sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo quarenta e sete

Minha mente continua puxando-me para minhas memórias de Lynn, em uma tentativa de me convencer de que ela realmente se foi, mas afasto os flashes curtos quando eles vêm. Algum dia vou parar de fazer isso, se eu não for executada como traidora, ou o que quer que seja que os nossos novos líderes têm planejado. Mas agora luto para manter minha mente vazia, para fingir que esta sala é tudo o que já existiu e tudo que jamais vai existir. Não deveria ser fácil, mas é. Eu aprendi a defender-me da dor.
Tori e Harrison vêm para o lobby depois de um tempo, Tori mancando para uma cadeira – eu quase esqueci o ferimento de bala dela novamente; ela estava tão ágil quando matou Jeanine – e Harrison seguindo-a.
Atrás de ambos está um Audacioso com o corpo de Jeanine jogado sobre seu ombro. Ele a joga como uma pedra em uma mesa na frente das fileiras de Erudição e traidores da Audácia.
Atrás de mim eu ouço suspiros e resmungos, mas não choro. Jeanine não era o tipo de líder pelo qual as pessoas choram.
Olho seu corpo, que parece muito menor na morte do que era em vida. Ela é apenas alguns centímetros mais alta do que eu, seu cabelo apenas um tom mais escuro. Ela parece estar calma agora, quase pacífica. Tenho dificuldade de conectar este corpo com a mulher que eu conhecia, a mulher sem consciência.
E até mesmo ela era mais complicada do que eu pensava, mantendo um segredo que ela achava que era terrível demais para revelar, por um hediondo e retorcido instinto de proteção.
Johanna Reyes entra no lobby, encharcada até os ossos de toda a chuva, a roupa vermelha manchada com um vermelho mais escuro. Os sem facção a seguem, mas ela não parece notá-los ou as armas que eles carregam.
— Olá — ela diz para Harrison e Tori. — O que é que vocês querem?
— Eu não sabia que a líder da Amizade seria tão brusca — Tori responde com um sorriso irônico. — Não é contra o seu manifesto?
— Se fosse realmente familiarizada com os costumes da Amizade, saberia que eles não têm um líder formal — Johanna responde sua voz suave ao mesmo tempo e firme. — Mas eu não sou mais a representante da Amizade. Renunciei para vir aqui.
— Sim, vi você e seu pequeno grupo de soldados, ficando no caminho de todos — diz Tori.
— Sim, isso foi intencional — responde Johanna. — Já que ficar no caminho significava estar entre armas e inocentes, e salvou um grande número de vidas.
Cor enche suas bochechas, e penso mais uma vez: que Johanna Reyes ainda pode ser bonita. Só que agora acho que ela não é apenas bonita, apesar da cicatriz, ela é de alguma forma bonita com ela, como Lynn com seu cabelo raspado, como Tobias com as memórias de crueldade de seu pai que ele usa como uma armadura, como a minha mãe em suas roupas cinza simples.
— Já que você é ainda muito generosa — Tori fala — me pergunto se você pode levar uma mensagem de volta para a Amizade.
— Eu não me sinto confortável deixando você e seu exército para distribuir justiça como acharem melhor — Johanna responde — mas certamente enviarei alguém paraAmizade com uma mensagem.
— Tudo bem. Diga a eles que um novo sistema político em breve será formado, o qual irá excluí-los da representação. Isso, acreditamos, é o seu justo castigo por não escolher um lado neste conflito. Eles serão, é claro, obrigados a continuar a produzir e entregar alimentos para a cidade, mas estarão sob a supervisão de uma das principais facções.
Por um segundo, acho que Johanna poderia lançar-se a Tori e estrangulá-la. Mas ela se segura e fica mais ereta.
— Isso é tudo?
— Sim.
— Tudo bem — ela fala. — Vou fazer algo útil. Suponho que você não permitiria que alguns de nós entrássemos aqui e atendêssemos esses feridos?
Tori dá-lhe um olhar.
— Imaginei que não — diz Johanna. — Mas lembre-se, porém, que às vezes, as pessoas que você oprime são mais poderosas do que você gostaria.
Ela se vira e sai do átrio.
Algo em suas palavras me bate. Tenho certeza de que ela queria dizer-lhe como uma ameaça, e uma fraca, mas ressoa em minha cabeça como se fosse algo mais – como se ela pudesse facilmente não ter falado sobre a Amizade, mas sobre outro grupo de oprimidos. Os sem facção.
E quando olho ao redor da sala, para cada soldado da Audácia e cada soldado sem facção, começo a ver um padrão.
— Christina — eu digo. — Os sem facção têm todas as armas.
Ela olha em volta, e depois para mim, franzindo a testa.
Em minha mente eu vejo Therese tomar a arma de Uriah, quando ela já tinha uma. Vejo a boca de Tobias pressionada em uma linha quando perguntei a ele sobre a aliança Audácia-sem facção, escondendo alguma coisa.
Então Evelyn emerge no lobby, sua postura majestosa, como uma rainha voltando para seu reino. Tobias não a segue. Onde ele está?
Evelyn fica atrás da mesa onde o corpo de Jeanine Matthews está. Edward manca para o lobby atrás dela. Evelyn pega uma arma, aponta para o retrato caído de Jeanine, e atira.
Um silêncio cai sobre a sala. Evelyn solta a arma sobre a mesa, ao lado da cabeça de Jeanine.
— Obrigada. Sei que todos estão querendo saber o que vai acontecer, por isso estou aqui para lhes dizer.
Tori senta-se reta em sua cadeira e inclina-se para Evelyn, como se quisesse dizer alguma coisa. Mas Evelyn não presta nenhuma atenção.
— O sistema de facção que sempre se apoiou nas costas dos seres humanos descartados será dissolvido imediatamente — diz Evelyn. — Nós sabemos que esta transição vai ser difícil para vocês, mas...
— Nós? — Tori interrompe, parecendo escandalizada. — O que você está falando, dissolvido?
— O que eu estou falando — Evelyn responde, olhando para Tori pela primeira vez — é que a sua facção, que até algumas semanas clamava junto com a Erudição pela restrição de alimentos e bens para os sem facção – clamor que resultou na destruição da Abnegação – deixará de existir.
Evelyn sorri um pouco.
— E se vocês decidirem pegar em armas contra nós — diz ela — verão que será difícil encontrar quaisquer armas para pegar.
Eu vejo, então, enquanto cada soldado sem facção levanta uma arma. Os sem facção estão uniformemente espaçados em torno da borda da sala, e desaparecem em uma das escadas. Eles têm todos nós cercados.
É tão elegante, tão inteligente, que eu quase rio.
— Instruí minha metade do exército para aliviar a sua metade do exército de suas armas logo que as suas missões fossem concluídas — Evelyn continua — vejo agora que foram bem sucedidos. Lamento a duplicidade, mas sabíamos que vocês foram condicionados a agarrar-se ao sistema de facção como se fosse sua própria mãe, e que teríamos que ajudar a suavizar a vinda de vocês a esta nova era.
— Suavizar? — demanda Tori.
Ela levanta-se e manca para Evelyn, que calmamente pega sua arma e aponta para Tori.
— Eu não passei fome por mais de uma década só para ceder a uma Audaciosa com uma lesão na perna — Evelyn diz. — Então, se você não quer que eu atire em você, sente-se com seus companheiros ex-membros de facção.
Vejo todos os músculos esticados no braço de Evelyn em atenção, seus olhos não frios, não como os de Jeanine, mas calculando, avaliando, planejando. Eu não sei como esta mulher poderia alguma vez ter se dobrado à vontade de Marcus. Ela não deve ter sido sempre essa mulher, então, toda aço, testada em fogo.
Tori permanece diante de Evelyn por alguns segundos. Então ela manca para trás, para longe da arma e em direção à borda da sala.
— Aqueles de vocês que nos ajudaram no esforço para derrubar a Erudição serão recompensados — Evelyn fala. — Aqueles de vocês que resistiram a nós serão julgados e punidos de acordo com seus crimes.
Ela levanta a voz para a última frase, e eu estou surpresa como quão bem ela propaga pelo espaço.
Atrás dela, a porta para a escada se abre, e Tobias sai com Marcus e Caleb atrás dele, quase despercebido. Quase, só que eu percebo, porque me treinei para percebê-lo. Observo seus sapatos enquanto ele se aproxima. São tênis pretos com ilhós cromados para os cadarços. Eles param ao meu lado, e ele se agacha ao lado do meu ombro.
Eu olho para ele, esperando encontrar seus olhos frios e inflexíveis.
Mas não estão assim.
Evelyn ainda está falando, mas sua voz desvanece para mim.
— Você estava certa — Tobias diz em voz baixa, equilibrando-se sobre os pés. Ele sorri um pouco. — Eu sei quem você é. Só precisava ser lembrado.
Abro minha boca, mas não tenho nada a dizer.
Então, todas as telas do átrio da Erudição – pelo menos aquelas que não foram destruídas no ataque – oscilam, incluindo um projetor posicionado sobre a parede onde o retrato de Jeanine costumava estar.
Evelyn para no meio de uma frase que estava falando. Tobias pega a minha mão e me ajuda a levantar.
— O que é isso? — Evelyn exige.
— Isto — ele diz, somente para mim — é a informação que vai mudar tudo.
Minhas pernas tremem de alívio e apreensão.
— Você conseguiu? — pergunto.
— Você conseguiu. Tudo o que fiz foi forçar Caleb a cooperar.
Jogo meu braço em torno de seu pescoço, e pressiono os meus lábios nos dele. Ele segura o meu rosto com as duas mãos e me beija de volta. Diminuo a distância entre nós, até que ela desaparece, esmagando os segredos que mantivemos e as suspeitas que abrigamos – para sempre, eu espero.
E então eu ouço uma voz.
Nos separamos e viramos para a parede, onde uma mulher com cabelo castanho curto é projetada. Ela senta-se em uma mesa de metal com as mãos cruzadas, em um local que não reconheço. O fundo é muito fraco.
— Olá — diz ela. — Meu nome é Amanda Ritter. Neste arquivo, eu direi apenas o que vocês precisam saber. Eu sou a líder de uma organização lutando por justiça e paz. Essa luta se tornou cada vez mais importante – e, consequentemente, quase impossível – nas últimas décadas. Isto é por causa disso.
Imagens piscam pela parede, quase rápidas demais para eu ver. Um homem de joelhos com uma arma pressionada em sua testa. A mulher a apontando para ele, o rosto sem emoção.
De longe, uma pessoa pequena pendurada pelo pescoço a um poste de telefone.
Um buraco no chão do tamanho de uma casa, cheio de corpos.
E há outras imagens também, mas elas se movem mais rapidamente, por isso só tenho impressões de sangue e ossos e morte e crueldade, rostos vazios, olhos sem alma, olhos aterrorizados.
Quando eu tive o suficiente, quando sinto que vou gritar se vir mais alguma coisa, a mulher reaparece na tela, atrás de sua mesa.
— Vocês não se lembram de nada disso. Mas se estão pensando que essas são as ações de um grupo terrorista ou um regime de governo tirânico, estão apenas parcialmente corretos. Metade das pessoas naquelas fotos, cometendo aqueles atos terríveis, eram seus vizinhos. Seus parentes. Seus colegas de trabalho. A batalha que estamos lutando não é contra um determinado grupo. É contra a própria natureza humana – ou, pelo menos, o que ela se tornou.
É por isso que Jeanine estava disposta a escravizar mentes e assassinar pessoas – para evitar que soubéssemos. Para nos manter ignorantes e seguros e dentro da cerca.
Há uma parte de mim que entende.
— É por isso que vocês são tão importantes — diz Amanda. — Nossa luta contra a violência e crueldade é apenas o tratamento dos sintomas de uma doença, não a cura. Vocês são a cura.
“A fim de mantê-los seguros, criamos uma forma de vocês serem separados de nós. Do nosso abastecimento de água. Da nossa tecnologia. De nossa estrutura social. Nós formamos a sua sociedade de uma maneira particular, na esperança de que vocês redescubram o sentido moral que a maioria de nós perdeu. Com o tempo, esperamos que vocês comecem a mudar de maneiras que a maioria de nós não pode.
“A razão pela qual estou deixando estas imagens com vocês é para que saibam quando é hora de nos ajudar. Vocês saberão que é a hora quando houver muitos entre vocês cujas mentes parecem ser mais flexíveis do que as outras. O nome que vocês devem dar a essas pessoas é Divergente. Uma vez que eles se tornem abundantes em seu meio, seus líderes devem dar o comando para a Amizade destrancar o portão para sempre, a fim de que vocês possam sair de seu isolamento.
E é isso que os meus pais queriam fazer: pegar o que aprendemos e usar para ajudar os outros. Abnegação até o fim.
— As informações contidas neste de vídeo devem ser restritas apenas àqueles no governo — Amanda diz. — Vocês devem ser uma lousa limpa. Mas não nos esqueçam.
Ela dá um pequeno sorriso.
— Estou prestes a me juntar ao seu número — diz ela. — Como o resto de vocês, eu voluntariamente esquecerei o meu nome, minha família, e minha casa. Assumirei uma nova identidade, com falsas memórias e uma falsa história. Mas, para que vocês saibam que a informação que lhes passei é precisa, direi o nome que estou prestes a tomar como meu.
Seu sorriso se alarga, e por um momento, sinto que a reconheço.
— Meu nome será Edith Prior. E há muito que fico feliz em esquecer.
Prior.
O vídeo para. O projetor brilha em azul contra a parede. Eu agarro a mão de Tobias, e há um momento de silêncio como um fôlego retido.

Então a gritaria começa.

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