sábado, 5 de abril de 2014

Capítulo um

Eu acordo com o nome dele na minha boca.
Will.
Antes que eu abra meus olhos, eu o vejo desabar na calçada novamente.
Morto.
Pelas minhas mãos.
Tobias se agacha na minha frente, a mão no meu ombro esquerdo. O vagão treme ao longo dos trilhos, e Marcus, Peter e Caleb ficam perto da porta. Eu respiro fundo em uma tentativa de aliviar um pouco da pressão que está se formando no meu peito.
Uma hora atrás, nada do que aconteceu parecia real para mim. Agora parece.
Eu respiro mais uma vez e a pressão ainda está lá.
— Tris, vamos — diz Tobias, seus olhos procurando os meus. — Nós temos que ir.
Está muito escuro para ver onde estamos, mas se vamos sair, provavelmente estamos perto da cerca. Tobias me ajuda a me levantar e me guia em direção à porta.
Os outros pulam um por um: Peter é o primeiro, em seguida, Marcus, então Caleb. Eu pego a mão de Tobias. O vento se agita enquanto estamos de pé na borda da abertura do vagão, como uma mão empurrando-me para trás, em direção à segurança.
Mas nós nos lançamos na escuridão e caímos forte no chão. O impacto causa dor à ferida de bala no meu ombro. Mordo meu lábio para não gritar e procuro meu irmão.
— Tudo bem? — pergunto quando o vejo sentado na grama a alguns metros de distância, esfregando o joelho.
Ele acena com a cabeça. Eu o ouço fungar como se estivesse lutando contra as lágrimas, e tenho que virar.
Nós pousamos na grama perto da cerca, a vários metros de distância do caminho gasto que os caminhões da Amizade passam para entregar comida à cidade, e o portão que lhes permite sair – o portão que está fechado no momento, mantendo-nos presos aqui dentro. A cerca paira sobre nós, alta e flexível demais para subir, mas resistente demais para derrubar.
— Deveria haver guardas da Audácia aqui — diz Marcus. — Onde eles estão?
— Eles provavelmente estavam sob a simulação — Tobias fala — e estão agora... — Ele faz uma pausa. — Quem sabe onde, quem sabe o que estão fazendo?
Paramos a simulação – o peso do disco rígido no meu bolso de trás me faz lembrar – mas não paramos para ver o resultado. O que aconteceu com nossos amigos, nossos colegas, nossos líderes, nossas facções? Não há nenhuma maneira de saber.
Tobias se aproxima de uma pequena caixa de metal ao lado direito da porta e a abre, revelando um teclado.
— Vamos esperar que a Erudição não tenha mudado a combinação — diz enquanto digita uma série de números.
Ele para no oitavo, e o portão faz um clique e se abre.
— Como você sabe disso? — Caleb pergunta.
Sua voz soa grossa com emoção, tão grossa que estou surpresa que não o sufocou quando saiu.
— Eu trabalhei na sala de controle da Audácia, no monitoramento do sistema de segurança. Nós só alteramos os códigos duas vezes por ano — Tobias responde.
— Que sorte — diz Caleb. Ele dá a Tobias um olhar desconfiado.
— A sorte não tem nada a ver com isso — diz Tobias. — Só trabalhei lá porque eu queria ter certeza de que eu poderia sair.
Eu tremo. O jeito que ele fala sobre sair – é como se ele achasse que estamos presos. Eu nunca pensei sobre isso dessa forma antes, e agora parece tolo.
Caminhamos em passos pequenos, Peter embalando seu braço sangrento em seu peito – o braço em que atirei – e Marcus com a mão no ombro de Peter, mantendo-o estável. Caleb enxuga seu rosto a cada poucos segundos, e sei que ele está chorando, mas não sei como consolá-lo.
Em vez disso, assumo a liderança. Tobias está em silêncio ao meu lado, e embora ele não me toque, ele me estabiliza.

+ + +

Pontinhos de luz são o primeiro sinal de que estamos nos aproximando da sede da Amizade. Então quadrados de luz que se transformam em janelas brilhantes. Um conjunto de edifícios de madeira e vidro.
Antes que possamos alcançá-los, temos de andar através de um pomar. Meus pés afundam no chão, e acima de mim os ramos crescem e se misturam, formando uma espécie de túnel. Frutas escuras pairam entre as folhas, prontas para cair. O cheiro forte e doce de maçãs podres se mistura com o cheiro de terra molhada em meu nariz.
Quando nos aproximamos, Marcus deixa Peter de lado e vai em frente.
— Eu sei para onde ir — ele fala.
Ele nos conduz passando do primeiro edifício até o segundo à esquerda. Todos os prédios, exceto as estufas, são feitas da mesma madeira escura, sem pintura, áspera. Ouço o riso através de uma janela aberta. O contraste entre o riso e o silêncio de pedra dentro de mim é chocante.
Marcus abre uma das portas. Eu ficaria chocada com a falta de segurança se não estivéssemos na sede da Amizade. Eles muitas vezes se equilibram na linha entre a confiança e a estupidez.
Neste edifício, o único som é de nossos sapatos rangendo. Eu não ouço mais Caleb chorando, mas também, ele estava silencioso antes.
Marcus para diante de um espaço aberto onde Johanna Reyes, representante da Amizade, senta-se, olhando pela janela. Eu a reconheço porque é difícil esquecer o rosto de Johanna, se você já viu uma ou mil vezes. Uma cicatriz se estende em uma linha espessa de cima da sua sobrancelha direita até os lábios, deixando-a cega de um olho e dando-lhe a língua presa quando fala. Eu só a ouvi falar uma vez, mas me lembro. Ela teria sido uma mulher bonita se não fosse por essa cicatriz.
— Oh, graças a Deus — diz ela, quando vê Marcus.
Ela anda em direção a ele com os braços abertos. Em vez de abraçá-lo, só toca nos ombros, como se se lembrasse do desgosto da Abnegação pelo contato físico casual.
— Os outros membros de sua facção chegaram aqui há poucas horas, mas eles não tinham certeza se você tinha conseguido — ela revela.
Ela está se referindo ao grupo da Abnegação que estava com meu pai e Marcus na casa segura. Ela olha por cima do ombro de Marcus, primeiro para Tobias e Caleb, então para mim, depois para Peter.
— Oh nossa — diz ela, com os olhos persistentes no sangue manchando a camisa de Peter. — Vou chamar um médico. Posso conceder-lhe toda a permissão para passar a noite, mas amanhã, a nossa comunidade tem de decidir em conjunto. E... — ela olha para Tobias e eu — eles provavelmente não vão estar entusiasmados com a presença do Audácia em nosso complexo. Eu, claro, peço que entreguem todas as armas que vocês têm.
Pergunto-me, de repente, como ela sabe que sou da Audácia. Ainda estou usando uma camisa cinza. A camisa de meu pai.
Naquele momento, o cheiro dele, que é uma mistura igual de sabão e suor, sobe e enche meu nariz, enche minha cabeça inteira com ele. Aperto as mãos em punhos tão forte que minhas unhas cortam minha pele. Não aqui. Não aqui.
Tobias põe as mãos sobre sua arma, mas quando coloco as mãos para trás para tirar minha própria arma escondida, ele pega a minha mão, guiando-a para longe da arma. Então cobre seus dedos com os meus para encobrir o que fez.
Sei que é inteligente manter uma das nossas armas. Mas teria sido um alívio entregá-las.
— Meu nome é Johanna Reyes — diz ela, estendendo a mão para mim, e depois para Tobias.
Uma saudação da Audácia. Fico impressionada com a sua consciência dos costumes de outras facções. Sempre esqueço como a Amizade é até eu ver por mim mesma.
— Este é T... — começa Marcus, mas Tobias o interrompe.
— Meu nome é Quatro — diz ele. — Esta é Tris, Caleb e Peter.
Há alguns dias, Tobias era um nome que apenas eu conhecia, entre os Audaciosos; era o pedaço de si mesmo que ele me deu. Fora da sede Audácia, me lembro de por que ele escondeu o nome do mundo. É o que liga Marcus a ele.
— Bem-vindos ao complexo da Amizade — os olhos de Johanna fixam no meu rosto, e ela sorri torto. — Deixem-nos cuidar de você.

+ + +

Nós deixamos. Uma enfermeira da Amizade me dá uma pomada – desenvolvida pela Erudição – para acelerar a cicatrização para colocar no meu ombro, e então leva Peter à enfermaria do hospital para curar seu braço.
Johanna leva-nos para o refeitório, onde encontramos alguns da Abnegação que estavam na casa segura, com Caleb e meu pai. Susan está lá, e alguns de nossos antigos vizinhos nas fileiras de mesas de madeira. Eles nos cumprimentam – especialmente a Marcus – com lágrimas e sorrisos suprimidos.
Eu me apego ao braço de Tobias. Cedo sob o peso dos membros da facção dos meus pais, suas vidas, suas lágrimas.
Um membro da Abnegação coloca um copo de líquido fumegante debaixo do meu nariz e diz:
— Beba isso. Irá ajudá-la a dormir, como ajudou alguns dos outros a dormirem. Sem sonhos.
O líquido é rosa avermelhado, como morangos. Pego o copo e bebo rápido. Por alguns segundos, o calor do líquido me faz sentir como se estivesse cheia de algo novo. E quando dreno as últimas gotas do copo, sinto-me relaxar. Alguém me leva para o corredor, para um quarto com uma cama dentro. Isso é tudo.

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