domingo, 6 de abril de 2014

Capítulo cinco

Depois do café da manhã, digo a Tobias que farei uma caminhada, mas, ao invés disso, eu sigo Marcus. Espero que ele vá até o dormitório de hóspedes, mas ele atravessa a área atrás da sala de jantar e caminha até o prédio de filtração da água. Eu hesito no último degrau. Quero mesmo fazer isso?
Subo as escadas e atravesso a porta que Marcus acabou de fechar atrás dele.
O prédio de filtração de água é pequeno, apenas um aposento com algumas máquinas enormes. Até onde eu sei, algumas das máquinas coletam a água suja do resto do complexo, algumas a purificam, outras a testam, e o último conjunto bombeia a água limpa de volta para o complexo. Os sistemas de tubulação estão todos enterrados, exceto um, que corre ao longo do chão para enviar água para a usina, perto da cerca. A usina fornece energia para toda a cidade, usando uma combinação de energia eólica, hidrelétrica e solar.
Marcus para próximo às maquinas que filtram água. Lá os tubos são transparentes. Eu consigo ver água marrom correndo pelo cano, desaparecendo dentro da máquina, e emergindo limpa. Nós dois assistimos a purificação acontecer, e me pergunto se ele está pensando o mesmo que eu: que seria bom se a vida funcionasse assim, tirando o sujo de nossas vidas e nos enviando de volta limpos para o mundo. Mas um pouco de sujeira está destinada a ficar.
Eu fico olhando para a parte de trás da cabeça de Marcus. Preciso fazer isso agora.
Agora.
— Eu ouvi você, aquele dia — deixo escapar.
Marcus vira a cabeça.
— O que está fazendo, Beatrice?
— Eu te segui até aqui — cruzo os braços sobre o peito. — Ouvi você conversando com Johanna sobre as motivações de Jeanine para atacar a Abnegação.
— A Audácia te ensinou a invadir a privacidade dos outros ou você aprendeu por si mesma?
— Eu sou curiosa por natureza. Não mude de assunto.
Um vinco surge na testa de Marcus, especialmente entre as sobrancelhas, e linhas profundas aparecem próximas à boca. Ele parece um homem que passou a maior parte da vida emburrado. Ele pode ter sido bonito quando mais jovem – talvez ainda seja, para alguém da idade dele, como Johanna – mas tudo o que vejo quando olho para ele são os olhos pretos da paisagem do medo do Tobias.
— Se você me ouviu conversar com Johanna, então sabe que não disse nem a ela sobre isso. Então o que te faz pensar que eu compartilharia essa informação com você?
Eu não tenho uma resposta de primeira. Mas então vem a mim.
— Meu pai — eu digo. — Meu pai está morto.
É a primeira vez que eu falo isso desde a vez que eu disse a Tobias, na viagem de trem, que meus pais morreram por mim. “Morreram” era só um fato para mim, separado da emoção. Mas “morto”, misturado com a agitação e o barulho daquela sala, parece um golpe de martelo no meu peito, e o monstro da dor desperta, arranhando meus olhos e garganta.
Forço-me a continuar.
— Ele talvez não tenha morrido pela informação à qual você esteja se referindo — eu digo. — Mas quero saber se era algo pelo qual ele arriscou a vida.
Marcus contrai a boca.
— Sim. Era.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Eu pisco.
— Bem — eu digo, quase sufocando — então o que é? É algo que vocês estavam tentando proteger? Ou roubar? Ou o quê?
— Era... — Marcus balança a cabeça. — Eu não irei dizer a você.
Eu dou um passo diante dele.
— Mas você quer de volta. E Jeanine está com ele.
Marcus é um bom mentiroso – ou ao menos, alguém que sabe guardar segredos. Ele não reage. Eu gostaria de vê-lo como Johanna o vê, como a Franqueza vê – eu gostaria de poder ler sua expressão. Ele poderia estar perto de dizer a verdade para mim. Se eu pressionar muito, talvez ele ceda.
— Eu poderia ajudá-lo.
O lábio superior de Marcus treme.
— Você não tem ideia de quão ridículo isso soa — ele cospe as palavras para mim. — Você pode ter conseguido parar a simulação de ataque, garota, mas foi sorte, não habilidade. Eu morreria em choque se você conseguir fazer algo útil de novo por um longo tempo.
Esse era o Marcus que Tobias conhecia. Aquele que sabia aonde atingir para causar um maior dano.
Meu corpo treme com a raiva.
— Tobias está certo sobre você. Você não é nada, a não ser um lixo arrogante e mentiroso.
— Ele disse isso? — Marcus ergue as sobrancelhas.
— Não. Ele não menciona você o suficiente para dizer algo assim. Eu descobri por mim mesma — aperto meus dentes. — Você é quase nada para ele, sabe. E conforme o tempo passa, você se torna cada vez menos.
Marcus não me responde. Ele se vira para trás até o purificador de água. Eu fico por um momento em meu triunfo, o som da água correndo combinando com a batida do meu coração em meus ouvidos. Então saio do prédio, e não é até eu estar do outro lado do campo que percebo que não ganhei. Marcus ganhou.
Qualquer que seja a verdade, eu terei que conseguir a informação em outro lugar, porque não irei perguntar a ele novamente.

+ + +

Naquela noite, sonho que estou em um campo e me deparo com um bando de corvos agrupados no chão. Quando chuto alguns para longe, percebo que eles estão empoleirados no topo de um homem, bicando suas roupas, que são do cinza da Abnegação. Sem aviso, eles voam, e percebo que esse homem é Will.
Então eu acordo.
Viro o rosto contra o travesseiro, e libero, ao invés do nome dele, um soluço que joga meu corpo contra o colchão. Sinto o monstro da tristeza de novo, preenchendo o espaço vazio onde meu coração e meu estômago costumavam estar.
Eu suspiro, pressionando as mãos no peito. Agora a coisa monstruosa está com as garras em volta do meu pescoço, tirando-me o ar. Eu giro e coloco minha cabeça entre meus joelhos, respirando até que o sentimento estrangulado me deixe.
Mesmo que o ar esteja quente, eu tremo. Saio da cama e rastejo pelo corredor em direção ao quarto do Tobias. Minhas pernas nuas quase brilham no escuro. A porta dele range quando eu abro, alto o suficiente para acordá-lo. Ele me encara por um segundo.
— Venha cá — ele diz, lento de sono.
Ele se afasta um pouco na cama para abrir espaço para mim.
Eu deveria ter pensado nisso direito. Durmo com uma camiseta longa que a Amizade me emprestou. Vai até um pouco depois do meu bumbum, e não pensei em vestir um short antes de vir até aqui. Tobias olha para as minhas pernas nuas, deixando meu rosto quente. Eu me deito, de frente para ele.
— Sonho ruim? — ele pergunta.
Concordo com a cabeça.
— O que aconteceu?
Eu balanço a cabeça. Não posso dizer a ele que estou tendo pesadelos sobre Will, ou eu teria que explicar o motivo. O que ele pensaria de mim, se soubesse o que eu fiz? Como ele olharia para mim?
Ele mantém a mão na minha bochecha, movendo o polegar preguiçosamente.
— Nós estamos bem, você sabe — ele diz. — Você e eu. Certo?
Meu peito dói, eu concordo com a cabeça.
— Nada mais está certo — seu sussurro faz cócegas na minha bochecha. — Mas nós estamos.
— Tobias.
Mas o que seja que eu estava prestes a dizer fica perdido na minha cabeça, e eu pressiono minha boca contra a dele, porque sei que beijá-lo irá me distrair de tudo o mais.
Ele me beija de volta. Sua mão começa na minha bochecha, e então escorrega pelo meu lado, cabendo na curva da minha cintura, passando pelo meu quadril, deslizando pela minha perna nua, me fazendo tremer. Eu me aproximo dele e jogo minha perna ao redor dele. Minha cabeça fervilha com o nervosismo, mas o resto de mim parece saber exatamente o que está fazendo, porque tudo pulsa no mesmo ritmo, tudo quer a mesma coisa: escapar de mim e se tornar parte dele.
Sua boca se move contra a minha, e sua mão desliza sob a bainha da minha camiseta, e eu não o paro, mesmo sabendo que eu deveria. Em vez disso, um leve suspiro me escapa, e o calor passa pelas minhas bochechas e me deixa envergonhada. Ou ele não escutou ou não se importou, porque ele pressiona a palma da mão na parte inferior das minhas costas, me trazendo para mais perto. Seus dedos se movem devagar pelas minhas costas, fazendo o contorno da minha espinha. Minha camiseta sobe pelo meu corpo, e eu não a abaixo, mesmo quando sinto um ar frio na barriga.
Ele beija meu pescoço, e eu agarro seu ombro para me apoiar, juntando sua camisa em meus punhos. A mão dele alcança o topo das minhas costas e se enrola em volta do meu pescoço. Minha camiseta está torcida em seu braço, e nossos beijos se tornam mais desesperados. Sei que minhas mãos estão tremendo de toda a energia nervosa dentro de mim, então aperto minha mão em seu ombro para que ele não perceba.
Então seus dedos alcançam o curativo em meu ombro, e um tiro de dor passa por mim. Não machucou muito, mas me traz de volta à realidade. Não posso ficar com ele daquele jeito, se uma das minhas razões por querer isso é para me distrair do luto.
Eu me inclino para trás e cuidadosamente abaixo minha camiseta para que me cubra novamente. Por um segundo nós apenas ficamos lá, nossa respiração pesada se misturando. Eu não quis chorar – agora não é um bom momento para chorar; não, preciso parar – mas eu não consigo afastar as lágrimas dos meus olhos, não importa o quanto eu pisque.
— Desculpe — eu digo.
Ele diz quase severamente:
— Não se desculpe.
Ele fasta as lágrimas das minhas bochechas.
Sei que sou como um pássaro, feita estreita e pequena como se para voar, construída com quadris estreitos, frágil. Mas quando ele me toca como se não pudesse afastar a mão, eu não desejo ser diferente.
— Eu não queria estar assim — digo, minha voz rachando. — Eu só me sinto tão... — eu balanço a cabeça.
— É errado — ele diz. — Não importa se seus pais estão em um lugar melhor – eles não estão aqui com você, e isso é errado, Tris. Não deveria ter acontecido. Não deveria ter acontecido a você. E qualquer um que diga o contrário é um mentiroso.
Um soluço passa pelo meu corpo de novo, e ele envolve seus braços em volta de mim tão forte que sinto dificuldade de respirar, mas não importa. Meu choro digno dá lugar à feiura completa, minha boca aberta e meu rosto contorcido e sons como se um animal estivesse morrendo em minha garganta. Se isso continuar, eu irei quebrar, e talvez assim seja melhor, talvez seja melhor me despedaçar e não suportar nada.
Ele não fala por um longo tempo, até que eu me acalme novamente.
— Durma — ele diz. — Eu irei expulsar os sonhos ruins se eles vierem até você.
— Com o quê?
— Minhas próprias mãos, obviamente.
Eu envolvo meu braço em torno de sua cintura e respiro fundo em seu ombro. Ele cheira a suor, ar fresco e menta, à pomada que ele usa às vezes para relaxar seus músculos doloridos. Ele cheira a segurança também, como caminhar a luz do dia no pomar e cafés da manhã em silêncio na sala de jantar. E nos momentos antes de cair no sono, eu quase esqueço sobre a nossa cidade em guerra e sobre os conflitos que irão nos encontrar, se não os encontrarmos antes.
Nos momentos antes de cair no sono, eu o ouço sussurrar:
— Eu amo você, Tris.
E talvez eu fosse dizer de volta, mas já estou muito longe.

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