer salmão — Amy disse em tom de justificativa para Nellie Gomez, a au pair dos irmãos Cahill.
Nellie não se comoveu.
— Você faz ideia de quanto custa peixe fresco? Nosso dinheiro tem que durar. Não sabemos quanto tempo vamos ficar correndo de um lado pro outro, à procura das suas preciosas pistas.
Saladin soltou um Prrr!, desaprovando.
Dan Cahill, o irmão de Amy, de 11 anos, ergueu os olhos da página de partitura que estava examinando e se pronunciou:
— Eu concordo com o gato. Não acredito que pegamos o trem mais lerdo da Europa. Precisamos chegar logo! A concorrência tem jatos particulares, e nós estamos perdendo tempo no Expresso dos Perdedores. Será que vamos parar em cada cidadezinha perdida da França?
— Não — disse Nellie com sinceridade. — Daqui a pouco a gente vai parar em cada cidadezinha perdida da Alemanha. Depois em cada cidadezinha perdida da Áustria. Olha, a passagem foi barata, ok? Eu não concordei em ser babá de vocês dois nessa missão...
— Ser nossa au pair nessa missão — corrigiu Dan.
— ... pra depois ver vocês desistirem no meio porque torraram toda a grana em salmão e passagens de trem caras — ela concluiu.
— Sua ajuda é muito importante, Nellie — reconheceu Amy. — Nunca conseguiríamos fazer isso sem você.
Amy ainda estava zonza com o vendaval das últimas duas semanas. Num dia você é órfã; no outro, faz parte da família mais poderosa que o mundo já conheceu!
Era uma reviravolta incrível para duas crianças que tinham sido largadas na mão de uma tia-avó negligente que, por sua vez, as largava na mão de uma série de au pairs.Agora eles sabiam a verdade: eram parentes de Benjamin Franklin, Wolfgang Amadeus Mozart e de vários outros gênios, visionários e líderes mundiais.
Não éramos ninguém. De repente temos uma chance de mudar o mundo...
Tudo graças à busca que a avó Grace instituíra em seu testamento. De algum modo, o segredo do poder ancestral da família Cahill havia se perdido – um segredo que só poderia ser descoberto quando se reunissem as 39 pistas. Essas pistas estavam escondidas por todo o planeta. Ou seja, era uma caça ao tesouro. Mas que caça ao tesouro: uma busca atravessando oceanos e continentes, cujo prêmio era nada menos que dominar o mundo.
No entanto, um prêmio tão valioso implicava altos riscos. Os adversários de Amy e Dan não desistiriam tão facilmente até vê-los eliminados. Algumas pessoas já haviam se ferido.
E provavelmente muitas outras ainda vão se ferir...
Amy olhou para Dan no assento em frente ao dela. Duas semanas atrás, estávamos brigando pelo controle remoto da TV...
Ela nunca conseguiria mostrar para Dan como tudo aquilo era bizarro. O irmão dela não via nada de estranho em pertencer à família mais forte e influente da História. Aceitava aquilo sem questionar. Afinal, isso pegava muito bem pra ele. Dan não via desvantagem alguma em ser um protagonista na grande engrenagem do mundo. O coitado só tinha 11 anos, não tinha pai nem mãe, e até mesmo Grace se fora.
Com toda a agitação da busca, eles mal tinham tido tempo de sofrer pela morte da avó. Não parecia correto. Amy e Grace eram tão próximas. E ainda assim, tinha sido a avó quem os colocara naquela montanha-russa tão perigosa. Às vezes Amy não sabia o que sentir...
Ela sacudiu a cabeça para deixar esses pensamentos de lado e se concentrou no irmão. Dan olhava fixamente para a partitura, à procura de marcas escondidas ou mensagens secretas.
— Conseguiu alguma coisa? — Amy perguntou.
— Nadinha — ele disse. — Tem certeza de que esse tal de Mozart era mesmo um Cahill? Tipo, Benjamin Franklin até quando assoava o nariz deixava uma mensagem em código no lenço de papel. Isto não passa de música chata.
Amy revirou seus olhos verdes.
— Esse tal de Mozart? Você nasceu burro assim ou precisou tirar algum diploma? Wolfgang Amadeus Mozart é considerado o maior compositor clássico de todos os tempos.
— Ahã, clássico. Chato.
— As notas musicais também correspondem às letras de A a G — comentou Nellie. — Talvez a mensagem tenha alguma coisa a ver com isso.
— Já pensei nisso também. Até tentei desembaralhar as letras para o caso de as palavras serem anagramas. Vamos admitir, nós quase morremos pra conseguir uma pista que não é pista nenhuma.
— É uma pista, sim — insistiu Amy. — Tem que ser.
Pistas. 39 pistas. Nunca antes uma busca ofereceu tantas promessas. Nem tanto perigo. Com o poder supremo em jogo, a morte de dois órfãos americanos seria apenas uma nota de rodapé na História.
Mas nós não morremos. Encontramos a primeira pista – após uma turbulenta corrida cheia de obstáculos pela vida de Benjamin Franklin. Amy estava convencida de que Mozart era a chave para a segunda pista. A resposta estava no fim daqueles trilhos de trem, em Viena, onde Mozart vivera e compusera algumas das maiores músicas de todos os tempos.
Só restava torcer para que a concorrência não chegasse lá primeiro.

***

— Eu odeio a França — resmungou Hamilton Holt, segurando um minúsculo hambúrguer em sua mão gigante.
— É como se o país inteiro estivesse de dieta.
A família Holt estava de pé no balcão de uma lanchonete, numa pequena estação ferroviária trinta quilômetros a leste de Dijon, na França. Eles pretendiam se passar por uma simples família de férias, embora mais parecessem a linha de ataque de um time de futebol americano. Isso incluía as duas gêmeas, que tinham a mesma idade de Dan.
— Não perca o foco no prêmio, Ham — Eisenhower Holt lembrou ao filho. — Quando acharmos as 39 pistas, poderemos dar adeus a essa ração de fome e nos esbaldar nuns bufês de “coma o quanto aguentar” lá nos Estados Unidos. Mas por enquanto precisamos alcançar aqueles pirralhos dos irmãos Cahill.
Madison deu uma mordida no seu almoço e fez uma careta.
— Tem muita mostarda!
— Estamos em Dijon, sua anta — disse sua irmã gêmea Reagan. — É a capital mundial da mostarda.
Madison deu um soco de surpresa no estômago dela. O golpe teria derrubado um rinoceronte, mas Reagan apenas mostrou a língua num gesto de desafio. Não era tão fácil machucar um Holt.
— Quietas, meninas — advertiu com ternura a mãe, Mary-Todd. — Acho que estou ouvindo o trem.
A família ficou observando enquanto a velha locomotiva a diesel surgia arrastando-se pelos trilhos.
Madison franziu a testa.
— Achei que os trens da Europa fossem rápidos.
— Esses Cahill são traiçoeiros, que nem os pais deles — respondeu o pai. — Pegaram o último trem onde nós suspeitaríamos encontrá-los. Muito bem, pessoal, formação!
A família estava acostumada ao jargão de treinador de Eisenhower. Ele podia ter sido expulso da academia militar em West Point, mas nem por isso deixava de ser um ótimo motivador. E nada os motivava mais que uma oportunidade de acertar as contas com seus parentes esnobes. Aquela busca era a chance de provar que eles eram tão Cahill quanto qualquer outro. Os Holt seriam os primeiros a achar as 39 pistas, mesmo que para isso precisassem transformar todos os outros em purê de batata.
Eles se dispersaram, sumindo no bosque atrás da estação.
O vagaroso trem parou bufando na plataforma, e poucos passageiros desembarcaram. Os funcionários da estação estavam muito ocupados descarregando bagagens e não notaram os cinco americanos bombados subindo no último vagão. Os Holt estavam a bordo.
Eles começaram a vasculhar os vagões, avançando aos poucos pelo trem. O plano era não chamar atenção, o que era um pouco difícil por causa do tamanho king size dos Holt. Ombros e joelhos levaram esbarrões. Pés foram pisoteados. O trem se encheu de caras feias, resmungando xingamentos em várias línguas diferentes.
No terceiro vagão, o poderoso cotovelo de Hamilton derrubou o chapéu de uma mulher, fazendo-a soltar uma gaiola que estava no seu colo. A gaiola caiu no chão fazendo um estardalhaço enorme, e o periquito assustado lá dentro trinou e bateu as asas, agitado.
Isso fez Saladin, seis fileiras à frente, escalar o encosto do assento para investigar. E quando Amy olhou para ver o que estava incomodando o gato...
— Os Ho... Ho...
Situações de estresse sempre despertavam a gagueira dela.
— Os Holt — Dan sussurrou alarmado.
Por sorte, a dona do periquito se agachou para resgatar a gaiola, bloqueando o corredor. Dan rapidamente trancou Saladin e a partitura no compartimento de bagagem.
— Vai logo, tia! — Eisenhower resmungou, impaciente. Então ele avistou Dan.
O homenzarrão passou atropelando o periquito e a senhora. Dan agarrou a mão de Amy e fugiu para a outra ponta do vagão.
Nellie chutou uma mochila no corredor, bem na frente dos pés de Eisenhower. Ele, que corria, tropeçou e despencou de barriga no chão.
— Excusez-moi, monsieur — Nellie disse em francês perfeito, esticando o braço para ajudá-lo a se levantar.
Eisenhower afastou a mão dela com um tapa. Sem ter outra opção, ela sentou em cima dele, apoiando todo o peso entre os ombros do homem.
— O que você está fazendo, sua gringa maluca?
— Ela não é gringa, pai! — Sem fazer o menor esforço, Hamilton tirou a au pair de cima do pai e a jogou sobre o assento. — É a babá dos pirralhos Cahill!
— Eu vou gritar — ameaçou Nellie.
— Se você fizer isso, te jogo pela janela do trem — Hamilton prometeu.
Ele falou aquilo com tanta naturalidade que não havia a menor dúvida de que não só seria capaz, como estava disposto a fazer exatamente o que prometera.
Eisenhower a custo conseguiu ficar de pé.
— Fique de olho, Ham. Não desgrude dela nem por um segundo.
Ele saiu em disparada, liderando o rebanho dos Holt, predadores atrás das presas.
Amy e Dan já tinham atravessado a conexão até o vagão-restaurante. Os dois correram entre as mesas, desviando de pratos fumegantes de comida. Dan arriscou olhar de relance para trás. O rosto enfurecido de Eisenhower preenchia a janela da passagem.
Ele cutucou um garçom e apontou:
— Está vendo aquele cara? Ele disse que você colocou esteroides na sopa dele!
Amy agarrou o braço do irmão e o encarou com olhos fixos, assustados, chiando:
— Como você pode fazer piada com isso? Você sabe como eles são perigosos!
Os irmãos Cahill cruzaram a porta aos tropeços e correram para dentro do vagão seguinte.
— Sei muito bem! — disse Dan, nervoso. — Eu gostaria de caber no compartimento de bagagem junto com Saladin. Eles não têm segurança neste trem? A França deve ter alguma lei contra cinco trogloditas perseguindo duas crianças.
Amy estava apavorada.
— Não podemos falar com os seguranças! Não podemos correr o risco de alguém ficar perguntando quem somos e o que estamos fazendo. Lembre-se de que o Serviço Social ainda está nos procurando em Boston. — Ela abriu a porta do vagão seguinte e empurrou Dan na frente dela.
Era o vagão do correio. Havia centenas de sacos de lona empilhados por toda a parte, junto com pacotes e caixotes de todos os formatos e tamanhos.
— Amy... — Dan começou a empilhar caixas na frente da porta.
A irmã entendeu na hora. Juntos, eles construíram uma barricada de pacotes, enfiando um pernil defumado bem embaixo da maçaneta. Dan testou abrir a porta. Ela não se mexia.
Uma saraivada de gritos veio do vagão do lado. Os Holt estavam quase os alcançando.
Amy e Dan correram em disparada para a conexão seguinte, desviando de malotes de cartas. Amy entrou no corredor e tentou abrir a porta que dava para o próximo vagão.
Estava trancada.
Ela esmurrou o vidro riscado. Do outro lado havia uma sala exclusiva para funcionários, com sofás e beliches, tudo vazio. Ela bateu com mais força. Ninguém respondeu.
Eles estavam encurralados.
Do lado oposto do vagão, o rosto de granito de Eisenhower apareceu na janela. O trem inteiro pareceu tremer quando ele se jogou de ombro na porta.
— Eles são nossos primos. Nunca machucariam a gente de verdade... — Amy disse, sem muita certeza.
— Eles quase nos deixaram ser enterrados vivos em Paris! — Dan retrucou.
Do chão ele apanhou um bastão de hóquei embrulhado em papel pardo.
— Você não pode estar falando sério...!
Nesse instante, Eisenhower Holt deu uma carreira e pulou em cima da porta. Com um estrondo gigantesco, ela se abriu e bateu com tudo em Dan. O menino tombou feio e o bastão caiu no chão.
— Dan!
Cega de raiva, Amy apanhou o bastão e o quebrou na cabeça de Eisenhower. O brutamontes absorveu o golpe, cambaleou e despencou em cima de um malote de cartas.
Dan ficou sentado, sem acreditar.
— Nossa! Nocaute!
A vitória durou muito pouco. Os outros Holt invadiram o vagão.
Madison agarrou Amy pelo colarinho. Reagan endireitou Dan com um puxão.
Eles tinham sido pegos.

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