Eles no cercam, mas não nos algemam, e nos levam até o elevador. Não importa quantas vezes eu pergunte por que estamos sendo presos, ninguém diz nada ou mesmo olha na nossa direção. Eventualmente, desisto e fico em silêncio, como Tobias.
Nós vamos até o terceiro andar, onde nos levam a uma pequena sala com um chão de mármore branco ao invés de mármore preto. Não há móveis, exceto um banco ao longo da parede do fundo. Toda facção tem que ter salas de segurança para manter aqueles que fazem confusão, mas nunca estive em uma antes.
A porta se fecha atrás de nós, e estamos sozinhos novamente.
Tobias se senta no banco, com a testa franzida. Fico andando de um lado para o outro na frente dele. Se ele tivesse ideia do motivo de estarmos aqui, ele me diria, então não pergunto. Ando cinco passos para frente e cinco passos para trás, no mesmo ritmo, esperando que me ajude a descobrir algo.
Se a Erudição não assumiu o controle da Franqueza – e Edward nos disse que não – por que a Franqueza nos prenderia? O que fizemos a eles?
Se a Erudição não assumiu o controle, o verdadeiro crime é estar do lado deles. Eu fiz algo que poderia ter sido interpretado como estar do lado da Erudição? Meus dentes mordem meu lábio inferior tão forte que estremeço. Sim, eu fiz. Atirei em Will. Atirei em vários outros integrantes da Audácia. Eles estavam sob o efeito da simulação, mas talvez a Franqueza não saiba disso ou não ache que essa seja uma boa razão.
— Você pode se acalmar, por favor? — Tobias diz. — Está me deixando nervoso.
— Essa sou eu me acalmando.
Ele se inclina para frente, descansando os cotovelos nos joelhos, e encara os seus tênis.
— A ferida no seu lábio discorda.
Eu me sento próxima a ele e abraço os joelhos em meu peito com um braço, meu braço direito largado do lado do meu corpo. Por um longo tempo ele não diz nada, e envolvo meu braço mais e mais em torno das minhas pernas. Eu sinto que, quanto menor eu for, mais segura estarei.
— Às vezes — ele diz — me preocupo por você não confiar em mim.
— Confio em você. Claro que confio em você. Por que pensaria o contrário?
— Parece que tem algo que você não está me contando. Eu te disse coisas... — ele balança a cabeça — que nunca disse a mais ninguém. Alguma coisa está acontecendo com você, e você não me disse ainda.
— Tem muita coisa acontecendo. Você sabe disso — respondo. — E de qualquer jeito, e você? Eu poderia dizer o mesmo.
Ele toca minha bochecha, seus dedos acariciando meu cabelo. Ignorando minha pergunta do mesmo jeito que ignorei a dele.
— Se isso é sobre seus pais — ele fala suavemente — me diga e eu acreditarei em você.
Os olhos dele deveriam estar cheios de apreensão, considerando onde estamos, mas eles ainda permanecem calmos e escuros. Eles me transportam para lugares familiares. Lugares seguros, onde confessar que eu atirei em um dos meus melhores amigos seria fácil, onde eu não teria medo do jeito que Tobias irá me olhar quando ele descobrir o que eu fiz.
Eu cubro a mão dele com a minha.
— Isso é tudo — eu digo fracamente.
— Tudo bem.
Ele passa a boca dele na minha. Culpa se espalha pelo meu estômago. A porta se abre. Algumas pessoas entram – dois da Franqueza com armas; um senhor de idade com pele escura da Franqueza; uma mulher da Audácia que não reconheço. E então: Jack Kang, representante da Franqueza.
Pelo padrão da maioria das facções, ele é um líder jovem – apenas trinta e nove anos de idade. Mas pelos padrões da Audácia, isso não é nada.
Eric se tornou um líder Audácia aos dezessete anos. Mas essa é provavelmente uma das razões para que as outras facções não levem nossas opiniões a sério.
Jack é bonito, também, com cabelo curto e preto, olhos puxados como os de Tori, e bochechas altas. Apesar da sua boa aparência, ele não sabe ser charmoso, provavelmente por que é da Franqueza, e eles acham o charme uma ilusão. Confio nele para nos dizer o que está acontecendo sem perder tempo com gentilezas. Isso já é algo.
— Eles me disseram que vocês pareciam confusos sobre por que estão sendo presos — ele diz. A voz dele era profunda, mas estranhamente plana, como se não pudesse criar um eco na beira de uma caverna vazia. — Para mim isso significa ou que vocês foram falsamente acusados ou são muitos bons em fingir. A única...
— Do que estamos sendo acusados? — eu o interrompo.
— Ele é acusado de crimes contra a humanidade. Você está sendo acusada de ser cúmplice dele.
— Crimes contra a humanidade? — Tobias finalmente parece bravo. Ele dá a Jack um olhar aborrecido. — O quê?
— Nós vimos a filmagem do ataque. Você estava comandando a simulação de ataque — diz Jack.
— Como vocês puderam ver a filmagem? Nós pegamos os arquivos — Tobias replica.
— Vocês pegaram uma cópia do arquivo. Toda a filmagem do complexo da Audácia gravada durante o ataque também foi enviada a outros computadores pela cidade — diz Jack. — Tudo o que vimos foi você comandando a simulação e ela levando murros até quase morrer antes de você desistir. Então você parou, tiveram uma reconciliação de apaixonados, e roubaram o disco rígido juntos. Uma razão possível é porque a simulação havia acabado e vocês não queriam que colocássemos as mãos nele.
Eu quase rio. Meu grande ato heroico, a única coisa importante que fiz, e eles pensam que eu trabalhava com a Erudição quando acontece.
— A simulação não havia terminado — eu digo. — Nós a desligamos, você...
Jack levanta a mão.
— Não estou interessado no que você tem a dizer agora. A verdade virá quando estiverem sendo interrogados sobre a influência do soro da verdade.
Christina me contou sobre o soro da verdade uma vez. Ela disse que a parte mais difícil da iniciação da Franqueza era estar sob o soro da verdade e responder perguntas pessoais na frente de todos da facção. Não preciso procurar em mim mesma meus segredos mais profundos para saber que o soro da verdade é a última coisa que quero em meu corpo.
— Soro da verdade? — eu balanço minha cabeça. — Não. Sem chance.
— Há algo que você queira esconder? — Jack pergunta, erguendo as sobrancelhas.
Eu queria dizer a ele que qualquer um com um pouco de dignidade gostaria de manter coisas para si mesmo, mas não queria despertar mais suspeitas. Então balanço minha cabeça.
— Tudo certo, então — ele checa o relógio. — Agora é meio-dia. O interrogatório será às sete horas. Não se preocupem em se preparar para ele. Você não pode esconder informações enquanto está sob influência do soro da verdade.
Ele se vira e caminha para sair da sala.
— Que homem agradável — Tobias diz.
+ + +
Um grupo de integrantes da Audácia armado me escolta até o banheiro no começo da tarde. Eu demoro, deixando minhas mãos ficarem vermelhas na água quente e encarando meu reflexo. Quando eu era da Abnegação e era proibida de olhar em espelhos, costumava pensar que muito poderia mudar na aparência de uma pessoa em três meses. Mas só levou alguns dias para me mudar dessa vez.
Eu pareço mais velha. Talvez seja o cabelo curto ou talvez porque eu use tudo o que aconteceu como uma máscara. De qualquer jeito, eu sempre pensei que ficaria feliz quando parasse de parecer uma criança. Mas tudo que sinto é um nó na garganta. Não sou mais a filha que meus pais conheciam. Eles nunca me conhecerão como sou agora.
Eu me viro para longe do espelho e abro a porta para o corredor com minhas mãos.
Quando os integrantes da Audácia me deixa na sala de espera, eu fico perto da porta. Tobias se parece como quando eu o encontrei pela primeira vez – camiseta preta, cabelo curto, expressão séria. Vê-lo costumava me encher de uma excitação nervosa. Lembro quando agarrei a mão dele fora da sala de treinamento, só por alguns segundos, e quando nos sentamos juntos nas pedras perto do abismo, e sinto uma pontada de saudade de como as coisas costumavam ser.
— Com fome? — ele pergunta.
Ele me oferece um sanduíche de um prato próximo a ele.
Eu pego e me sento, inclinando a cabeça em seu ombro. Tudo que nos sobra é esperar, então é o que fazemos. Nós comemos até que a comida acabe. Sentamos até ficar desconfortável. Então nos deitamos próximos um do outro no chão, ombros se tocando, encarando o mesmo pedaço de teto branco.
— O que você tem medo de dizer? — ele pergunta.
— Nada. Tudo. Não quero reviver nada.
Ele acena com a cabeça. Fecho meus olhos e finjo dormir. Não há relógio na sala, então não posso contar os minutos que faltam até o interrogatório. Tempo talvez não exista nesse lugar, exceto a sensação de pressão contra mim enquanto as sete horas inevitavelmente se aproximam, empurrando-me para o piso.
Talvez o tempo não parecesse tão pesado se eu não tivesse essa culpa – a culpa de saber a verdade e a guardar onde ninguém pode vê-la, nem Tobias. Talvez eu não devesse ter medo de dizer algo, porque honestamente me faria mais leve.
Eu devo ter adormecido eventualmente, porque acordo assustada ao som da porta se abrindo. Alguns integrantes da Audácia caminham até nós, e um deles diz meu nome. Christina abre caminho entre eles e se joga em meus braços. Seus dedos se afundam na ferida do meu ombro, e eu grito.
— Levei um tiro — eu digo. — Ombro.
— Oh Deus! — Ela me solta. — Desculpe, Tris.
Ela não parece com a Christina que eu lembro. O cabelo dela está mais curto, como o de um garoto, e a pele dela está meio cinzenta ao invés do bronzeado comum. Ela sorri para mim, mas o sorriso dela não viaja até os olhos, que parecem cansados. Tento sorrir de volta, mas eu também estou nervosa. Christina estará lá, no meu interrogatório. Ela vai ouvir o que fiz com Will. Nunca vai me perdoar.
A não ser que eu lute contra o soro, engula a verdade – se eu puder.
Mas é o que eu realmente quero? Deixar isso apodrecer dentro de mim para sempre?
— Você está bem? Ouvi que você estava aqui então pedi para vir acompanhá-la — ela diz enquanto saímos da sala de espera. — Sei que você não fez isso. Você não é uma traidora.
— Estou bem. E obrigada. Como você está?
— Ah, eu... — A voz dela vai sumindo, e ela morde o lábio. — Ninguém te disse... Quero dizer, talvez agora não seja o momento, mas...
— O quê? O que é?
— Hum... Will morreu no ataque — ela fala.
Ela me dá um olhar preocupado, e espera. Espera pelo quê?
Ah. Eu não deveria saber que Will está morto. Eu poderia fingir estar emocionada, mas provavelmente não seria tão convincente. É melhor admitir que eu já sabia. Mas não sei como explicar sem dizer tudo a ela.
De repente me sinto enjoada. Estou realmente avaliando a melhor forma de enganar minha amiga?
— Eu sei — eu digo. — O vi nos monitores quando estava na sala de controle. Sinto muito, Christina.
— Ah — ela concorda. — Bem, eu estou… Feliz que você já soubesse. Eu realmente não queria te dar essa notícia em um corredor.
Uma risada curta. Um flash de um sorriso. Nenhum deles como costumava ser.
Entramos em um elevador. Posso sentir Tobias me encarando – ele sabe que eu não vi Will nos monitores, e ele não sabia que Will estava morto. Eu olho para frente e finjo que os olhos dele não estão me deixando em fogo.
— Não se preocupe com o soro — ela diz. — É fácil. Você quase não sabe o que está acontecendo quando está sob ele. É só quando você ressurge que sabe o que disse. Eu o tomei quando era criança. É comum para a Franqueza.
Os outros integrantes da Audácia no elevador trocam olhares. Em circunstâncias normais, alguém provavelmente iria adverti-la por falar de sua antiga facção, mas estas não eram circunstâncias normais. Em nenhum outro momento da vida de Christina ela iria acompanhar sua melhor amiga, agora uma suspeita de traição, para um interrogatório público.
— Todos estão bem? — pergunto. — Uriah, Lynn, Marlene?
— Todos aqui — ela diz. — Exceto o irmão de Uriah, Zeke, que está com os outros Audácia.
— O quê?
Zeke, que garantiu a segurança das minhas cordas na tirolesa, um traidor?
O elevador para no último andar, e os outros saem.
— Eu sei — ela diz. — Ninguém esperava.
Ela pega meu braço e me puxa para as portas. Caminha até um corredor de mármore preto – deve ser fácil se perder na sede da Franqueza, já que tudo parece igual. Nós vamos por outro corredor e passamos por portas duplas.
Do lado de fora, o Mart Impiedoso é um bloco atarracado com uma seção no centro. Do lado de dentro, aquela seção são três salas com espaços vazios na parede ao invés de janelas. Eu vejo o céu escuro sobre mim, sem estrelas.
Aqui o chão é de mármore branco, com um símbolo preto da Franqueza no centro da sala, e as paredes são iluminadas com linhas escuras e luzes amarelas, então a sala inteira brilha. Toda voz ecoa.
A maioria da Franqueza e os remanescentes da Audácia estão juntos. Alguns deles estão sentados em bancos que ficam no canto da sala em volta do símbolo da Franqueza. No centro do símbolo, entre as balanças desequilibradas, estão duas cadeiras vazias.
Tobias alcança minha mão. Eu entrelaço meus dedos nos dele.
Nossos guardas da Audácia nos levam até o centro da sala, onde somos recebidos com, no melhor, murmúrios, e, no pior, vaias. Vejo Jack Kang na primeira fila dos bancos diferenciados.
Um senhor, um homem de pele escura avança, uma caixa escura nas mãos.
— Meu nome é Niles — ele diz. — Eu serei seu interrogador. Você... — Ele aponta para Tobias. — Você irá primeiro. Então se puder, por favor, dar um passo a frente...
Tobias aperta minha mão e então a solta, e para em frente a Christina no canto do símbolo da Franqueza. O ar na sala está quente – úmido, ar de verão, ar do pôr do sol – mas eu sinto frio.
Niles abre a caixa preta. Contém duas seringas, uma para Tobias e uma para mim. Ele também pega um antisséptico de limpeza de seu bolso e oferece a Tobias. Não nos preocupamos com esse tipo de coisa na Audácia.
— A injeção é no seu pescoço — Niles diz.
Tudo o que eu ouço, enquanto Tobias aplica o antisséptico em sua pele, é o vento. Niles dá um passo à frente e afunda a agulha no pescoço de Tobias, apertando até que o líquido turvo azulado entre em suas veias. A última vez que vi alguém injetar algo em Tobias foi Jeanine colocando-o sob uma nova simulação, uma que afetava até mesmo os Divergentes – ou assim ela acreditou. Eu pensei naquela vez, que o havia perdido para sempre.
Eu tremo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário