sábado, 5 de abril de 2014

Capítulo dois

Abro os olhos, apavorada, minhas mãos agarrando os lençóis. Mas não estou correndo pelas ruas da cidade ou nos corredores da sede da Audácia. Estou em uma cama na sede da Amizade, e o cheiro de serragem está no ar.
Mudo de posição e estremeço com algo machucando minhas costas. Tateio atrás de mim, e os meus dedos envolvem a arma.
Por um momento vejo Will de pé diante de mim, nossas armas entre nós – sua mão, eu poderia ter atirado em sua mão, por que não atirei ali, por quê? – e eu quase grito seu nome.
Em seguida, ele se foi.
Saio da cama e levanto o colchão com uma mão, apoiando-o em meu joelho. Então enfio a arma por baixo e deixo o colchão enterrá-la. Uma vez que está fora da vista e não mais pressionando a minha pele, minha cabeça fica mais clara.
Agora que a adrenalina de ontem se foi, e tudo o que me fez dormir se esgotou, as dores profundas do tiro em meu ombro são intensas. Estou usando as mesmas roupas da noite passada. O canto do disco rígido espreita debaixo do meu travesseiro, onde o coloquei antes de adormecer. Nele estão os dados da simulação que controlava a Audácia, e o registro do que a Erudição fez. Ele é muito importante para mim, mas não posso deixá-lo aqui, então o agarro e encosto-o entre a cômoda e a parede. Parte de mim acha que seria uma boa ideia destruí-lo, mas sei que contém o único registro de morte de meus pais, por isso resolvi mantê-lo escondido.
Alguém bate na minha porta. Sento-me na beira da cama e tento alisar meu cabelo para baixo.
— Entre — digo.
A porta se abre, e Tobias fica no meio caminho, a porta dividindo seu corpo ao meio. Ele usa o mesmo jeans de ontem, mas uma camisa vermelha escura em vez da sua preta, provavelmente emprestada de alguém da Amizade. É uma cor estranha para ele, muito brilhante, mas quando ele inclina a cabeça para trás contra o batente da porta, vejo que faz o azul de seus olhos mais leve.
— A Amizade está se reunido em uma hora e meia — ele levanta suas sobrancelhas e acrescenta, com um toque de melodrama — para decidir o nosso destino.
Balanço a cabeça.
— Nunca pensei que meu destino estaria nas mãos de um grupo da Amizade.
— Eu também não. Ah, trouxe uma coisa — ele desenrosca a tampa de uma garrafa pequena e tem um conta-gotas cheio de líquido claro. — Medicamento para dor. Tome uma dose a cada seis horas.
— Obrigada — aperto o conta-gotas na parte de trás da minha garganta.
O remédio tem gosto de limão velho.
Ele prende um polegar em uma das alças do cinto e diz:
— Como você está, Beatrice?
— Você acabou de me chamar de Beatrice?
— Pensei em fazer uma tentativa — ele sorri. — Não é bom?
— Talvez apenas em ocasiões especiais. Cerimônias de iniciação, Cerimônias de Escolha... — Faço uma pausa.
Eu estava prestes a recitar alguns feriados mais, mas só a Abnegação os celebra. A Audácia tem seus próprios dias, assumo, mas não sei quais são. E de qualquer maneira, a ideia de comemorar algo agora era tão ridícula que não continuei.
— É um acordo — seu sorriso desaparece. — Como você está, Tris?
Não é uma pergunta estranha, depois do que nós passamos, mas eu fico tensa quando ele pergunta, preocupada que ele vai ver de alguma forma em minha mente. Eu não contei a ele sobre Will ainda. Eu quero, mas não sei como. Apenas o pensamento de dizer as palavras em voz alta me faz sentir tão pesada que eu poderia romper o piso.
— Eu estou... — balanço a cabeça algumas vezes. — Eu não sei, Quatro. Eu estou acordada. Eu...
Eu ainda estou balançando a cabeça. Ele desliza a mão sobre minha bochecha, um dedo ancorado atrás da minha orelha. Então inclina a cabeça para baixo e me beija, enviando uma dor quente pelo meu corpo. Envolvo minhas mãos em torno de seu braço, segurando-o lá o tempo que posso. Quando ele me toca, o sentimento oco no meu peito e estômago não é tão perceptível.
Eu não tenho nada para dizer. Posso apenas tentar esquecer – ele pode me ajudar a esquecer.
— Eu sei — diz ele. — Desculpe. Eu não deveria ter perguntado.
Por um momento, tudo o que posso pensar é: Como você poderia saber? Mas algo sobre sua expressão lembra-me que ele sabe alguma coisa sobre a perda. Ele perdeu sua mãe quando era jovem. Não me lembro de como ela morreu, só que nós fomos ao seu funeral.
De repente, eu me lembro dele segurando as cortinas em sua sala de estar, com cerca de nove anos de idade, vestindo cinza, seus olhos escuros fechados. A imagem é passageira, e pode ser a minha imaginação, não uma memória.
Ele me libera.
— Vou deixar você se arrumar.

+ + +

O banheiro feminino é duas portas abaixo. O piso é de ladrilho marrom escuro, e cada chuveiro tem paredes de madeira e uma cortina de plástico que o separa do corredor central. Uma placa na parede de trás diz LEMBRE-SE: PARA CONSERVAR RECURSOS, OS CHUVEIROS FUNCIONAM POR APENAS CINCO MINUTOS.
O fluxo de água é frio, então eu não gostaria de minutos extras mesmo que pudesse tê-los. Me lavo rapidamente com a mão esquerda, deixando a mão direita pendurada ao meu lado. O remédio para dor que Tobias me deu trabalhou rápido – a dor em meu ombro já se transformou em um pulsar dolorido.
Quando saio do chuveiro, uma pilha de roupas espera na minha cama. Contém um pouco de amarelo e vermelho, da Amizade, e alguns cinzas da Abnegação, cores que raramente vejo lado a lado. Se eu tivesse que adivinhar, diria que alguém da Abnegação colocou a pilha lá para mim. É algo que eles pensariam em fazer.
Puxo um par de calças vermelhas escuras feitas de brim – tão grandes que tenho que enrolá-las três vezes – e uma camisa cinza da Abnegação grande demais. As mangas vêm até os meus dedos, e eu as enrolo também. Dói quando movo a minha mão direita, então mantenho os movimentos pequenos e lentos.
Alguém bate na porta.
— Beatrice? — A voz suave é de Susan.
Eu abro a porta para ela. Ela carrega uma bandeja de comida, que deixa em cima da cama. Procuro em seu rosto por um sinal do que ela perdeu – seu pai, um líder da Abnegação, não sobreviveu ao ataque – mas vejo apenas a plácida determinação característica da minha velha facção.
— Sinto muito pelas roupas não caberem. Tenho certeza de que podemos encontrar outras melhores para você se a Amizade permitir que fiquemos.
— Elas estão boas — respondo. — Obrigada.
— Ouvi dizer que você foi baleada. Você precisa da minha ajuda com o cabelo? Ou seus sapatos?
Estou prestes a recusar, mas eu realmente preciso de ajuda.
— Sim, muito obrigada.
Sento-me em um banquinho na frente do espelho, e ela está atrás de mim, com os olhos devidamente treinados sobre a tarefa em mãos, em vez de seu reflexo. Eles não se erguem, nem mesmo por um instante, enquanto ela corre um pente em meu cabelo. E ela não pergunta sobre o meu ombro, como fui baleada, o que aconteceu quando saí da casa segura da Abnegação para parar a simulação. Tenho a sensação de que se eu fosse até seu núcleo, ela estaria com a Abnegação por todo o caminho.
— Você já viu Robert? — pergunto.
Seu irmão, Robert, escolheu Amizade quando escolhi Audácia, então ele está em algum lugar deste complexo. Gostaria de saber se o reencontro vai ser qualquer coisa como o de Caleb e eu.
— Brevemente, ontem à noite. Eu o deixei ficar de luto com sua facção enquanto fico com a minha. Mas é bom vê-lo novamente.
Ouço em seu tom que o assunto está encerrado.
— É uma pena que isso tenha acontecido agora — diz Susan. — Nossos líderes estavam prestes a fazer algo maravilhoso.
— Sério? O quê?
— Eu não sei — Susan cora. — Eu só sabia que algo estava acontecendo. Não tive a intenção de ser curiosa, apenas notei coisas.
— Eu não culpo você por ser curiosa, mesmo que tivesse sido.
Ela acena com a cabeça e continua penteando. Eu me pergunto o que os líderes da Abnegação, incluindo meu pai, estavam fazendo. E eu não posso deixar de me maravilhar com a suposição de Susan de que o que eles estavam fazendo era maravilhoso. Eu gostaria de poder acreditar nas pessoas de novo.
Se é que eu já acreditei.
— Os integrantes da Audácia usam o cabelo solto, certo? — ela pergunta.
— Às vezes. Você sabe como trançar?
Então, seus dedos hábeis dobram mechas do meu cabelo em uma trança que faz cócegas no meio da minha espinha. Olho para o meu reflexo duro até que ela termine. Agradeço a ela quando termina, e ela sai com um pequeno sorriso, fechando a porta atrás de si.
Eu continuo olhando, mas não me vejo. Ainda posso sentir os dedos dela roçando a minha nuca, tão parecidos com os dedos de minha mãe, na última manhã que passei com ela. Meus olhos se enchem de lágrimas, eu balanço para trás e para frente no banco, tentando empurrar a memória da minha mente. Tenho medo de que se eu começar a chorar, nunca vou parar, até murchar como uma passa.
Vejo um kit de costura na cômoda. Nele tem linhas de duas cores, vermelho e amarelo, e um par de tesouras.
Me sinto calma quando desfaço a trança no meu cabelo e penteio novamente. Parto meu cabelo no meio e certifico-me de que ele está reto e liso. Fecho a tesoura sobre o cabelo no meu queixo.
Como posso ter a mesma aparência quando ela se foi e tudo é diferente? Eu não posso.
Corto o mais reto que consigo, usando meu queixo como guia. A parte complicada é a parte de trás, que não posso ver muito bem, então faço o melhor que posso pelo toque em vez da visão. Mechas de cabelos loiro me cercam no chão, em um semicírculo.
Saio do quarto sem olhar para o meu reflexo novamente.

+ + +

Quando Tobias e Caleb vêm me buscar mais tarde, eles olham para mim como se eu não fosse a pessoa de ontem.
— Você cortou seu cabelo — Caleb comenta, com as sobrancelhas altas.
Notar as coisas em meio ao choque é muito Erudito dele. Seu cabelo está amassado do lado onde ele apoiou durante o sono, e seus olhos estão vermelhos.
— Sim. É... está muito quente para o cabelo longo.
— É justo.
Andamos pelo corredor juntos. O assoalho range sob nossos pés. Sinto falta da forma como os meus passos ecoavam no complexo da Audácia; sinto falta do ar frio subterrâneo. Mas, principalmente, sinto falta dos medos das últimas semanas, que viraram pequenos frente aos meus medos de agora.
Saímos do prédio. O ar exterior se comprime em torno de mim como um travesseiro querendo me sufocar. Cheira a verde, do mesmo jeito de uma folha quando você a rasga ao meio.
— Todo mundo sabe que você é filho de Marcus? — Caleb pergunta. — A Abnegação, eu quero dizer?
— Não que eu saiba — Tobias responde, olhando para Caleb. — E eu gostaria que você não mencionasse isso.
— Eu não preciso mencionar. Qualquer pessoa com olhos pode ver por si mesma — Caleb fez uma carranca para ele. — Quantos anos você tem, afinal?
— Dezoito.
— E você não acha que está velho demais para estar com a minha irmãzinha?
Tobias solta uma risada curta.
— Ela não é sua zinha nada.
— Parem com isso. Os dois — eu digo.
Uma multidão de pessoas de amarelo caminha à nossa frente, em direção a um prédio – um amplo edifício feito inteiramente de vidro. A luz do sol reflete nos painéis como um aperto em meus olhos. Protejo meu rosto com a mão e continuo caminhando.
As portas do edifício estão abertas. Em torno da borda da estufa circular, as plantas e as árvores crescem em tinas de água ou pequenas piscinas. Dezenas de ventiladores posicionados ao redor da sala servem apenas para soprar o ar quente ao redor, então eu já estou suando. Mas isso se apaga da minha mente quando a multidão diante de mim afina e vejo o resto da sala.
Em seu centro, cresce uma enorme árvore. Seus ramos se espalham sobre a maior parte da estufa, e suas raízes acima do solo formam uma densa rede de casca. Nos espaços entre as raízes não vejo sujeira, mas água e barras de metal que prendem as raízes no lugar. Eu não deveria estar surpresa. A Amizade passa a vida realizando façanhas da agricultura como esta, com a ajuda da tecnologia da Erudição.
De pé sobre um conjunto de raízes está Johanna Reyes, o cabelo caindo sobre a metade de seu rosto cheio de cicatrizes. Aprendi em História das Facções que a Amizade não reconhece nenhum líder oficial – eles votam em tudo, e o resultado é geralmente perto de unânime. São como muitas partes de um pensamento único, e Johanna é a sua porta-voz.
A Amizade se senta no chão, a maioria com as pernas cruzadas como um laço, formando grupos que lembram vagamente as raízes da árvore para mim. A Abnegação senta em filas apertadas, alguns metros à minha esquerda. Meus olhos procuram a multidão por alguns segundos antes de saber o que estou procurando: meus pais.
Eu engulo em seco e tento esquecer. Tobias toca a minhas costas, me guiando para a borda do espaço de reunião, por trás da Abnegação. Antes de sentar-se, ele coloca a boca próxima ao meu ouvido e diz:
— Gosto do seu cabelo assim.
Acho um pequeno sorriso para dar a ele, e inclino para ele quando me sento, meu braço contra o seu.
Johanna levanta as mãos e inclina a cabeça. Todas as conversas na sala cessam antes que eu possa respirar mais uma vez. Ao meu redor, a Amizade senta em silêncio, alguns com os olhos fechados, alguns com os lábios dizendo palavras que não posso ouvir, alguns olhando para um ponto distante.
Cada segundo irrita, até o momento que Johanna levanta a cabeça.
— Temos hoje diante de nós uma questão urgente — diz ela — que é: como vamos nos comportar neste momento de conflito como pessoas que buscam a paz?
Cada um da Amizade na sala se aproxima de uma pessoa próxima a ele ou ela e começa a falar.
— Como é que eles não fazem nada? — pergunto, à medida que os minutos de conversa passam.
— Eles não se importam com eficiência — diz Tobias. — Eles se preocupam com acordo. Observe.
Duas mulheres em vestidos amarelos a poucos metros de distância se levantam e se juntam a um trio de homens. Um jovem se desloca de modo que seu pequeno círculo torna-se um grande, com o grupo ao lado dele. Por toda a sala, as multidões menores crescem e se expandem, e menos e menos vozes enchem a sala, até ser apenas três ou quatro. Eu só posso ouvir pedaços do que eles dizem:
— Paz... Audácia... Erudição... casa segura... envolvimento.
— Isso é bizarro — eu digo.
— Eu acho que é bonito — ele responde.
Eu o encaro.
— O quê? — Ele ri um pouco. — Cada um tem um papel igual no governo; cada um se sente igualmente responsável. E isso os faz se importar; os faz serem bondosos. Eu acho que é bonito.
— Acho que é insustentável. Claro, funciona para a Amizade. Mas o que acontece quando nem todos querem dedilhar banjos e cultivar? O que acontece quando alguém faz algo terrível e falar sobre isso não pode resolver o problema?
Ele dá de ombros.
— Acho que nós vamos descobrir.
Eventualmente, alguém de cada um dos grandes grupos se levanta e se aproxima de Johanna, escolhendo o seu caminho com cuidado sobre as raízes da grande árvore. Espero que eles abordem o resto de nós, mas eles estão no círculo com Johanna, e outros porta-vozes e falam em voz baixa. Começo a ter a sensação de que nunca vou saber o que eles estão dizendo.
— Eles não vão nos deixar discutir com eles, vão?
— Duvido — ele concorda.
Estamos ferrados.
Quando todo mundo já falou a sua parte, sentam-se novamente, deixando Johanna sozinha no centro da sala. Ela vira seu corpo em direção a nós e cruza as mãos na frente dela. Para onde vamos quando nos disserem para sair? De volta para a cidade, onde nada é seguro?
— Nossa facção teve uma relação estreita com a Erudição por tanto tempo quanto qualquer um de nós pode lembrar. Precisamos uns dos outros para sobreviver, e sempre colaboramos um com o outro — diz Johanna. — Mas também tivemos uma forte relação com Abnegação no passado, e não achamos que é direito revogar a mão de Amizade quando ela por tanto tempo esteve estendida.
Sua voz é doce como mel, e ela se move como o mel também, lenta e cuidadosa. Eu enxugo o suor do meu cabelo com a palma da mão.
— Nós sentimos que a única maneira de preservar nossas relações com as duas facções é permanecermos imparciais e não envolvidos — continua ela. — Sua presença aqui, embora bem-vinda, complica isso.
Aí vem, eu penso.
— Chegamos à conclusão de que vamos estabelecer a sede da nossa facção como uma casa segura para os membros de todas as facções sob um conjunto de condições. A primeira é que nenhum armamento de qualquer tipo é permitido no complexo. A segunda é que, se qualquer conflito grave apareça, seja verbal ou físico, todas as partes envolvidas serão convidadas a ir embora. A terceira é que o conflito não pode ser discutido, ainda que em particular, dentro das instalações deste complexo. E a quarta é que todos que ficarem aqui devem contribuir para o bem-estar deste meio ambiente, trabalhando. Vamos relatar isso para Franqueza, Erudição e Audácia assim que pudermos.
Seu olhar para em Tobias e em mim, e permanece lá.
— Vocês são bem-vindos a ficarem aqui, somente se puderem cumprir as nossas regras — diz ela. — Essa é a nossa decisão.
Penso na arma que escondi debaixo do colchão, e a tensão entre eu e Peter, e Tobias e Marcus, e minha boca fica seca. Não sou boa em evitar conflitos.
— Nós não vamos ser capazes de permanecer por muito tempo — eu digo a Tobias sob a minha respiração.
Um momento atrás, ele ainda estava sorrindo levemente. Agora, os cantos da sua boca desapareceram em uma carranca.
— Não, nós não vamos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário