Um dos sem facção começou um fogo para que pudéssemos aquecer nossa comida. Aqueles que querem comer sentam-se em um círculo ao redor da grande vasilha de metal que contém o fogo, primeiro aquecendo as latas, em seguida, passando colheres e garfos, em seguida, passando as latas em volta de modo que todo mundo pode ter uma mordida de tudo. Eu tento não pensar sobre quantas doenças poderiam se espalhar dessa forma quando mergulho minha colher em uma lata de sopa.
Edward cai no chão ao meu lado e pega a lata de sopa das minhas mãos.
— Então vocês eram da Abnegação, hein? — Ele coloca várias colheres de macarrão e um pedaço de cenoura em sua boca, e passa a lata para a mulher à sua esquerda.
— Éramos — eu digo. — Mas Tobias e eu, obviamente, fomos transferidos e... — De repente, ocorre-me que eu não devo contar a ninguém que Caleb ingressou na Erudição. — Caleb e Susan ainda são da Abnegação.
— E ele é seu irmão. Caleb — diz ele. — Você abandonou sua família para se tornar Audácia?
— Você soa como a Franqueza — eu digo irritada. — Você se importa de manter seus julgamentos para si mesmo?
Therese se inclina.
— Ele era da Erudição primeiro, na verdade. Não Franqueza.
— Sim, eu sei — eu digo — eu...
Ela me interrompe.
— Eu também. Entretanto, tive que sair.
— O que aconteceu?
— Eu não era inteligente o suficiente — ela encolhe os ombros e pega uma lata de feijão de Edward, mergulhando a colher nela. — Não obtive uma pontuação alta o suficiente no meu teste de inteligência. Então eles disseram: “Passe a vida inteira limpando os laboratórios de pesquisa, ou saia.” E eu saí.
Ela olha para baixo e lambe a colher. Eu pego o feijão dela e passo para Tobias, que está olhando fixamente para o fogo.
— São muitos de vocês vindos da Erudição? — pergunto.
Therese balança a cabeça.
— A maioria é da Audácia, na verdade — ela empurra a cabeça na direção de Edward, que faz uma carranca. — Depois Erudição, então Franqueza, então alguns da Amizade. Ninguém falha na iniciação da Abnegação, porém, por isso temos muito poucos, exceto aquele grupo que sobreviveu ao ataque da simulação e chegou a nós para refúgio.
— Acho que não deveria estar surpresa com a Audácia — eu digo.
— Bem, sim. Vocês têm uma das piores iniciações, e há toda a coisa de velhice.
— Coisa de velhice? — pergunto.
Eu olho para Tobias. Ele está ouvindo agora, e parece quase normal novamente, com os olhos pensativos e escuros à luz do fogo.
— Uma vez que os integrantes da Audácia chegam a certo nível de deterioração física — ele explica — eles são convidados a sair. De uma maneira ou de outra.
— Qual é a outra maneira? — Meu coração bate, como se ele já soubesse que eu não posso enfrentar a resposta sem um aviso.
— Vamos apenas dizer que, para alguns, a morte é preferível a ser sem facção.
— Essas pessoas são idiotas — diz Edward. — Prefiro ser sem facção que da Audácia.
— Que sorte que você acabou aqui, então — Tobias comenta friamente.
— Sorte? — Edward bufa. — É. Tenho tanta sorte, com um olho e tudo.
— Eu me lembro de ouvir rumores de que você provocou o ataque — Tobias fala.
— Sobre o que você está falando? — eu digo. — Ele estava ganhando, isso é tudo, e Peter estava com ciúmes, então ele só...
Eu vejo o sorriso no rosto de Edward e paro de falar. Talvez eu não saiba tudo sobre o que aconteceu durante a iniciação.
— Houve um incidente de incitação — diz Edward — em que Peter não saiu vitorioso. Mas certamente não garante uma faca de manteiga no olho.
— Não há argumentos aqui — diz Tobias. — Se isso faz você se sentir melhor, ele levou um tiro no braço a 30 centímetros de distância durante a simulação de ataque.
E parece fazer Edward se sentir melhor, porque seu sorriso esculpe uma profunda linha em seu rosto.
— Quem fez isso? — diz ele. — Você?
Tobias balança a cabeça.
— Tris fez.
— Bem feito — Edward fala.
Concordo com a cabeça, mas me sinto um pouco doente pelos parabéns por isso. Bem, não tão doente. Era Peter, afinal.
Eu fico olhando para as chamas envolvidas em torno dos fragmentos de madeira que é o combustível delas. Elas se movem e mudam, como meu pensamento. Eu me lembro da primeira vez que percebi que nunca vi um idoso na Audácia. E quando percebi que meu pai era velho demais para subir os caminhos da Caverna. Agora entendo mais sobre isso do que gostaria.
— Você sabe muito sobre como estão as coisas agora? — Tobias pergunta a Edward. — Será que toda a Audácia está com Erudição? Franqueza tem feito alguma coisa?
— Audácia está dividida ao meio — Edward conta, falando de boca cheia. — Metade na sede da Erudição, metade na sede da Franqueza. O que sobrou da Abnegação está com a gente. Nada tem acontecido ainda. Exceto por qualquer coisa que aconteceu com você, eu acho.
Tobias confirma. Eu me sinto um pouco aliviada ao saber que metade da Audácia, pelo menos, não é de traidores.
Como colherada após colherada até que meu estômago está cheio. Então Tobias procura paletes para dormir e cobertores, e acho um canto vazio para nós deitarmos. Quando ele se inclina para desatar os sapatos, eu vejo o símbolo da Amizade em suas costas, os ramos ondulando sobre sua coluna. Quando ele se endireita, dou a volta nas mantas e coloco meus braços em torno dele, acariciando a tatuagem com meus dedos.
Tobias fecha os olhos. Confio que o fogo baixo nos disfarce enquanto eu corro minha mão por suas costas, tocando cada tatuagem sem vê-la. Eu imagino o olho fixo da Erudição, a balança desequilibrada da Franqueza, as mãos entrelaçadas da Abnegação, e as chamas da Audácia. Com minha outra mão, encontro a trilha de fogo tatuada em sua costela. Eu sinto sua respiração pesada contra a minha bochecha.
— Eu gostaria que estivéssemos sozinhos — ele diz.
— Eu quase sempre desejo o mesmo.
+ + +
Eu caio no sono, levada pelo som de conversas distantes. Nestes dias, é mais fácil para eu adormecer quando há ruídos em torno de mim. Posso me concentrar no som em vez de qualquer pensamento que poderia entrar na minha cabeça em silêncio. Barulho e atividade são os refúgios dos enlutados e dos culpados.
Eu acordo quando o fogo é apenas um brilho, e apenas alguns poucos dos sem facção estão acordados. Leva-me alguns segundos para descobrir por que eu acordei: Ouvi Evelyn e a voz de Tobias, a poucos metros de mim. Eu fico quieta e espero que eles não descubram que estou acordada.
— Você vai ter que me dizer o que está acontecendo aqui, se espera que eu considere lhe ajudar — diz ele. — Embora eu ainda não esteja certo do por que você precisa de mim.
Eu vejo a sombra de Evelyn na parede, piscando como fogo. Ela é magra e forte, assim como Tobias. Seus dedos torcem em seu cabelo enquanto ela fala.
— O que você gostaria de saber, exatamente?
— Conte-me sobre o gráfico. E o mapa.
— Seu amigo estava correto em pensar que o mapa e o gráfico listavam todas as nossas casas seguras — diz ela. — Ele estava errado sobre as contagens populacionais... Os números não documentam todos os sem facção – somente alguns. E eu aposto que você pode adivinhar quem são eles.
— Eu não estou no clima para adivinhação.
Ela suspira.
— Os Divergentes. Estamos documentando os Divergentes.
— Como é que você sabe quem eles são?
— Antes da simulação de ataque, parte do esforço de ajuda da Abnegação envolvia testar os sem facção para uma determinada anomalia genética. Às vezes, esse teste envolvia a readministração do teste de aptidão. Algumas vezes era mais complicado do que isso. Mas eles nos explicaram que suspeitavam que nós poderíamos ter a maior população Divergente de qualquer grupo na cidade.
— Eu não entendo. Por quê?
— Por que os sem facção têm uma população alta de Divergentes? — Soa como se ela estivesse sorrindo. — Obviamente, aqueles que não podem limitar-se a uma forma particular de pensamento seriam mais propensos a deixar uma facção ou falhar na sua iniciação, certo?
— Não é isso o que eu estou perguntando. Quero saber por que você se importa com quantos Divergentes existem.
— A Erudição procura mão de obra. Eles a encontraram temporariamente na Audácia. Agora vão estar à procura de mais, e nós somos o lugar óbvio, a menos que descubram que temos mais Divergentes do que qualquer outro grupo. No caso de não saberem, eu quero saber quantas pessoas temos que são resistentes a simulações.
— Muito bem — ele confirma — mas por que a Abnegação estava tão preocupada em encontrar os Divergentes? Não era para ajudar Jeanine, era?
— Claro que não. Mas temo não saber. A Abnegação era relutante em fornecer informações que serviam apenas para aliviar a curiosidade. Disseram-nos tanto quanto acreditavam que deveríamos saber.
— Estranho — ele murmura.
— Talvez você deva perguntar ao seu pai sobre isso — ela fala. — Foi ele que me disse sobre você.
— Sobre mim — Tobias repete. — O que sobre mim?
— Que ele suspeitava que você fosse Divergente. Ele sempre estava observando. Observando o seu comportamento. Ele era muito atencioso com você. Foi por isso que... foi por isso que pensei que você estaria seguro com ele. Mais seguro com ele do que comigo.
Tobias não diz nada.
— Eu vejo agora que eu estava errada.
Ele ainda não diz nada.
— Eu queria... — ela começa.
— Não se atreva a tentar se desculpar — sua voz treme. — Isso não é algo que você pode curar com uma palavra ou duas e alguns abraços, ou algo assim.
— Tudo bem. Tudo bem. Eu não vou.
— Para que finalidade os sem facção estão se unindo? — ele pergunta. — O que você pretende fazer?
— Nós queremos usurpar a Erudição. Uma vez que nos livrarmos deles, não há muito que nos impeça de controlar o governo nós mesmos.
— É com isso que você espera que eu a ajude. Derrubar um governo corrupto e estabelecer algum tipo de tirania sem facção — ele bufa. — Sem chance.
— Nós não queremos ser tiranos — ela replica. — Queremos estabelecer uma nova sociedade. Uma sem facções.
Minha boca fica seca. Sem facções? Um mundo em que ninguém sabe quem é ou onde se encaixa? Eu não posso sequer imaginar isso. Imagino apenas caos e isolamento.
Tobias solta uma risada.
— Certo. Então, como é que você vai usurpar a Erudição?
— Às vezes, uma mudança drástica requer medidas drásticas — a sombra de Evelyn levanta um ombro. — Eu imagino que vai envolver um elevado grau de destruição.
Eu tremo ao ouvir a palavra destruição. Em algum lugar nas partes escuras de mim, eu imploro por destruição, enquanto for a Erudição sendo destruída. Mas a palavra traz um novo significado para mim, agora que já vi como ela pode ser: corpos vestidos de cinza jogados nos meios-fios e sobre as calçadas, os líderes da Abnegação mortos a tiro na frente de seus gramados, ao lado de suas caixas de correio. Pressiono meu rosto contra o palete onde estou dormindo, tão duro que machuca minha testa, só para forçar a memória para fora, fora, fora.
— Quanto a por que nós precisamos de você — Evelyn diz. — A fim de fazer isso, vamos precisar de ajuda da Audácia. Eles têm as armas e a experiência de combate. Você poderia preencher a lacuna entre nós e eles.
— Acha que eu sou importante para a Audácia? Porque eu não sou. Eu sou apenas alguém que não tem medo de muita coisa.
— O que eu estou sugerindo é que você se torne importante — ela levanta, sua sombra se estende do teto ao chão. — Tenho certeza de que você pode encontrar uma maneira, se quiser. Pense sobre isso.
Ela puxa seu cabelo encaracolado e amarra em um nó.
— A porta está sempre aberta.
Alguns minutos mais tarde, ele se deita ao meu lado novamente. Eu não queria admitir que estava escutando, mas quero dizer a ele que não confio em Evelyn, nos sem facção, ou qualquer pessoa que fala tão casualmente sobre a demolição de uma facção inteira.
Antes que eu possa reunir coragem de falar, sua respiração se abranda, e ele adormece.
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