— Eu farei a você uma série de perguntas simples para que você se acostume ao soro até que faça efeito — diz Niles. — Agora. Qual é o seu nome?
Tobias se senta com os ombros curvados e a cabeça baixa, como se o corpo dele fosse muito pesado. Ele faz careta e se contorce na cadeira, e entre dentes diz:
— Quatro.
Talvez não seja possível mentir sob o soro da verdade, mas escolher qual versão da verdade contar: Quatro é o nome dele, mas não é o nome dele.
— Esse é um apelido — Niles diz. — Qual é seu verdadeiro nome?
— Tobias — ele diz.
Christina me cutuca.
— Você sabia disso?
Eu concordo com a cabeça.
— Qual o nome dos seus pais, Tobias?
Tobias abre a boca para responder, e então trava o queixo como se para impedir as palavras de saírem.
— Por que isso é relevante? — Tobias pergunta.
Os da Franqueza ao meu redor murmuram uns para os outros, alguns fazem cara feia. Eu levanto minha sobrancelha para Christina.
— É extremamente difícil não responder imediatamente as perguntas sob o soro da verdade — ela diz. — Significa que ele tem uma força de vontade muito grande. E algo a esconder.
— Talvez não tenha sido relevante antes, Tobias — Niles responde — mas é, agora que você resistiu responder à pergunta. Os nomes de seus pais, por favor.
Tobias fecha os olhos.
— Evelyn e Marcus Eaton.
Sobrenomes são só adicionais de identificação, úteis somente para prevenir confusão em arquivos oficiais. Quando casamos, um cônjuge tem que pegar o sobrenome do outro, ou ambos tem que escolher um novo. Ainda assim, quando carregamos nossos nomes de família para a facção, raramente os mencionamos.
Mas todos reconhecem o sobrenome de Marcus. Eu posso dizer pelo tumulto que cresce na sala depois que Tobias falou. Todos da Franqueza sabem que Marcus é o oficial do governo mais influente, e alguns deles devem ter lido o artigo de Jeanine sobre sua crueldade com o filho. Foi uma das poucas coisas que ela disse que era verdade. E agora todos sabem que Tobias é o filho dele.
Tobias Eaton é um nome poderoso.
Niles espera em silêncio, então continua.
— Então você mudou de facção, não?
— Sim.
— Você se transferiu da Abnegação para Audácia?
— Sim — estala Tobias. — Não é óbvio?
Eu mordo meu lábio. Ele deveria se acalmar; está falando demais. Quanto mais relutante ele estiver ao responder uma questão, mais determinado Niles estará para ouvir a resposta.
— Um dos propósitos desse interrogatório é determinar suas lealdades — diz Niles — então eu devo perguntar: Por que você se transferiu?
Tobias olha para Niles, e mantém a boca fechada. Segundos se passam em completo silêncio. Quanto mais ele tenta resistir ao soro, mais difícil parece ficar para ele: cor preenche suas bochechas, e ele respira rapidamente. Meu peito dói por ele. Os detalhes de sua infância deveriam ficar com ele, se isso é o que ele quer. A Franqueza é cruel por forçá-lo a falar, por tomar a liberdade dele.
— Isso é horrível — eu digo ardentemente a Christina. — Errado.
— O quê? — ela diz. — É uma pergunta simples.
Eu balanço a cabeça.
— Você não entende.
Christina sorri um pouco para mim.
— Você realmente se importa com ele.
Eu estou muito ocupada esperando Tobias responder.
Niles diz:
— Eu vou perguntar de novo. Por que você se transferiu para Audácia, Tobias?
— Para me proteger — Tobias responde. — Eu me transferi para me proteger.
— Se proteger de quê?
— Do meu pai.
Todas as conversas na sala param, e o silêncio que paira é pior que a conversa anterior. Eu esperei que Niles continuasse sondando, mas ele não faz isso.
— Obrigado por sua honestidade — Niles diz. A Franqueza repete a frase baixinho. Em todo o lugar sobre a sala estão essas palavras, “Obrigado por sua honestidade,” em diferentes volumes e tons, e minha raiva começa a se dissolver. As palavras sussurradas parecem convidar Tobias a abraçar e a descartar seu pior segredo.
Não é crueldade, talvez, mas um desejo de ser compreendido, que os motiva. Isso não me deixa nem um pouco menos receosa de ficar sob o soro da verdade.
— Sua fidelidade é com sua atual facção, Tobias? — Niles diz.
— Minha fidelidade é com qualquer um que não suporte o ataque à Abnegação — ele diz.
— Falando nisso — Niles continua — acho que deveríamos focar no que aconteceu aquele dia. Do que você se lembra de quando estava sob o efeito da simulação?
— Eu não estava sob o efeito da simulação, a princípio — diz Tobias. — Não funcionou.
Niles ri um pouco.
— O que você quer dizer, não funcionou?
— Uma das características que definem os Divergentes é que as mentes deles são resistentes às simulações — Tobias responde. — E eu sou Divergente. Então não, não funcionou.
Mais murmúrios. Christina me cutuca novamente.
— Você também é? — ela pergunta, perto do meu ouvido então ela pode falar baixo. — Esse é o motivo de você estar acordada?
Eu olho para ela. Eu gastei os últimos meses evitando a palavra Divergente, horrorizada de que alguém pudesse descobrir quem eu sou. Mas não serei mais capaz de esconder. Concordo com a cabeça.
É como se os olhos dela não coubessem mais nas órbitas; é como eles estavam grandes. Tenho problemas em identificar a expressão dela. É choque? Medo? Admiração?
— Você sabe o que significa? — pergunto.
— Eu ouvi sobre isso quando era criança — ela diz um sussurro reverente.
Definitivamente admiração.
— Como uma história de fantasia — ela continua. — “Existem pessoas com poderes especiais entre nós!” Estilo isso.
— Bem, não é fantasia, e não é grande coisa. É como a paisagem do medo – você está consciente enquanto está nela, e consegue manipulá-la. Só que comigo, é assim em toda simulação.
— Mas Tris — ela diz, colocando a mão dela no meu cotovelo. — Isso é impossível.
No meio da sala, Niles levanta a mão e tenta silenciar a multidão, mas tem muitos sussurros – alguns hostis, alguns com medo, e alguns admirados, como Christina. Finalmente Niles para e grita:
— Se vocês não ficarem quietos, serão chamados para se retirar!
Todos se aquietam. Niles se senta.
— Agora, quando você diz resistente a simulações, o que significa?
— Usualmente, quer dizer que estamos conscientes durante simulações — diz Tobias.
Ele parece se dar melhor com o soro da verdade enquanto responde questões concretas ao invés das pessoais, mesmo que sua postura caída e seus olhos alertas digam outra coisa.
— Mas a simulação do ataque foi diferente, usando um tipo diferente de soro, um com transmissores de longa distância. Evidentemente, os transmissores de longa distância não funcionaram nos Divergentes, porque eu acordei em minha própria mente naquela manhã.
— Você diz que não estava na simulação a princípio. Pode explicar o que quer dizer com isso?
— Quero dizer que fui descoberto e levado até Jeanine, e ela injetou em mim uma versão do soro que era específica para os Divergentes. Eu estava consciente durante aquela simulação, mas não consegui fazer nada.
— As filmagens da sede Audácia mostram você comandando a simulação — Niles diz, sombrio. — Como, exatamente, você explica isso?
— Quando uma simulação está acontecendo, seus olhos ainda veem e processam o mundo real, mas seu cérebro não o compreende. Em algum nível, porém, seu cérebro ainda sabe o que você está vendo e onde está. A natureza dessa nova simulação era gravar minhas respostas emocionais a estímulos externos — Tobias diz, fechando os olhos por um segundo — e responder alterando a aparência desse estímulo. A simulação fez meus inimigos parecerem amigos, meus amigos parecerem inimigos. Pensei que estava desligando a simulação. Na realidade, eu estava recebendo instruções sobre como manter a simulação ativa.
Christina concorda enquanto ele fala. Me sinto mais calma quando vejo que a maioria da multidão está fazendo o mesmo. Esse é o benefício do soro da verdade, percebo. O testemunho de Tobias é irrefutável desse jeito.
— Nós vimos a filmagem do que aconteceu com você na sala de controle — diz Niles — mas é confuso. Por favor, descreva para nós.
— Alguém entrou na sala, e pensei que fosse um soldado da Audácia tentando me impedir de destruir a simulação. Eu estava lutando com ela, e... — Tobias faz uma careta — lutando... e então ela parou, e fiquei confuso. Mesmo que eu estivesse acordado, ainda ficaria confuso. Por que ela iria se render? Por que ela apenas não me matou?
Os olhos dele procuraram pela multidão até me encontrarem. Meu coração parece estar em minha boca; parece estar em minhas bochechas.
— Eu ainda não entendo — ele diz suavemente — como ela soube que funcionaria.
Vidas nas pontas dos meus dedos.
— Acho que minhas emoções conflitantes confundiram a simulação — ele diz. — E então eu ouvi a voz dela. De algum modo, ela me fez capaz de lutar contra a simulação.
Meus olhos queimam. Tento não pensar naquele momento, quando pensei que ele estava perdido para mim e que logo eu estaria morta, quando tudo o que eu queria era sentir o coração dele bater. Tento não pensar nisso agora; eu pisco as lágrimas dos meus olhos.
— Eu a reconheci, finalmente — ele continua. — Nós voltamos até a sala de controle e paramos a simulação.
— Qual é o nome dessa pessoa?
— Tris — ele diz. — Beatrice Prior, quero dizer.
— Você a conhecia antes disso acontecer?
— Sim.
— Como você a conheceu?
— Eu fui o instrutor dela. Agora estamos juntos.
— Eu tenho uma última pergunta — Niles fala. — Entre a Franqueza, antes de uma pessoa ser aceita na comunidade, ela tem que se expor completamente. Dadas as circunstâncias, nós pedimos o mesmo de você. Então, Tobias Eaton: qual é o seu maior arrependimento?
Eu olho para ele, do tênis deles até seus dedos longos até suas sobrancelhas retas.
— Me arrependo... — Tobias inclina a cabeça, e suspira. — Me arrependo da minha escolha.
— Qual escolha?
— Audácia — ele diz. — Eu nasci para a Abnegação. Eu planejava deixar Audácia, e me tornar um sem facção. Mas então eu conheci ela, e... senti que talvez eu pudesse fazer algo mais da minha decisão.
Ela.
Por um momento, é como se eu estivesse olhando para uma pessoa diferente, dentro da pele de Tobias, uma pessoa cuja vida não é tão simples quanto eu achava. Ele queria deixar Audácia, mas ficou por minha causa. Ele nunca me disse isso.
— Escolher Audácia para escapar do meu pai foi um ato covarde — ele diz. — Eu me arrependo dessa covardia. Significa que não sou digno da minha facção. Sempre vou me arrepender disso.
Espero que os integrantes da Audácia deem gritos indignados, talvez peguem as cadeiras e ameacem baterem nele. Eles são capazes de coisas muito mais instáveis do que isso. Mas eles não fazem isso. Eles ficam em silêncio, com rostos inflexíveis, encarando o jovem que não os traiu, mas que nunca realmente sentiu que pertencesse a eles.
Por um momento, eles ficaram em silêncio. Não sei quem começa o sussurro; parece se originar do nada, vir de ninguém. Mas alguém sussurra, “Obrigado por sua honestidade” e o resto deles repete.
“Obrigado por sua honestidade,” eles sussurram.
Não me junto a eles.
Eu sou a única coisa que o mantém na facção que ele gostaria de deixar. Eu não valho isso.
Talvez ele mereça saber.
Niles para no meio da sala com uma seringa na mão. As luzes sobre ele o fazem brilhar. À minha volta, Audácia e Franqueza esperam que eu dê um passo adiante e fale a minha vida inteira para eles.
O pensamento me ocorre: Talvez eu possa lutar contra o soro. Mas eu não sei se deveria tentar. Talvez seja melhor para as pessoas que amo que eu fale a verdade.
Ando com firmeza para o meio da sala quando Tobias sai. Quando nos encontramos no meio do caminho, ele segura minha mão e aperta meus dedos. Então ele sai, e ficamos apenas eu, Niles e a seringa. Passo antisséptico no meu pescoço, mas quando ele me alcança com a agulha, eu puxo de volta.
— Prefiro fazer isso eu mesma — digo, segurando a minha mão.
Eu nunca vou deixar alguém injetar algo em mim de novo, não depois de deixar Eric injetar em mim o soro da simulação do ataque depois do meu teste final. Não posso mudar o conteúdo da seringa eu mesma, mas ao menos desse jeito, eu sou o instrumento da minha própria destruição.
— Você sabe como? — ele pergunta, erguendo uma sobrancelha.
— Sim.
Niles me oferece a seringa. Eu a posiciono na veia do meu pescoço, insiro a agulha e pressiono o êmbolo. Quase não sinto a picada. Estou muito carregada com adrenalina.
Alguém vem em frente com uma lata de lixo, e jogo a agulha nela. Sinto os efeitos do soro imediatamente depois. Faz meu sangue parecer como chumbo em minhas veias. Eu quase desmaio no caminho até a cadeira – Niles tem que me agarrar e me guiar até ela.
Segundos depois, meu cérebro se silencia. No que eu estava pensando? Não parece importar. Nada mais importa, exceto a cadeira na minha frente e o homem sentado do meu lado.
— Qual é o seu nome? — ele diz.
No segundo que ele me pergunta, a resposta sai da minha boca.
— Beatrice Prior.
— Mas você pode ser chamada de Tris?
— Sim.
— Qual o nome dos seus pais, Tris?
— Andrew e Natalie Prior.
— Você também se transferiu de facção, não é?
— Sim — eu digo, mas um novo pensamento sussurra na minha mente.
Também? Também se refere a outra pessoa, e, nesse caso, esse alguém é Tobias. Eu franzo a testa tentando imaginar Tobias, mas é difícil forçar a imagem dele em minha mente. Não tão difícil que eu não consiga fazer. Eu o vejo, e então vejo um flash dele sentado na mesma cadeira que estou sentada.
— Você veio da Abnegação? E escolheu Audácia?
— Sim — eu digo de novo, mas dessa vez, a palavra soa sóbria.
Não sei o motivo, exatamente.
— Por que se transferiu?
Essa pergunta é mais complicada, mas eu ainda sei a resposta. Eu não era boa o suficiente para a Abnegação estava na ponta da minha língua, mas outra frase substitui essa: Eu queria ser livre. Ambas são verdade. Quero dizer as duas. Aperto meus braços enquanto tento lembrar onde estou, o que estou fazendo. Vejo pessoas ao redor de mim, mas não sei o motivo de elas estarem lá.
Eu me forço, do jeito que costumava me forçar quando quase podia me lembrar da resposta de uma questão, mas não conseguia lembrar. Eu costumava fechar meus olhos e imaginar a página do livro onde a resposta estava. Eu luto por alguns segundos, mas não consigo; eu não me lembro.
— Eu não era boa o suficiente para a Abnegação — digo — e eu queria ser livre. Então escolhi Audácia.
— Por que você não era boa o suficiente?
— Por que eu era egoísta.
— Você era egoísta? Não é mais?
— Claro que sou. Minha mãe disse que todos são egoístas — respondo — mas eu fiquei menos egoísta na Audácia. Descobri que há pessoas por quem eu lutaria. Até mesmo morreria.
A resposta me surpreende – mas por quê? Eu belisco meus lábios por um momento. Por que é verdade. Se eu disse aqui, deve ser verdade.
Esse pensamento me dá o elo perdido que eu tentava encontrar. Estou aqui em um detector de mentiras. Tudo o que eu disser é verdade. Sinto uma gota de suor rolar pela parte de trás do meu pescoço.
Teste detector de mentiras. Soro da verdade. Tenho que me lembrar de mim mesma. É muito fácil se perder na honestidade.
— Tris, você, por favor, poderia nos dizer o que aconteceu no dia do ataque?
— Eu acordei, e todos estavam sob a simulação. Então fingi até encontrar Tobias.
— O que aconteceu depois que você e Tobias se separaram?
— Jeanine tentou me matar, mas minha mãe me salvou. Ela costumava ser da Audácia, então sabia como usar uma arma.
Meu corpo parece ainda mais pesado agora, mas não mais gelado. Eu sinto algo mexer no meu peito, algo pior do que a tristeza, pior do que arrependimento.
Eu sei o que vem a seguir. Minha mãe morreu e então eu matei Will; atirei nele; eu o matei.
— Ela distraiu os soldados Audácia para que eu pudesse fugir, e eles a mataram — eu digo.
Alguns deles correram atrás de mim, então eu os matei. Mas há integrantes da Audácia na multidão atrás de mim, Audácia, eu matei alguns da Audácia, eu não deveria falar sobre isso.
— Eu continuei correndo, e...
E Will correu atrás de mim; eu atirei nele; eu o matei. Não, não. Eu sinto suor perto da minha testa.
— E encontrei meu irmão e meu pai — digo, minha voz tensa. — Nós formamos um plano para destruir a simulação.
A borda dos braços da cadeira escavam a palma da minha mão. Escondi um pouco da verdade. Certamente isso conta como enganação.
Eu lutei contra o soro. E naquele curto período, venci.
Eu deveria me sentir triunfante. Ao invés disso, sinto o peso do que fiz me atingir de novo.
— Nos infiltramos no complexo da Audácia, e meu pai e eu fomos até a sala de controle. Ele lutou contra alguns soldados da Audácia à custa de sua vida. Eu fui até a sala de controle, e Tobias estava lá.
— Tobias disse que você lutou contra ele, mas então parou. Por que fez isso?
— Por que eu percebi que um de nós teria que matar o outro — respondo — e eu não queria matá-lo.
— Você desistiu?
— Não! — eu estalo. Balanço a cabeça. — Não, não exatamente. Eu me lembrei de algo que fiz na minha paisagem do medo na iniciação da Audácia... Em uma simulação, uma mulher pedia que eu matasse a minha família, e eu a deixava atirar em mim ao invés disso. Funcionou lá. Pensei que...
Eu belisco o topo do meu nariz. Minha cabeça está começando a doer e eu perco o controle e meus pensamentos se tornam palavras.
— Eu estava tão agitada, mas tudo em que podia pensar era que havia algo nisso; havia uma força nisso. E eu não podia matá-lo, então tive que tentar.
Eu pisco as lágrimas dos meus olhos.
— Então você nunca esteve sob a simulação?
— Não.
Pressiono as palmas das mãos em meus olhos, tirando as lágrimas para que elas não caiam em minhas bochechas onde todos possam vê-las.
— Não — eu digo novamente. — Não, eu sou Divergente.
— Só para esclarecer — diz Niles. — Você está me dizendo que quase foi assassinada pela Erudição... E então lutou para sair do complexo da Audácia... E destruiu a simulação?
— Sim.
— Acho que falo por todos — ele diz — quando digo que você ganhou o título de Audaciosa.
Gritos se fazem ouvir do lado esquerdo da sala, e eu vejo borrões de alguns punhos socando a escuridão. Minha facção me chamando.
Mas não, eles estão errados, eu não sou corajosa, não sou corajosa, eu atirei em Will e não consigo admitir, eu nem mesmo consigo admitir...
— Beatrice Prior — diz Niles — quais são seus segredos mais profundos?
Do que eu me arrependo? Não me arrependo de escolher Audácia ou de deixar a Abnegação. Eu nem mesmo me arrependo de atirar nos guardas fora da sala de controle, porque era muito importante passar por eles.
— Me arrependo...
Meus olhos deixaram o rosto de Niles e procuraram pela sala, e pousaram em Tobias. Ele está sem expressão, a boca em uma linha firme, seu olhar vazio. As mãos cruzadas em seu peito apertam os braços com tanta força que os nós dos dedos estão brancos. Próximo a ele está Christina. Meu peito se aperta, e eu não consigo respirar.
Eu tenho que dizer a eles. Eu tenho que dizer a verdade.
— Will — eu digo.
Minha voz soa como um suspiro, como se fosse puxada direto do meu estômago. Agora não havia mais como voltar.
— Eu atirei em Will — digo — quando ele estava sob a simulação. Eu o matei. Ele ia me matar, mas eu o matei. Meu amigo.
Will, com o vinco entre as sobrancelhas, com os olhos verdes como aipo e a habilidade de citar o manifesto Audácia de cor. Sinto uma dor em meu estômago tão intensa que eu quase solto um gemido. Me machuca lembrar dele. Machuca cada parte de mim.
E tem algo mais, algo pior que eu não percebi antes. Eu estava disposta a morrer ao invés de matar Tobias, mas esse pensamento nunca me ocorreu quando se tratava de Will. Decidi matá-lo em uma fração de segundo.
Me sinto nua. Não percebi que usava meus segredos como uma armadura até que eles sumiram, e agora todos me veem como eu realmente sou.
— Obrigado por sua honestidade — eles dizem.
Mas Christina e Tobias não dizem nada.
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