sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo quarenta e seis

Tori tem um olhar selvagem em seus olhos, e vira para mim.
Eu me sinto dormente.
Todos os riscos que tomei para chegar aqui – conspirar com Marcus, pedindo que a Erudição ajudasse, rastejando através de uma escada três andares acima, atirando em mim mesma em uma simulação – e todos os sacrifícios que fiz – minha relação com Tobias, a vida de Fernando, a minha posição entre a Audácia – para nada.
Nada.
Um momento depois, a porta de vidro se abre outra vez. Tobias e Uriah entram como uma tempestade para lutar uma batalha – Uriah tosse, provavelmente por causa do veneno – mas a batalha está terminada. Jeanine está morta, Tori está triunfante, e eu sou uma traidora da Audácia.
Tobias para no meio de um passo, quase tropeçando em seus pés, quando me vê. Seus olhos se abrem mais.
— Ela é uma traidora — diz Tori. — Ela quase atirou em mim para defender Jeanine.
— O quê? — Uriah pergunta. — Tris, o que está acontecendo? Ela está certa? Por que você ainda está aqui?
Mas eu apenas olho para Tobias. Um raio de esperança me perfura, estranhamente doloroso, quando combinado com a culpa que sinto como eu me enganei. Tobias é teimoso e orgulhoso, mas ele é meu – talvez ele vá ouvir, talvez haja uma chance de que tudo o que eu fiz não foi em vão...
— Você sabe por que estou aqui — falo baixinho. — Não sabe?
Eu estendo a arma de Tori. Ele anda para frente, um pouco instável em seus pés, e a toma.
— Nós encontramos Marcus no próximo quarto, preso em uma simulação — Tobias diz. — Você veio aqui com ele.
— Sim, eu vim — confirmo, o sangue da mordida de Tori escorrendo pelo meu braço.
— Eu confiei em você — ele fala, seu corpo tremendo de raiva. — Eu confiei em você e você me abandonou para trabalhar com ele?
— Não — balanço minha cabeça. — Ele me disse uma coisa, e tudo o que meu irmão disse, tudo que Jeanine disse enquanto eu estava na sede da Erudição, encaixa perfeitamente com o que ele me disse. E eu queria – eu precisava saber a verdade.
— A verdade — ele bufa. — Você acha que aprendeu a verdade de um mentiroso, um traidor, e um sociopata?
— A verdade? — Tori pergunta. — Do que você está falando?
Tobias e eu olhamos um paro o outro. Seus olhos azuis, geralmente tão pensativos, agora estão duros e críticos, como se eles estivessem retirando camada após camada de mim, procurando em cada uma.
— Eu acho... — começo.
Tenho que fazer uma pausa e tomar fôlego, porque tenho certeza de que não o convenci, eu falhei, e isso é, provavelmente, a última coisa que vão me deixar dizer antes de me prender.
— Eu acho que você é o mentiroso! — digo, minha voz tremendo. — Você diz que me ama, que confia em mim, que acha que eu sou mais perceptiva do que a maioria das pessoas. E no primeiro segundo que essa crença na minha percepção, essa confiança, esse amor é colocado à prova, tudo desmorona — estou chorando agora, mas não me envergonho das lágrimas brilhando em meu rosto ou na minha voz grossa. — Então você deve ter mentido quando me disse todas essas coisas... Você deve ter, porque não posso acreditar que seu amor é realmente tão fraco.
Eu caminho mais perto dele, de modo que há apenas alguns centímetros entre nós, e nenhum dos outros podem me ouvir.
— Eu ainda sou a pessoa que teria morrido ao invés de matá-lo — falo, lembrando-me da simulação de ataque e a sensação de seu batimento cardíaco sob a minha mão. — Eu sou exatamente quem você acha que eu sou. E agora, estou dizendo a você que eu sei... Eu sei que esta informação vai mudar tudo. Tudo o que temos feito, e tudo o que estamos prestes a fazer.
Eu fico olhando para ele como se pudesse comunicar a verdade com os meus olhos, mas é impossível. Ele olha para o lado, e não tenho certeza de que ele ouviu o que eu disse.
— Chega disso — Tori fala. — Leve-a para baixo. Ela vai ser julgada juntamente com todos os outros criminosos de guerra.
Tobias não se move. Uriah toma o meu braço e me leva, através do laboratório, através da Sala da Luz, através do corredor azul. Therese dos sem facção reúne-se a nós, olhando-me com curiosidade.
Uma vez que estamos na escada, sinto algo cutucar meu lado. Quando olho para trás, vejo um chumaço de gaze na mão de Uriah. Eu pego, tentando dar-lhe um sorriso grato e falhando.
À medida que descemos as escadas, embrulho a gaze firmemente em torno de minha mão, evitando os corpos sem olhar seus rostos. Uriah segura meu cotovelo para evitar que eu caia. A gaze não ajuda com a dor da picada, mas me faz sentir um pouco melhor, e assim o fato de que Uriah, pelo menos, não parece me odiar.
Pela primeira vez, o desrespeito da Audácia à idade não parece ser uma oportunidade. Parece ser a coisa que vai me condenar. Eles não vão dizer, mas ela é jovem, deve ter estado confusa. Eles vão dizer: Ela é adulta, e fez sua escolha.
Claro que eu concordo com eles. Eu fiz a minha escolha. Eu escolhi minha mãe e meu pai, e pelo o que eles lutaram.

+ + +

Descer as escadas é mais fácil do que subir. Chegamos ao quinto nível antes de eu perceber que estamos indo para o átrio.
— Dê-me a sua arma, Uriah — diz Therese. — Alguém precisa ser capaz de atirar nos agressores potenciais, e você não pode fazer isso se estiver impedindo-a de cair da escada.
Uriah entrega sua arma sem duvidar. Eu encaro – Therese já tem uma arma, então por que importa que ele desse a dele? Mas eu não pergunto. Estou em problemas suficientes como estou.
Chegamos ao piso inferior e passamos por uma grande sala de reuniões cheia de pessoas vestidas de preto e branco. Faço uma pausa por um momento para observá-los. Alguns deles estão reunidos em pequenos grupos, apoiando uns aos outros, lágrimas riscando seus rostos. Outros estão sozinhos, inclinando-se contra as paredes ou sentados nos cantos, seus olhos vazios ou olhando para algo que está longe.
— Tivemos de matar tantos — Uriah resmunga, apertando meu braço. — Só para entrar no edifício, tínhamos que fazer.
— Eu sei — eu digo.
Vejo a irmã de Christina e sua mãe agarradas juntas ao lado direito da sala. E, do lado esquerdo, um jovem homem com cabelo escuro que brilha na luz fluorescente – Peter. Sua mão está sobre o ombro de uma mulher de meia-idade que reconheço como sua mãe.
— O que ele está fazendo aqui? — pergunto.
— O covarde veio depois, quando todo o trabalho já tinha sido feito — Uriah responde — ouvi que o pai dele está morto. Embora pareça que sua mãe está bem.
Peter olha por cima do ombro e seu olhar encontra o meu, só por um segundo. Nesse segundo tento chamar um pouco de piedade pela pessoa que salvou minha vida. Mas, enquanto o ódio que eu tinha por ele uma vez se foi, ainda não sinto nada.
— Por que a demora? — Therese pergunta. — Continue caminhando.
Nós andamos passando pela sala de reunião para o lobby principal, onde eu uma vez abracei Caleb. O retrato gigante de Jeanine está em pedaços no chão. A fumaça que paira no ar é condensada em torno das estantes, que estão queimadas até as cinzas. Todos os computadores estão em pedaços, espalhados pelo chão.
Sentados em filas no centro da sala estão alguns dos Eruditos que não fugiram, e os traidores da Audácia que sobreviveram. Procuro rostos familiares. Acho Caleb lá trás, parecendo atordoado. Desvio o olhar.
— Tris! — eu ouço.
Christina está mais para frente, ao lado de Cara, sua perna embrulhada com tecido. Ela acena para mim, e eu me sento ao lado dela.
— Nenhum sucesso? — ela pergunta em voz baixa.
Eu balanço a cabeça.
Ela suspira e coloca o braço em torno de mim. O gesto é tão confortável que quase começo a chorar. Mas Christina e eu não somos pessoas que choram juntas, somos pessoas que lutam juntas. Então seguro minhas lágrimas.
— Eu vi sua mãe e sua irmã na sala ao lado — digo.
— Sim, eu também. Minha família está bem.
— Bom. Como está a sua perna?
— Bem. Cara disse que vai ficar bem, e não está sangrando muito. Uma das enfermeiras da Erudição encheu seus bolsos de gaze e analgésicos antes de a trazerem aqui, então também não dói muito — ao lado dela, Cara está examinando o braço de outra garota da Erudição. — Onde está o Marcus?
— Não sei — respondo. — Tivemos que nos separar. Ele deveria estar aqui. A menos que o mataram ou algo assim.
— Eu honestamente não ficaria tão surpresa — ela concorda.
A sala fica caótica por um tempo – pessoas correndo para dentro e para fora novamente, nossos guardas sem facção trocando de lugares, novas pessoas em azul Erudição sendo trazidas para sentarem-se entre nós – mas gradualmente tudo fica mais tranquilo, e então eu o vejo. Tobias, andando pela porta da escada.
Mordo meu lábio forte para tentar não pensar, tentar não pensar na sensação fria que envolve meu peito e no peso que paira sobre a minha cabeça. Ele me odeia. Ele não acredita em mim.
Christina me abraça mais apertado quando ele passa por nós, sem sequer olhar para mim. Eu observo por cima do meu ombro. Ele para ao lado de Caleb, pega seu braço, e o puxa em pé. Caleb se contorce por um segundo, mas ele não é tão forte como Tobias e não pode fugir.
— O quê? — Caleb diz, em pânico. — O que você quer?
— Quero que você desarme o sistema de segurança do laboratório de Jeanine — Tobias fala sem olhar para trás. — Para que os sem facção possam acessar o computador.
E destruí-lo, eu penso, e se é possível, meu coração se torna ainda mais pesado. Tobias e Caleb desaparecem pela escada de novo.
Christina cai contra mim, e eu caio contra ela, então apoiamos uma à outra.
— Jeanine ativou todos os transmissores da Audácia, você sabe — Christina fala. — Um grupo dos sem facção foi emboscado esta tarde pelos integrantes da Audácia controlados pela simulação, saindo tarde do setor da Abnegação cerca de dez minutos atrás. Acho que os sem facção venceram, embora eu não sei como você chama de vencer disparar em um monte de pessoas com morte cerebral.
— Sim.
Não há muito mais a dizer. Ela parece perceber isso.
— O que aconteceu depois que eu comecei atirar? — ela pergunta.
Eu descrevo o corredor azul com duas portas, e a simulação que seguiu, do momento que reconheci a sala de treinamento da Audácia ao momento em que atirei. Não conto a ela sobre a alucinação com Will.
— Espere. Foi uma simulação? Sem um transmissor?
Eu franzo a testa. Não tinha me preocupado em pensar sobre isso. Especialmente na hora.
— Se o laboratório reconhece as pessoas, talvez ele também saiba os dados sobre todos, e pode apresentar um ambiente simulado correspondente, dependendo da sua facção.
Não importa, agora, descobrir como Jeanine configurou a segurança em seu laboratório, de todas as coisas. Mas me sinto bem por ter algo em que pensar, um novo problema para resolver, agora que não consegui resolver o mais importante.
Christina senta-se ereta. Talvez ela se sinta da mesma forma.
— Ou o veneno de alguma forma contém um transmissor.
Eu não tinha pensado nisso.
— Mas como é que Tori passou por isso? Ela não é Divergente.
Eu inclino minha cabeça.
— Eu não sei.
Talvez ela seja, penso. Seu irmão era, e depois do que aconteceu com ele, ela poderia nunca admitir, não importa quão aceitável se torne.
As pessoas, eu descobri, são camadas e camadas de segredos. Você acredita que as conhece, que as entende, mas seus motivos estão sempre escondidos de você, enterrados em seus próprios corações. Você nunca vai conhecê-las, mas às vezes decide confiar nelas.
— O que você acha que eles farão com a gente quando nos considerarem culpadas? — ela pergunta, depois que alguns minutos de silêncio se passaram.
— Honestamente?
— Agora parece ser hora de honestidade?
Eu olho para ela pelo canto do olho.
— Acho que eles nos forçarão a comer montes de bolo e depois dar uma soneca injustificadamente longa.
Ela ri. Eu tento não rir – se eu começar a rir, vou começar a chorar também.

+ + +

Ouço um grito, e olho em torno da multidão para ver de onde veio.
— Lynn! — o grito veio de Uriah.
Ele corre em direção à porta, onde dois Audaciosos estão levando Lynn em uma maca improvisada, feita do que parece ser uma prateleira de estante. Ela está pálida – muito pálida – e suas mãos estão dobradas sobre seu estômago.
Eu levanto e começo a andar para ela, mas algumas armas dos sem facção me impedem de ir muito mais longe. Abaixo minhas mãos e fico parada, observando.
Uriah anda em torno da multidão de criminosos de guerra e aponta para uma mulher da Erudição de aparência severa e cabelos grisalhos.
— Você. Venha aqui.
A mulher levanta e passa a mão em suas calças. Ela anda, rápido, para a borda da multidão sentada e olha com expectativa para Uriah.
— Você é médica, certo? — ele pergunta.
— Eu sou, sim — ela confirma.
— Então cure-a! — Ele faz uma carranca. — Ela está ferida.
A médica se aproxima de Lynne e pede aos dois Audaciosos para abaixá-la. Eles o fazem, e ela se agacha sobre a maca.
— Minha cara. Por favor, tire as mãos da sua ferida.
— Eu não posso — lamenta Lynn. — Dói.
— Estou ciente de que dói — a médica diz. — Mas não vou ser capaz de avaliar sua ferida se você não mostrá-la para mim.
Uriah se ajoelha em frente à médica e ajuda a tirar as mãos de Lynn de seu estômago. A médica tira a camisa de Lynn de seu estômago. O ferimento de bala em si é apenas um círculo vermelho na pele de Lynn, mas em torno dele há o que parece ser um hematoma. Eu nunca vi uma contusão tão escura.
A médica franze os lábios, e sei que Lynn está praticamente morta.
— Cure-a! — diz Uriah. — Você pode curá-la, então faça!
— Pelo contrário — a médica responde, olhando para ele. — Porque vocês incendiaram os andares do hospital desse prédio, e não posso ajudá-la.
— Há outros hospitais! — diz ele, quase gritando. — Você pode conseguir coisas de lá e curá-la!
— Sua condição é muito avançada — a médica responde, sua voz baixa. — Se vocês não tivessem insistido em queimar tudo em seu caminho, eu poderia ter tentado, mas como está a situação, tentar seria inútil.
— Cale-se! — ele ordena, apontando a arma para o peito da médica. — Não fui eu quem queimou seu hospital! Ela é minha amiga, e eu... eu só...
— Uri — diz Lynn. — Cale-se. É muito tarde.
Uriah deixa sua arma cair com ruído no chão e pega a mão de Lynn, seu lábio trêmulo.
— Eu sou amiga dela, também — falo aos sem facção com armas apontando para mim. — Podem, pelo menos, mirar em mim lá?
Eles me deixam passar e eu corro para o lado de Lynn, segurando sua mão livre, que está pegajosa com sangue. Ignoro as armas apontadas para a minha cabeça e me concentro no rosto de Lynn, que agora está amarelado em vez de branco.
Ela não parece me notar. Ela se concentra em Uriah.
— Estou feliz por não morrer enquanto estava sob a simulação — ela fala fracamente.
— Você não vai morrer agora — diz ele.
— Não seja estúpido. Uri, ouça. Eu a amava também. Eu amava.
— Você amava quem? — ele pergunta, sua voz quebrando.
— Marlene — Lynn responde.
— Sim, todos nós amávamos Marlene.
— Não, não é isso que eu quero dizer — ela balança a cabeça.
Ela fecha os olhos. Ainda assim, demora alguns minutos antes de sua mão ficar mole na minha. Eu a guio para seu estômago, e então pego sua outra mão de Uriah e faço o mesmo. Ele limpa os olhos antes que suas lágrimas possam cair. Nossos olhos se encontram sobre seu corpo.
— Você deve dizer a Shauna — falo. — E Hector.
— Certo.
Ele funga e pressiona a palma da mão para o rosto de Lynn. Eu me pergunto se seu rosto ainda está quente. Eu não quero tocá-la e descobrir que ele não está.
Levanto e caminho de volta para Christina.

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