domingo, 6 de abril de 2014

Capítulo quatro

— A biotecnologia está à nossa volta há um longo tempo, mas nem sempre foi muito eficaz — diz Caleb.
Ele começa a comer a borda de sua torrada – comeu primeiro o meio, como costumava fazer quando éramos pequenos.
Ele se senta na minha frente no refeitório, na mesa mais próxima das janelas. Esculpidas na madeira ao longo da borda da mesa estão as letras ligadas entre si por um coração, tão pequeno que eu quase não vejo. Corro os dedos sobre a inscrição enquanto Caleb fala.
— Mas os cientistas da Erudição desenvolveram esta solução mineral altamente eficaz um tempo atrás. Era melhor para as plantas do que adubo — diz ele. — É uma versão anterior do remédio que coloquei no seu ombro – ele acelera o crescimento de novas células.
Seus olhos estão selvagens com a nova informação. Nem todos da Erudição têm fome de poder e são desprovidos de consciência, como sua líder, Jeanine Matthews. Alguns deles são como Caleb: fascinados por tudo, insatisfeitos até descobrirem como as coisas funcionam.
Descanso meu queixo em minha mão e sorrio um pouco para ele. Ele parece otimista esta manhã. Estou feliz que ele tenha encontrado algo para distraí-lo da sua dor.
— Erudição e Amizade trabalham juntas, então? — pergunto.
— Mais perto do que a Erudição com qualquer outra facção. Você não se lembra do nosso livro de História das Facções? Ele as chamava de facções essenciais – sem elas, seríamos incapazes de sobreviver. Alguns dos textos da Erudição as chamavam de “facções enriquecedoras”. E uma das missões da Erudição como facção era tornar-se ambas – essencial e enriquecedora.
Isso não me cai bem, o quanto a nossa sociedade precisa da Erudição. Mas eles são essenciais – sem eles, haveria agricultura ineficiente, tratamentos médicos insuficientes, e nenhum avanço tecnológico.
Mordo minha maçã.
— Você não vai comer a sua torrada? — ele pergunta.
— O pão tem um gosto estranho. Pode comer, se quiser.
— Estou impressionado com como eles vivem aqui — ele diz enquanto pega a torrada do meu prato. — Eles são completamente autossuficientes. Têm sua própria fonte de energia, as suas próprias bombas de água, sua própria filtração de água, suas próprias fontes de alimentos... Eles são independentes.
— Independentes — digo — e não envolvidos. Deve ser bom.
é bom, pelo que eu vejo. As grandes janelas ao lado de nossa mesa deixam entrar tanta luz solar que eu sinto como se estivesse fora. Um grupo da Amizade senta em outra mesa, suas roupas brilhantes contra a pele bronzeada. Em mim o amarelo parece maçante.
— Então, pelo visto Amizade não era uma das facções para as quais você tinha aptidão para entrar — diz ele, sorrindo.
— Não — o grupo da Amizade sentado a poucas mesas de distância de nós explode em risadas. Eles nem sequer olharam na nossa direção desde que nos sentamos para comer. — Fale baixo, certo? Não é algo que eu desejo divulgar.
— Desculpe — ele responde, inclinando-se sobre a mesa, de modo que ele possa falar mais baixo. — Então, quais eram?
Eu me sinto ficar tensa.
— Por que você quer saber?
— Tris, eu sou seu irmão. Você pode me dizer qualquer coisa.
Seus olhos verdes nunca vacilam. Ele abandonou os óculos inúteis que usava como um membro da Erudição em favor de uma camisa cinza da Abnegação e seu corte de cabelo curto, que era sua marca registrada. Parece igual a alguns meses atrás, quando estávamos vivendo um de cada lado do corredor, ambos considerando trocar de facção, mas não corajosos o suficiente para dizer um ao outro. Não confiar nele o suficiente para falar foi um erro que não quero cometer de novo.
— Abnegação, Audácia e Erudição.
— Três facções? — Suas sobrancelhas levantam.
— Sim. Por quê?
— Parece apenas muito — ele diz. — Cada um de nós precisava escolher um foco de pesquisa na iniciação da Erudição, e o meu foi a simulação do teste de aptidão, então eu sei muito sobre a forma como ele foi programado. É realmente difícil para uma pessoa obter dois resultados – o programa na verdade não permite isso. Mas obter três... Eu nem tenho certeza de como isso é possível.
— Bem, a administradora do teste teve que alterá-lo. Ela o forçou a ir para aquela situação no ônibus para que pudesse descartar a Erudição – só que Erudição não foi descartada.
Caleb apoiou o queixo sobre o punho.
— Substituição do programa. Eu me pergunto como sua administradora do teste sabia fazer isso. Não é algo que é ensinado.
Eu franzo a testa. Tori era uma tatuadora e uma voluntária para o teste de aptidão – como ela sabia como alterar o programa do teste de aptidão? Se ela era boa com computadores, era só como um hobby, e duvido que um passatempo iria permitir que alguém mexesse com uma simulação da Erudição.
Então, lembro algo de uma das minhas conversas superficiais com ela. Meu irmão e eu nos transferimos da Erudição.
— Ela era da Erudição — eu digo. — Uma transferida de facção. Talvez seja assim.
— Talvez — ele concorda, batendo os dedos – da esquerda para a direita – contra sua bochecha. Nosso café da manhã fica quase esquecido entre nós. — O que isso quer dizer sobre a química do seu cérebro? Ou anatomia?
Eu rio um pouco.
— Eu não sei. Tudo o que sei é que estou sempre consciente durante as simulações, e às vezes posso me fazer acordar delas. Às vezes, elas nem sequer funcionam. Como a simulação de ataque.
— Como você se acorda delas? O que você faz?
— Eu... — Tento me lembrar. Sinto como se tivesse passado um longo tempo desde que estive em uma, mas foi há apenas algumas semanas. — É difícil dizer, porque as simulações da Audácia deveriam terminar quando nós nos acalmamos. Mas, em uma das minhas... Aquela em que Tobias descobriu o que eu era... Eu apenas fiz algo impossível. Eu quebrei vidro apenas colocando minha mão sobre ele.
A expressão de Caleb torna-se distante, como se estivesse olhando para um lugar ao longe. Nada parecido com o que eu acabei de descrever aconteceu com ele na simulação de prova de aptidão, eu sei. Então, talvez ele esteja perguntando como seria, ou como é possível. Minhas bochechas ficam mais quentes – ele está analisando meu cérebro como analisaria um computador ou uma máquina.
— Ei — eu digo. — Volte.
— Desculpe — ele fala, com foco em mim novamente. — É só...
— Fascinante. Sim, eu sei. Você sempre parece alguém que teve a vida sugada quando algo te fascina.
Ele ri.
— Podemos falar sobre outra coisa? Pode não ter quaisquer traidores da Erudição ou Audácia ao redor, mas ainda é estranho falar sobre isso em público.
— Tudo bem.
Antes que ele possa continuar, as portas do refeitório se abrem e um grupo da Abnegação entra. Eles usam roupas da Amizade, como eu, mas, também como eu, é óbvio de qual facção eles realmente são. Eles são silenciosos, mas não sombrios – sorriem para os membros da Amizade por quem passam, inclinando suas cabeças, alguns deles parando para trocar amenidades.
Susan se senta ao lado de Caleb com um pequeno sorriso. Seu cabelo está puxado para trás em seu nó de costume, mas o loiro brilha como ouro. Ela e Caleb sentam só um pouco mais perto do que amigos fariam, embora eles não se toquem. Ela sacode a cabeça para me cumprimentar.
— Sinto muito — diz ela. — Eu interrompi?
— Não — Caleb responde. — Como você está?
— Estou bem. E você?
Estou prestes a fugir da mesa, em vez de participar da cuidadosa e educada conversa da Abnegação, quando Tobias entra, parecendo incomodado. Ele deve ter trabalhado na cozinha esta manhã, como parte de nosso acordo com a Amizade. Eu tenho que trabalhar amanhã nas lavanderias.
— O que aconteceu? — pergunto quando ele se senta ao meu lado.
— Em seu entusiasmo para resolver conflitos, a Amizade tem aparentemente esquecido que intromissão cria mais conflitos — diz Tobias. — Se ficarmos aqui por muito tempo, eu vou dar um soco em alguém, e isso não vai ser bonito.
Caleb e Susan levantam as sobrancelhas para ele. Alguns da Amizade na mesa ao lado da nossa param de falar para olhar.
— Vocês me ouviram — Tobias fala para eles. Todos olham para longe.
— Como eu disse — falo, cobrindo a boca para esconder meu sorriso — o que aconteceu?
— Eu vou te dizer mais tarde.
Deve ter a ver com Marcus. Tobias não gosta do olhar duvidoso que a Abnegação lhe dá quando ele se refere à crueldade de Marcus, e Susan está sentada em frente a ele. Fecho as mãos no meu colo.
A Abnegação senta-se à nossa mesa, mas não ao nosso lado – uma distância respeitosa de dois assentos, embora a maior parte deles ainda acene para nós. Eles eram amigos da família, vizinhos e colegas de trabalho, e, antes, a sua presença teria me incentivado a ficar quieta e discreta. Agora me faz querer falar mais alto, estar o mais longe possível da minha antiga identidade e da dor que a acompanha.
Tobias fica completamente parado quando uma mão cai sobre meu ombro direito, enviando espinhos de dor pelo meu braço direito. Eu cerro os dentes para evitar gemer.
— Ela levou um tiro neste ombro — Tobias fala, sem olhar para o homem por trás de mim.
— Minhas desculpas — Marcus eleva sua mão e senta-se a minha esquerda. — Olá.
— O que você quer? — pergunto.
— Beatrice — Susan diz em voz baixa. — Não há necessidade...
— Susan, por favor — Caleb fala em voz baixa.
Ela aperta os lábios em uma linha e olha para longe.
Eu dou um olhar carregado para Marcus.
— Eu te fiz uma pergunta.
— Eu gostaria de discutir uma coisa com você — Marcus diz. Sua expressão é calma, mas ele está com raiva – a concisão em sua voz o trai. — Os outros Abnegados e eu discutimos e decidimos que não deveríamos ficar aqui. Acreditamos que, dada a inevitabilidade de mais conflito em nossa cidade, seria egoísta de nossa parte ficar aqui enquanto o que resta da nossa facção está dentro daquela cerca. Gostaríamos de solicitar que você nos escolte.
Eu não esperava isso. Por que Marcus quer voltar para a cidade? É realmente apenas uma decisão da Abnegação, ou ele pretende fazer algo lá – algo que tem a ver com as informações que a Abnegação tem?
Eu o encaro por alguns segundos e depois olho para Tobias. Ele relaxou um pouco, mas mantém os olhos centrados na mesa. Eu não sei por que ele age desta forma em torno de seu pai. Ninguém, nem mesmo Jeanine, faz Tobias se acovardar.
— O que você acha? — digo.
— Acho que nós deveríamos ir embora depois de amanhã — Tobias responde.
— Tudo bem. Obrigado — diz Marcus.
Ele se levanta e senta-se na outra extremidade da mesa com o resto da Abnegação.
Eu me aproximo de Tobias, sem ter certeza de como consolá-lo sem piorar as coisas. Pego minha maçã com a mão esquerda, e seguro sua mão sob a mesa com a minha direita.
Mas não posso manter meus olhos longe de Marcus. Eu quero saber mais sobre o que ele disse a Johanna. E, às vezes, se você quer a verdade, você tem que exigi-la.

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