O soro desaparece cinco horas depois, quando o sol está apenas começando a aparecer. Tobias me trancou no quarto o resto do dia, verificando-me a cada hora. No momento em que ele entra, estou sentada na cama, olhando para a parede.
— Graças a Deus — diz ele, pressionando sua testa na porta. — Eu estava começando a pensar que nunca passaria e eu teria que deixá-la aqui para... cheirar flores, ou o que você quisesse fazer enquanto estava nesse estado.
— Eu vou matá-los — digo. — Eu vou matá-los.
— Não se incomode. Estamos saindo, de qualquer maneira — ele fala, fechando a porta atrás dele. Ele leva o disco rígido no bolso de trás. — Eu pensei que poderia escondê-lo atrás de sua cômoda.
— É aí que estava antes.
— Sim, e é por isso que Peter não olhará aqui novamente.
Tobias puxa a cômoda para longe da parede com uma mão e empurra o disco rígido por trás com a outra.
— Por que eu não podia lutar contra o soro da paz? Se o meu cérebro é estranho o suficiente para resistir ao soro da simulação, por que não este?
— Eu não sei, realmente — ele cai ao meu lado na cama, empurrando o colchão. — Talvez para lutar contra um soro você tenha que querer.
— Bem, obviamente eu queria — digo, frustrada, mas sem convicção. Será que eu queria? Ou foi bom esquecer a raiva, esquecer a dor, esquecer tudo por algumas horas?
— Às vezes — diz ele, deslizando o braço sobre os meus ombros — as pessoas só querem ser felizes, mesmo que isso não seja real.
Ele está certo. Mesmo agora, esta paz entre nós vem de não falar sobre as coisas – sobre Will, ou meus pais, ou eu quase atirar na cabeça dele, ou Marcus. Mas eu não me atrevo a perturbá-la com a verdade, porque estou muito ocupada me agarrando a ela para obter suporte.
— Você pode estar certo — digo em voz baixa.
— Você está concordando? — ele diz com a boca aberta, simulando surpresa. — Parece que o soro fez algo de bom, afinal...
Eu o empurro tão forte quanto posso.
— Retire o que disse. Retire o que disse agora.
— Ok, ok! — Ele ergue as mãos. — É só que... eu também não sou muito legal, sabe. É por isso que gosto de você assim...
— Fora! — eu grito, apontando para a porta.
Rindo para si mesmo, Tobias beija minha bochecha e sai do quarto.
+ + +
Naquela noite, estou muito envergonhada com o que aconteceu para ir jantar, então passo o tempo nos ramos de uma macieira na extremidade do pomar, colhendo maçãs maduras. Eu subo tão alto quanto me atrevo, os músculos queimam. Descobri que ficar parada deixa pequenos espaços para o sofrimento entrar, então fico ocupada.
Estou limpando minha testa com a barra da minha camisa, de pé sobre um galho, quando ouço o som. É fraco, num primeiro momento, junto com o zumbido das cigarras. Fico parada para ouvir, e depois de um momento, percebo o que é: carros.
A Amizade tem cerca de uma dúzia de caminhões que eles usam para o transporte de mercadorias, mas eles só fazem isso no fim de semana. Minha nuca formiga. Se não é a Amizade, é provavelmente a Erudição. Mas eu tenho que ter certeza.
Pego o ramo acima de mim com ambas as mãos, mas me puxo para cima só com meu braço esquerdo. Estou surpresa que ainda sou capaz de fazer isso. Eu estou curvada, os galhos emaranhados no cabelo. Algumas maçãs caem no chão quando mudo meu peso. Macieiras não são muito altas; posso não ser capaz de ver longe o suficiente.
Uso os galhos próximos como degraus, com as mãos para me firmar, torcendo e apoiando-me em torno da árvore. Lembro-me de subir a roda gigante no cais, meus músculos tremendo, minhas mãos palpitantes. Estou ferida agora, mas mais forte, e a escalada parece mais fácil.
Os ramos ficam mais finos, mais fracos. Eu lambo meus lábios e olho para o próximo galho. Preciso subir o mais alto possível, mas o ramo que estou buscando é curto e parece maleável. Coloco meu pé sobre ele, testando a sua força. Ele se inclina, mas se mantém. Começo a me levantar para colocar o outro pé para baixo e o ramo se parte.
Eu suspiro enquanto caio para trás, agarrando o tronco da árvore no último segundo. Terá que ser alto o suficiente. Fico nas pontas dos pés e viro na direção do barulho.
No começo não vejo nada, só um trecho de terra cultivada, uma faixa de terreno vazio, a cerca, e os campos e o começo de edifícios que se encontram fora dela. Mas se aproximando do portão estão pequenas manchas em movimento – prata, quando a luz bate nelas. Carros com teto preto – painéis solares, o que significa apenas uma coisa. Erudição.
A respiração sibila entre meus dentes. Eu não me permito pensar; só coloco um pé depois do outro, tão rápido que cascas caem dos ramos para o chão. Assim que os meus pés tocam a terra, eu corro.
Conto as fileiras de árvores enquanto passo. Sete, oito. Os ramos mergulham para baixo, e eu passo logo abaixo deles. Nove, dez. Eu seguro meu braço direito contra o peito enquanto e corro mais rápido, o ferimento de bala no meu ombro latejando com cada passo. Onze, doze.
Quando chego à décima terceira fileira, jogo o meu corpo para a direita, por um dos corredores. As árvores estão bem juntas na décima terceira fileira. Seus ramos crescem um no outro, criando um labirinto de folhas, galhos e maçãs.
Meus pulmões queimam pela falta de oxigênio, mas não estou muito longe do final do pomar. O suor corre em minhas sobrancelhas. Chego ao salão de jantar e abro as portas, abrindo meu caminho através de um grupo de homens da Amizade, e ele está lá. Tobias se senta em uma extremidade do refeitório com Peter, Caleb e Susan. Eu mal posso vê-los entre os pontos na minha visão, mas Tobias toca meu ombro.
— Erudição — é tudo o que eu consigo dizer.
— Vindo para cá? — ele pergunta.
Concordo com a cabeça.
— Temos tempo para fugir?
Eu não tenho certeza sobre isso.
Agora, a Abnegação na outra ponta da mesa está prestando atenção. Eles se reúnem em torno de nós.
— Por que temos de fugir? — Susan pergunta. — A Amizade estabeleceu este lugar como uma casa segura. Não é permitido conflito.
— A Amizade terá problemas para aplicar essa política — diz Marcus. — Como é que você para um conflito sem conflito?
Susan concorda.
— Mas nós não podemos ir embora — diz Peter. — Não temos tempo. Eles vão nos ver.
— Tris tem uma arma — Tobias diz. — Podemos tentar lutar para sair.
Ele começa a andar em direção ao dormitório.
— Espere — eu digo. — Tenho uma ideia — faço a varredura da multidão da Abnegação. — Disfarces. A Erudição não sabe com certeza que ainda estamos aqui. Podemos fingir ser da Amizade.
— Aqueles de nós que não estão vestidos como a Amizade devem ir para os dormitórios, então — diz Marcus. — O resto de vocês, solte o cabelo; tente imitar seu comportamento.
Os membros da Abnegação que estão vestidos de cinza deixam a sala de jantar em um grupo e atravessam o pátio para os dormitórios de hóspedes. Uma vez lá dentro, eu corro para o meu quarto, fico de joelhos e alcanço a arma sob o colchão.
Levo alguns segundos antes de encontrá-la, e quando faço, a minha garganta fecha, e não consigo engolir. Eu não quero tocar a arma. Não quero tocá-la novamente.
Vamos, Tris. Enfio a arma no cós da calça vermelha. É uma sorte que elas sejam tão folgadas. Eu observo os frascos de pomada de cicatrização e remédio para dor na mesa de cabeceira e enfio na minha bolsa, para o caso de conseguirmos escapar.
Então alcanço o disco rígido por trás da cômoda.
Se a Erudição nos pegar – o que é provável – eles vão nos revistar, e eu não quero simplesmente entregar o ataque da simulação novamente. Mas este disco rígido também contém as imagens de vigilância do ataque. O registro de nossas perdas. Das mortes dos meus pais. A única parte deles que sobrou. E porque a Abnegação não tira fotos, a única documentação que tenho de como eles pareciam.
Anos a partir de agora, quando minhas lembranças começarem a desaparecer, o que eu terei para me lembrar de como pareciam? Seus rostos vão mudar na minha mente. Eu nunca vou vê-los novamente.
Não seja estúpida. Não é importante.
Eu aperto o disco rígido tão firmemente que dói.
Então, por que sinto que é tão importante?
— Não seja estúpida — eu digo em voz alta.
Cerro os dentes e pego a lâmpada da minha mesa de cabeceira. Arranco da tomada, jogo o abajur para a cama, e agacho sobre o disco rígido. Piscando as lágrimas de meus olhos, bato a base do abajur nele, criando um amassado.
Eu trago o abajur de novo, e de novo, e de novo, até que o disco rígido racha e pedaços se espalham por todo o chão. Então chuto os cacos sob a cômoda, coloco a lâmpada de volta, e vou para o corredor, enxugando os olhos com as costas da minha mão.
Poucos minutos depois, uma pequena multidão de homens e mulheres vestidos de cinza – e Peter – está no corredor, fazendo a triagem através das pilhas de roupas.
— Tris — diz Caleb. — Você ainda está vestindo cinza.
Eu belisco a camisa do meu pai, e hesito.
— É do meu pai.
Se eu me trocar, vou ter que deixar isso para trás. Mordo o lábio para me firmar na dor. Tenho que me livrar dela. É apenas uma camisa. Isso é tudo o que é.
— Vou colocá-la sob a minha — Caleb diz. — Eles não vão ver.
Concordo com a cabeça e pego uma camisa vermelha da pilha cada vez menor de roupas. É grande o suficiente para esconder a protuberância da arma. Eu parto para uma sala próxima, me troco e entrego a camisa cinza a Caleb quando chego ao corredor. A porta está aberta, e através dela vejo Tobias jogando as roupas da Abnegação na lata do lixo.
— Você acha que a Amizade vai mentir por nós? — pergunto, me encostando ao batente da porta aberta.
— Para evitar conflito? — Tobias responde. — Com certeza.
Ele veste uma camisa vermelha de colarinho e um jeans que está se desgastando no joelho. A combinação parece ridícula nele.
— Bonita camisa — eu digo.
Ele enruga o nariz para mim.
— Foi a única coisa que encobriu a tatuagem no pescoço, ok?
Eu sorrio nervosamente. Esqueci sobre as minhas tatuagens, mas a camisa as esconde bem o suficiente.
Os carros da Erudição seguem até o complexo. Há cinco deles, todos prata com teto negro. Seus motores parecem ronronar quando as rodas batem no terreno irregular. Eu escorrego para dentro do prédio, deixando a porta aberta atrás mim, onde Tobias se ocupa com a tampa da lata de lixo.
Os carros param, e as portas abrem, revelando pelo menos cinco homens e mulheres em azul Erudição.
E cerca de quinze em preto da Audácia.
Quando os integrantes da Audácia chegam mais perto, vejo tiras de tecido azul envoltas em seus braços que só podem significar sua fidelidade à Erudição. A facção que escravizou suas mentes.
Tobias pega a minha mão e me leva para o dormitório.
— Eu não achei que a nossa facção seria tão burra — diz ele. — Você tem a arma, certo?
— Sim. Mas não garanto que possa atirar com precisão com a mão esquerda.
— Você deve trabalhar nisso — diz ele. Sempre um instrutor.
— Eu vou — tremo um pouco enquanto acrescento: — se vivermos.
Suas mãos roçam meus braços nus.
— Basta saltar um pouco quando você andar — ele diz, beijando minha testa. — E fingir que você tem medo de suas armas — outro beijo entre minhas sobrancelhas. — E aja como a pessoa tímida que você nunca poderia ser — um beijo na minha bochecha. — E você vai ficar bem.
— Tudo bem.
Minhas mãos tremem quando agarro o colarinho da camisa. Eu puxo a sua boca para a minha.
Um sino toca, uma vez, duas vezes, três vezes. É um chamado para o salão de jantar, onde a Amizade se reúne para ocasiões menos formais do que a reunião a que comparecemos. Nós nos unimos à multidão de Abnegação que virou Amizade.
Eu puxo grampos do cabelo de Susan – o penteado é muito sério para a Amizade. Ela me dá um pequeno sorriso agradecido quando o cabelo cai sobre os ombros, a primeira vez que eu a vi dessa maneira. Suaviza o queixo quadrado.
Eu devo ser mais corajosa do que a Abnegação, mas eles não parecem tão preocupados quanto eu. Eles oferecem sorrisos um ao outro e caminham em silêncio – silêncio demais. Eu faço meu caminho entre eles e cutuco uma das mulheres mais velhas no ombro.
— Diga as crianças para brincar de pega-pega — eu digo a ela.
— Pega-pega? — ela pergunta.
— Eles estão agindo respeitosos e... Caretas — eu digo, encolhendo-me quando digo a palavra que era meu apelido no Audácia. — E as crianças da Amizade estariam causando um tumulto. Só faça isso, ok?
A mulher toca uma criança da Abnegação no ombro e sussurra algo para ele, e alguns segundos mais tarde um pequeno grupo de crianças corre pelo corredor, desviando dos pés da Amizade e gritando:
— Eu te peguei! Está com você!
— Não, essa foi a minha manga!
Caleb aperta as costelas de Susan, então ela grita, rindo. Tento relaxar, injetando um balanço no andar como Tobias sugeriu, deixando meus braços balançarem enquanto dobro esquinas. É incrível como fingir estar em uma facção diferente muda tudo – até mesmo a maneira como ando. Deve ser por isso que é tão estranho que eu poderia facilmente pertencer a três delas.
Nós alcançamos a Amizade enquanto atravessamos o pátio para o salão de jantar e nos dispersamos entre eles. Mantenho Tobias em minha visão periférica, não querendo me afastar muito dele. Os da Amizade não fazem perguntas, apenas nos deixam nos dissolver em sua facção.
Um par de traidores Audácia está ao lado da porta para o salão de jantar, armas na mão, e eu endureço. É uma sensação real, de repente, que estou desarmada e sendo levada para um prédio cercado por Eruditos e Audaciosos, e se eles me descobrirem, não haverá para onde correr. Eles vão atirar em mim no local.
Eu considero fugir assim mesmo. Mas para onde eu poderia ir que eles não poderiam me pegar? Tento respirar normalmente. Eu estou quase passando por eles – não olhe, não olhe. A poucos passos de distância – olhe para longe, longe.
Susan enlaça seu braço com o meu.
— Eu estou contando uma piada — ela diz — que você acha muito engraçada.
Eu cubro minha boca com a minha mão e forço uma risadinha que soa alta e estranha, mas a julgar pelo sorriso que ela me dá, é crível. Penduramo-nos uma na outra como as meninas da Amizade fazem, olhando para os integrantes da Audácia e rindo novamente. Estou impressionada pela forma como consigo fazer isso, com o sentimento de chumbo dentro de mim.
— Obrigada — murmuro uma vez que estamos dentro.
— De nada — ela responde.
Tobias fica na minha frente ao longo de uma das mesas, e Susan se senta ao meu lado. O resto da Abnegação espalha-se por toda a sala, e Caleb e Peter estão alguns lugares abaixo de mim.
Batuco meus dedos em meus joelhos enquanto esperamos que algo aconteça. Por um tempo nós apenas sentamos lá, e finjo ouvir uma menina da Amizade contar uma história à minha esquerda. Mas de vez em quando eu olho para Tobias, e ele olha para mim, como se estivéssemos passando o medo entre nós.
Finalmente Johanna entra com uma mulher da Erudição. Sua camisa azul brilhante parece brilhar contra sua pele, que é marrom escura. Ela procura pelo salão enquanto fala com Johanna. Prendo a respiração quando seus olhos me encontram – e então a solto quando ela continua sem um momento de hesitação. Ela não me reconheceu.
Pelo menos, não ainda.
Alguém bate em uma mesa, e a sala fica em silêncio. É isso. Este é o momento em que ela vai nos entregar, ou não.
— Nossos amigos da Erudição e da Audácia estão à procura de algumas pessoas — Johanna diz. — Vários membros da Abnegação, três membros da Audácia e um ex-iniciado da Erudição — ela sorri. — No interesse de uma cooperação plena, eu disse a eles que as pessoas que procuram estavam, de fato, aqui, mas que, desde então, foram embora. Eles gostariam da permissão para vistoriar as instalações, o que significa que temos de votar. Alguém objeta por uma busca?
A tensão em sua voz sugere que se alguém se opuser, eles devem manter sua boca fechada. Eu não sei se a Amizade pega esse tipo de coisa, mas ninguém diz nada. Johanna acena para a mulher da Erudição.
— Três de vocês ficam — a mulher diz para os guardas da Audácia agrupados na entrada. — O resto de vocês, vistoriem todos os edifícios e reportem aqui se encontrarem alguma coisa. Vão.
Há tanta coisa que podiam encontrar. As peças do disco rígido. Roupas que eu me esqueci de jogar fora. Uma suspeita falta de bijuterias e decorações em nossos aposentos. Sinto minha pulsação rápida enquanto os três soldados da Audácia que ficaram andam para cima e para baixo pelas fileiras de mesas.
A parte de trás do meu pescoço formiga quando um deles anda atrás de mim, seus passos altos e pesados. Não pela primeira vez na minha vida, eu estou contente por ser pequena e comum. Eu não atraio os olhos das pessoas para mim.
Mas Tobias sim. Ele veste o seu orgulho na postura, na forma como seus olhos reivindicam tudo o que pousam. O que não é uma característica da Amizade. Só pode ser da Audácia.
A mulher Audácia andando em direção a ele olha direto para ele. Seus olhos se estreitam quando ela chega mais perto, e então para diretamente atrás dele.
Eu gostaria que o colarinho de sua camisa fosse mais alto. Eu gostaria que ele não tivesse tantas tatuagens. Eu gostaria...
— Seu cabelo é muito curto para a Amizade — diz ela.
... ele não cortou seu cabelo como a Abnegação.
— Está quente — ele responde.
A desculpa poderia funcionar se ele soubesse como responder, mas ele diz com um estalo.
Ela estende a mão e, com o dedo indicador, puxa o colarinho de sua camisa para ver sua tatuagem.
E Tobias se move.
Ele pega o pulso da mulher, puxando-a para frente para que ela perca seu equilíbrio. Ela bate com a cabeça contra a borda da mesa e cai. Do outro lado da sala, uma arma dispara, alguém grita, e todos mergulham sob as mesas ou agacham ao lado dos bancos.
Todos, com exceção de mim. Sento onde eu estava antes do tiro soar, agarrando a borda da mesa. Eu sei onde estou, mas não vejo mais o refeitório. O que vejo é o beco por onde escapei depois que minha mãe morreu. Eu olho para a arma em minhas mãos, a pele suave entre as sobrancelhas de Will.
Um pequeno gorjeio em minha garganta. Teria sido um grito se os meus dentes não estivessem bem fechados. O flash de memória desvanece, mas eu ainda não posso me mover.
Tobias pega a mulher Audácia pela nuca e a põe de pé. Ele tem a arma dela na mão. A usa como escudo enquanto atira sobre seu ombro direito no soldado da Audácia do outro lado da sala.
— Tris — ele grita. — Um pouco de ajuda aqui?
Puxo minha camisa apenas o suficiente para alcançar o cabo da arma, e meus dedos encontram o metal. Está tão frio que dói meus dedos, mas não pode ser; está tão quente aqui. Um homem da Audácia no final do corredor mira seu próprio revólver para mim. O ponto preto na extremidade do cano cresce em torno de mim, e posso ouvir meu coração, mas nada mais.
Caleb salta para frente e agarra a minha arma. Ele a segura com as duas mãos e atira nos joelhos do homem da Audácia que fica a poucos metros dele.
O homem da Audácia grita e cai com as mãos segurando sua perna, o que dá a oportunidade de Tobias atirar na cabeça dele. Sua dor é momentânea.
Meu corpo inteiro está tremendo e eu não posso parar. Tobias tem ainda a mulher Audácia pelo pescoço, mas desta vez, ele aponta sua arma para a mulher da Erudição.
— Diga outra palavra — Tobias fala — e eu vou atirar.
A boca da mulher da Erudição está aberta, mas ela não fala.
— Quem está com a gente deveria começar a correr — diz Tobias, sua voz enchendo a sala.
Todos de uma vez, a Abnegação se levanta de seus lugares debaixo de mesas e bancos, e começa a andar em direção à porta. Caleb me puxa do banco. Eu ando na direção da porta.
Então vejo alguma coisa. Um contorcer, um lampejo de movimento. A mulher da Erudição levanta uma arma pequena, aponta para um homem com camisa amarela na minha frente. Instinto, não a presença de espírito, me empurra para um mergulho. Minhas mãos colidem com o homem, e a bala atinge a parede, em vez dele, em vez de mim.
— Abaixa a arma — diz Tobias, apontando o revólver para a mulher da Erudição. — Eu tenho uma pontaria muito boa, e estou apostando que você não tem.
Eu pisco algumas vezes para remover as manchas dos meus olhos. Peter olha para mim. Eu acabei de salvar sua vida. Ele não me agradece, e eu não o reconheço.
A mulher da Erudição deixa cair a arma. Juntos, eu e Peter caminhamos em direção à porta. Tobias nos segue, andando de costas para que ele possa manter sua arma na mulher da Erudição. No último segundo antes de ele passar do batente, ele bate a porta entre eles.
E todos nós corremos.
Corremos pelo corredor central do pomar em um bloco sem fôlego. O ar da noite está pesado como um cobertor e com cheiro de chuva. Gritos nos seguem. Portas de carro batem. Eu corro o mais rápido que posso correr, como se estivesse respirando adrenalina em vez de ar. O ronronar dos motores me persegue entre as árvores. A mão de Tobias fecha em torno da minha.
Corremos através de um campo de milho em uma longa fila. A essa hora, os carros já nos alcançaram. Os faróis rastejam através dos caules altos e iluminando uma folha aqui, uma espiga de milho lá.
— Dividam-se! — alguém grita, e parece Marcus.
Nos dividimos e espalhamos através do campo como água derramando. Eu agarro o braço de Caleb. Eu ouço Susan ofegante atrás de Caleb.
Nós derrubamos mais espigas de milho. As folhas pesadas cortam meu rosto e braços. Eu olho entre as omoplatas de Tobias conforme corremos. Ouço um baque pesado e um grito. Há gritos por toda parte, à minha esquerda, à minha direita. Tiros. Os Abnegados estão morrendo de novo, morrendo como estavam quando eu fingia estar sob a simulação. E tudo o que estou fazendo é correr.
Finalmente chegamos à cerca. Tobias corre ao longo dela, empurrando-a até que encontra um buraco. Ele segura os elos da corrente para Caleb, Susan e eu rastejarmos por ela. Antes de começarmos a correr novamente, eu paro e olho para o milharal de onde acabamos de sair. Eu vejo à distância os faróis brilhantes. Mas não ouço nada.
— Onde estão os outros? — sussurra Susan.
Eu digo:
— Morreram.
Susan soluça. Tobias me puxa para o seu lado, e começa a avançar. Minha face queima com cortes superficiais das folhas de milho, mas meus olhos estão secos. As mortes da Abnegação são apenas outro peso que não posso largar.
Ficamos longe da estrada de terra que a Erudição e a Audácia usaram para chegar ao complexo da Amizade, seguindo os trilhos de trem para a cidade. Não há onde se esconder aqui, nenhuma árvore ou edifício que possa nos proteger, mas não tem importância. A Erudição não pode dirigir através da cerca de qualquer maneira, e vai levar um tempo para eles alcançarem o portão.
— Eu tenho que... parar... — Susan fala de algum lugar na escuridão atrás de mim.
Paramos. Susan desmorona no chão, chorando, e Caleb se agacha ao lado dela. Tobias e eu olhamos para a cidade, que ainda está iluminada, porque não é meia-noite ainda. Eu quero sentir algo. Medo, raiva, tristeza. Mas eu não sinto. Tudo que eu sinto é a necessidade de me manter em movimento.
Tobias se vira para mim.
— O que foi aquilo, Tris? — ele diz.
— O quê? — e tenho vergonha de quão fraca a minha voz soa.
Eu não sei se ele está falando de Peter ou o que veio antes ou alguma outra coisa.
— Você congelou! Alguém estava prestes a te matar e você apenas ficou lá! — Ele está gritando agora. — Pensei que eu poderia confiar em você para salvar sua própria vida, pelo menos!
— Hey! — diz Caleb. — Dê um tempo a ela, tudo bem?
— Não — Tobias diz, olhando para mim. — Ela não precisa de um tempo — sua voz suaviza. — O que aconteceu?
Ele ainda acredita que eu sou forte. Forte o suficiente para que eu não precise de sua simpatia. Eu costumava pensar que ele estava certo, mas agora não tenho certeza. Eu limpo minha garganta.
— Entrei em pânico. Não vai acontecer de novo.
Ele levanta uma sobrancelha.
— Não vai — eu repito, mais alto desta vez.
— Tudo bem — ele não parece convencido. — Nós temos que chegar a algum lugar seguro. Eles vão se reagrupar e começar a procurar por nós.
— Você acha que eles se importam tanto assim com a gente?
— Com a gente, sim — ele responde. — Éramos provavelmente os únicos que importavam, além de Marcus, que provavelmente está morto.
Eu não sei como esperava que ele dissesse isso – com alívio, talvez, porque Marcus, seu pai e a ameaça de sua vida, finalmente se foi. Ou com dor e tristeza, porque seu pai pode ter sido morto, e às vezes a dor não faz muito sentido. Mas ele diz como se fosse apenas um fato, como a direção que estamos nos movendo ou a hora do dia.
— Tobias... — começo a dizer, mas então percebo que não sei o que dizer depois disso.
— Hora de ir — ele fala por sobre o ombro.
Caleb ajuda Susan a levantar. Ela se move apenas com a ajuda do braço dele sobre as costas, pressionando-a para frente.
Eu não percebi até este momento que a iniciação Audácia me ensinou uma lição importante: como me manter seguindo.
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