domingo, 6 de abril de 2014

Capítulo treze

Eu levanto da cadeira. Não me sinto tão tonta como me sentia há pouco; o soro já está passando. A multidão se inclina, e eu procuro por uma porta. Não costumo fugir das coisas, mas eu fugiria disso.
Todo mundo começa a sair da sala, exceto Christina. Ela está onde a deixei, as mãos em punhos que estão em processo de desenrolar. Seus olhos encontram os meus. Lágrimas nadam em seus olhos e ainda assim ela não está chorando.
— Christina — eu digo, mas a única palavra que eu posso pensar – desculpe – soa mais como um insulto do que um pedido de desculpas. Desculpe é o que você usa quando bate em alguém com o seu cotovelo, ou quando interrompe alguém. Eu estou mais do que arrependida.
— Ele tinha uma arma — eu digo. — Ele estava prestes a atirar em mim. Ele estava sob a simulação.
— Você o matou — diz ela.
Suas palavras soam mais do que as palavras costumam fazer, como se tivessem expandido em sua boca antes de falar. Ela olha para mim como se não me reconhecesse por alguns segundos, então se vira.
A menina mais nova com a mesma cor de pele e a mesma altura segura a mão dela – é a irmã mais nova de Christina. Eu a vi no Dia de Visita, mil anos atrás. O soro da verdade torna a vê-los nadar diante de mim, ou poderia ser as lágrimas recolhidas em meus olhos.
— Você está bem? — pergunta Uriah, emergindo da multidão para tocar o meu ombro.
Eu não o vejo desde antes da simulação de ataque, mas não consigo virar para cumprimentá-lo.
— Sim.
— Ei — ele aperta meu ombro. — Você fez o que precisava fazer, certo? Para nos salvar de ser escravos da Erudição. Ela verá isso, eventualmente. Quando se desvanecer o luto.
Eu não consigo encontrar forças em mim para concordar. Uriah sorri para mim e vai embora. Alguns da Audácia olham para mim e murmuram palavras que soam como gratidão ou elogios, ou reafirmação. Outros me dão um amplo espaço, olham para mim com os olhos semicerrados, suspeitos. Corpos vestidos de preto passam por mim. Eu estou vazia. Tudo derramou de mim.
Tobias está ao meu lado. Eu me preparo para a reação dele.
— Eu tenho as armas de volta — diz, me oferecendo a minha faca.
Eu a enfio no bolso de trás sem encontrar seus olhos.
— Nós podemos falar sobre isso amanhã — ele diz. Em voz baixa. Silêncio é perigoso, com Tobias.
— Ok.
Ele desliza o braço sobre os meus ombros. Minha mão encontra o seu quadril, e eu o puxo contra mim.
Eu seguro firme enquanto caminhamos em direção aos elevadores juntos.

+ + +

Ele encontra duas camas no final de um corredor em algum lugar. Deitamos com nossas cabeças a centímetros de distância, mas não conversamos.
Quando tenho certeza de que ele está dormindo, saio de baixo dos cobertores e caminho pelo corredor, passando por uma dúzia de integrantes da Audácia dormindo. Acho a porta que leva para as escadas.
Enquanto subo passo a passo e meus músculos começam a queimar, meus pulmões a lutar por ar, sinto os primeiros momentos de alívio que experimentei em dias.
Posso ser boa em correr em terreno plano, mas subir escadas é outro assunto. Eu massageio um espasmo de meu tendão enquanto passo pelo décimo segundo andar, e tento recuperar um pouco do meu ar perdido. Sorrio pelo queimar feroz em minhas pernas, no peito. Usando a dor para aliviar a dor. Não faz muito sentido.
No momento em que chego ao décimo oitavo andar, minhas pernas se sentem como se fossem líquido. Eu tropeço em direção à sala onde fui interrogada. Está vazia agora, mas os bancos do anfiteatro ainda estão lá, posso ver o brilho da lua atrás de uma névoa de nuvens.
Coloco minhas mãos na parte de trás da cadeira. É simples: de madeira, um pouco rangente. Como é estranho que algo tão simples poderia ter sido fundamental na minha decisão de arruinar um dos meus relacionamentos mais importantes, e causar dano em outro.
É ruim o suficiente o fato de eu ter matado Will, de eu não ter pensado rápido o suficiente para chegar a outra solução. Agora tenho que viver com o julgamento de todos os outros, assim como o meu, e com de fato de que nada será o mesmo novamente – nem mesmo eu.
A Franqueza canta louvores sobre verdade, mas nunca diz o quanto ela custa.
A borda da cadeira morde minhas mãos. Eu estava apertando mais forte do que pensava. Olho para baixo para ela por um segundo e depois a levanto, equilibrando as pernas no meu ombro bom. Procuro pelo espaço uma escada ou uma escadaria que me ajudará a subir. Tudo o que vejo são os bancos do anfiteatro, subindo muito acima do piso. Eu ando até o banco mais alto e levanto a cadeira acima da minha cabeça. Mal toca a borda abaixo de um dos espaços da janela. Eu pulo, empurrando a cadeira para frente, e desliza sobre a borda. Meu ombro dói – eu realmente não deveria usar o braço – mas tenho outras coisas em minha mente.
Eu salto, agarro a borda, e me puxo para cima, com os braços tremendo. Balanço minha perna e arrasto o resto do meu corpo para a borda. Quando subo, fico lá por um momento, sugando o ar e soprando-o de volta novamente.
Eu estou na borda, sob o arco do que costumava ser uma janela, e olho para fora na cidade. O rio morto se enrola ao redor do prédio e desaparece. A ponte, sua tinta vermelha descascada, estende-se sobre a lama. Após ela, edifícios, a maioria deles vazios. É difícil acreditar que havia pessoas suficientes na cidade para preenchê-los.
Por um segundo, eu me permito reentrar na memória do interrogatório. A falta de expressão de Tobias; sua raiva depois, reprimida por amor à minha sanidade. O olhar vazio de Christina. Os sussurros, “Obrigado por sua honestidade.” Fácil de dizer quando não os afeta.
Eu pego a cadeira e atiro-a sobre a borda. Um grito fraco me escapa. Ele cresce em um berro, que se transforma em um grito, e então eu estou de pé no parapeito do Mart Impiedoso, gritando enquanto a cadeira navega em direção ao chão, gritando até queimar minha garganta. Em seguida, a cadeira atinge o solo, quebrando como um esqueleto frágil. Sento-me no parapeito, inclinando-me para o lado da moldura da janela, e fecho os olhos.
E então penso em Al.
Me pergunto quanto tempo Al ficou na borda antes de se jogar na Caverna da Audácia.
Ele deve ter ficado lá por um longo tempo, fazendo uma lista de todas as coisas terríveis que fez – quase me matar era uma dessas coisas – e outra lista de todas as boas coisas heroicas e bravas que ele não fez, e então decidiu que estava cansado. Cansado, não só de viver, mas de existir. Cansado de ser Al.
Abro os olhos, e olho para as peças da cadeira que posso ver levemente na calçada abaixo. Pela primeira vez, sinto que entendo Al. Estou cansada de ser Tris. Eu fiz coisas ruins. Não posso desfazê-las, e elas são parte de quem sou. Na maioria das vezes, elas parecem ser a única coisa que sou.
Eu me inclino para frente, para o ar, segurando-me ao lado da janela, com uma só mão. Mais alguns centímetros e meu peso me puxaria para o chão. Eu não seria capaz de parar.
Mas eu não posso fazer isso. Meus pais perderam a vida por amor a mim. Perder a minha por nenhuma boa razão seria uma maneira terrível de reembolsá-los por esse sacrifício, não importa o que eu fiz.
“Que a culpa lhe ensine como se comportar na próxima vez”, meu pai diria.
“Eu te amo. Não importa o quê,” diria minha mãe.
Parte de mim deseja que eu pudesse tirá-los da minha mente, então eu nunca teria que lamentar por eles. Mas o resto de mim está com medo do que eu seria sem eles.
Meus olhos embaçam com lágrimas, e desço de volta para a sala de interrogatório.

+ + +

Volto à minha cama ao amanhecer, e Tobias já está acordado. Ele se vira e vai em direção aos elevadores, e eu o sigo, porque sei que é o que ele quer. Estamos no elevador, lado a lado. Ouço um zumbido nos meus ouvidos.
O elevador desce até o segundo andar, e eu começo a tremer. Começa com as minhas mãos, mas viaja para os meus braços e meu peito, até estremecimentos pequenos passando por todo o meu corpo e não tenho nenhuma maneira de pará-los. Estamos entre os elevadores, bem acima de outro símbolo da Franqueza, as balanças desequilibradas. O símbolo que também está desenhado no meio de sua coluna vertebral.
Ele não olha para mim por um longo tempo. Está com os braços cruzados e a cabeça baixa, até que eu não aguento mais, até que sinto que eu poderia gritar. Eu deveria dizer algo, mas não sei o que dizer. Não posso pedir desculpas, porque eu só disse a verdade, e não posso mudar a verdade para mentira. Eu não posso dar desculpas.
— Você não me disse. Por que não?
— Porque eu não... — balanço a cabeça. — Eu não sabia como.
Ele franze a testa.
— É muito fácil, Tris...
— Ah, sim — respondo, balançando a cabeça. — É tão fácil. Tudo o que tenho a fazer é ir até você e dizer, “A propósito, eu atirei em Will, e agora a culpa está me rasgando em pedaços, mas o que tem para o café da manhã?” Certo? Certo? — De repente, é demais, demais para conter. Lágrimas enchem meus olhos, e eu grito: — Por que você não tenta matar um de seus melhores amigos e depois lidar com as consequências?
Cubro meu rosto com as mãos. Não quero que ele me veja chorando de novo. Ele toca meu ombro.
— Tris — ele diz, gentilmente desta vez. — Eu sinto muito. Eu não deveria fingir que entendo. Eu só queria dizer que... — ele luta por um momento. — Eu queria que você confiasse em mim o suficiente para me dizer coisas assim.
Eu confio em você, é o que quero dizer. Mas isso não é verdade, eu não confio nele para me amar apesar das coisas terríveis que fiz. Não confio em ninguém para fazer isso, mas isso não é problema dele, é meu.
— Quero dizer, eu tive que descobrir que você quase se afogou em um tanque de água por Caleb. Isso não parece um pouco estranho para você?
Justo quando eu estava prestes a pedir desculpas.
Eu limpo meu rosto com meus dedos e olho para ele.
— Outras coisas parecem estranhas — eu digo, tentando fazer minha voz leve. — Como descobrir que a mãe supostamente morta do seu namorado ainda está viva ao vê-la em pessoa. Ou de ouvir seus planos para aliar com os sem facção, mas ele nunca falou sobre isso. Isso parece um pouco estranho para mim.
Ele tira a mão do meu ombro.
— Não finja que isso é apenas problema meu. Se eu não confio em você, você também não confia em mim.
— Pensei que chegaríamos a essas coisas eventualmente — diz ele. — Tenho que dizer a você tudo de imediato?
Eu me sinto tão frustrada. Não consigo nem falar por alguns segundos. Calor enche meu rosto.
— Deus, Quatro! — eu o agarro. — Você não quer ter de me contar tudo imediatamente, mas eu tenho que dizer a você tudo de imediato? Não pode ver o quão estúpido isso é?
— Primeiro de tudo, não use esse nome como uma arma contra mim — diz ele, apontando para mim. — Em segundo lugar, eu não estava fazendo planos para me aliar com os sem facção, eu estava pensando sobre isso. Se eu tivesse tomado uma decisão, teria dito alguma coisa para você. E, terceiro, o que seria diferente se você tivesse realmente a intenção de me contar sobre as coisas em algum momento, mas é óbvio que você não tinha.
— Eu quis falar sobre Will! Não era o soro da verdade, era eu. Eu disse porque eu escolhi.
— O que você está falando?
— Eu estava consciente. Sob o soro. Eu poderia ter mentido, poderia ter escondido de você. Mas não o fiz, porque pensei que você merecia saber a verdade.
— Que maneira de me dizer! — diz ele, carrancudo. — Na frente de mais de uma centena de pessoas! Como se fosse íntimo!
— Ah, então não é o suficiente que eu te disse; precisa ser no ambiente certo? — Levanto minhas sobrancelhas. — Da próxima vez eu deveria preparar um chá e certificar que a iluminação esteja certa também?
Tobias solta um som frustrado e se afasta de mim, andando alguns passos. Quando ele se vira, suas bochechas estão manchadas. Não me lembro de alguma vez ter visto seu rosto mudar de cor antes.
— Às vezes — ele diz em voz baixa — não é fácil estar com você, Tris.
Ele olha para longe.
Quero dizer a ele que sei que não é fácil, mas eu não teria conseguido passar a última semana sem ele. Mas eu só olho para ele, meu coração batendo em meus ouvidos.
Não posso dizer a ele que preciso dele. Eu não posso precisar dele, ponto – ou, na verdade, não podemos precisar um do outro, porque quem sabe quanto tempo algum de nós vai durar nesta guerra?
— Sinto muito — falo, toda a minha raiva desaparecendo. — Eu deveria ter sido honesta com você.
— É isso? Isso é tudo que você tem a dizer? — ele franze a testa.
— O que mais você quer que eu diga?
Ele apenas balança a cabeça.
— Nada, Tris. Nada.
Eu o vejo ir embora. Sinto como se um vazio fosse aberto dentro de mim, expandindo tão rapidamente que vai me quebrar em pedaços.

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