sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo trinta e nove

— Oh claro. Você parece completamente uma molenga tocadora de banjo — Christina diz.
— Sério?
— Não, de jeito nenhum, na verdade. Apenas... Deixe-me consertar isso, certo?
Ela vasculha sua bolsa por alguns segundos e tira uma caixa pequena. Nela há tubos de diferentes tamanhos e recipientes que eu reconheço como maquiagem, mas eu não saberia usar.
Nós estamos na casa de meus pais. É o único lugar que consegui pensar em ir para me aprontar. Christina se sente à vontade para bisbilhotar – ela já descobriu doislivros didáticos presos entre o guarda roupas e a parede, evidência da inclinação de Caleb para a Erudição.
— Deixe-me ver se entendi. Então você deixou a sede da Audácia para se preparar para a guerra... E trouxe sua bolsa de maquiagem com você?
— É. Achei que seria mais difícil alguém atirar em mim se percebesse o quão devastadoramente atraente eu sou — ela diz, arqueando uma sobrancelha. — Fique parada.
Ela retira a tampa de um tubo preto do tamanho de um dos meus dedos, revelando um bastão vermelho. Batom, obviamente. Ela o pressiona contra minha boca e dá batidinhas até que meus lábios estão cheios de cor. Posso ver quando os aperto.
— Alguém já te disse sobre os milagres de se fazer as sobrancelhas? — ela pergunta, segurando uma pinça.
— Afaste isso de mim.
— Certo — ela suspira. — Eu passaria o blush, mas tenho certeza de que não é a cor certa para você.
— Chocante, considerando que nós temos o tom de pele parecido.
— Ha-ha.
Quando nós saímos, meus lábios estão vermelhos e meus cílios curvados, e estou vestindo um vestido vermelho brilhante. E há uma faca presa do lado de dentro do meu joelho. Isso tudo faz perfeito sentido.
— Onde Marcus, Destruidor de Vidas, vai nos encontrar? — Christina pergunta.
Ela usa o amarelo da Amizade ao invés de vermelho, e ele brilha contra sua pele.
Eu rio.
— Atrás da sede da Abnegação.
Nós andamos pela calçada em silêncio. Todos os outros devem estar jantando agora – eu me assegurei disso – mas caso nos encontremos com alguém, estamos vestindo jaquetas pretas para ocultar nossa roupa da Amizade. Eu pulo sobre uma rachadura no concreto por hábito.
— Onde vocês duas estão indo? — a voz de Peter diz.
Olho por cima do ombro. Ele está na calçada atrás de nós. Eu me pergunto há quanto tempo ele está lá.
— Por que você não está com o seu grupo de ataque, jantando? — pergunto.
— Eu não tenho um — ele toca o braço em que atirei. — Estou machucado.
— Ah, claro que está! — Christina diz.
— Bem, eu não quero ir para a batalha com um bando de sem facção — ele diz, seus olhos verdes cintilando. — Então eu vou ficar aqui.
— Como um covarde — Christina rebate, seu lábio torcido em desgosto. — Deixe todo mundo limpar a bagunça para você.
— É! — ele fala com um tipo de satisfação maliciosa. Ele bate as mãos. — Divirtam-se morrendo.
Ele atravessa a rua, assobiando, e caminha na outra direção.
— Bem, nós o distraímos. Ele não perguntou aonde estávamos indo de novo.
— É. Bom — limpo minha garganta. — Então, esse plano. É um pouco estúpido, certo?
— Não é... Estúpido.
— Ah, vamos. Confiar em Marcus é burrice. Tentar passar pela Audácia na cerca é burrice. Ir contra a Audácia e os sem facção é burrice. Os três combinados é... um tipo diferente de estupidez nunca antes visto pela humanidade.
— Infelizmente, também é o melhor plano que temos — ela aponta. — Se nós queremos que todos saibam a verdade.
Eu confiei em Christina para pegar essa missão quando pensei que morreria, então parece estúpido não confiar nela agora. Eu estava preocupada que ela não quisesse vir comigo, mas me esqueci de onde Christina veio: Franqueza, onde a verdade é mais importante que tudo. Ela pode ser da Audácia agora, mas se há uma coisa que eu aprendi com isso tudo, é que nunca deixamos nossas antigas facções para trás.
— Então é aqui que você cresceu. Você gostava daqui? — Ela franze o cenho. — Acho que não, se você quis partir.
O sol vai se aproximando do horizonte enquanto caminhamos. Eu nunca gostei da luz da noite porque ela fazia tudo no setor da Abnegação mais monocromático do que já é, mas agora acho o cinza imutável reconfortante.
— Eu gostava de algumas coisas e odiava outras. E havia algumas coisas que eu não sabia que tinha até que as perdi.
Nós chegamos à sede da Abnegação, e sua frente é um quadrado de cimento como tudo no setor da Abnegação. Eu adoraria caminhar na sala de reunião e sentir o cheiro de madeira velha, mas não temos tempo. Nós entramos no beco próximo ao prédio e vamos até o fundo, onde Marcus me disse que estaria esperando.
Uma caminhonete azul espera lá, seu motor ligado. Marcus está atrás do volante. Eu deixo Christina caminhar à minha frente, então ela se sentará no meio. Não quero sentar perto dele se posso evitar. Sinto como se meu ódio por ele enquanto trabalhamos juntos diminui minha traição a Tobias de alguma forma.
Você não tem outra escolha, eu digo a mim mesma. Não há outro jeito.
Com isso em mente, fecho a porta e procuro pelo cinto de segurança. Acho apenas o fim desgastado do cinto de segurança e uma fivela quebrada.
— Onde você encontrou esse lixo? — Christina pergunta.
— Eu o roubei dos sem facção. Eles o consertaram. Não foi fácil fazê-lo ligar. Melhor tirar essas jaquetas, meninas.
Eu faço uma bola com nossas jaquetas e as jogo pela janela meio aberta. Marcus muda a marcha, e ela ronca. Eu meio que espero que continuemos parados quando ele pisa no acelerador, mas a caminhonete se move.

+ + +

Pelo o que me lembro, leva aproximadamente uma hora para dirigir do setor da Abnegação até a sede da Amizade, e a viagem requer um motorista habilidoso. Marcus entra em uma das principais vias e empurra o acelerador. Nós damos solavancos para frente, evitando por pouco um buraco na estrada. Eu agarro o painel para me estabilizar.
— Relaxe, Beatrice — Marcus diz. — Eu já dirigi um carro antes.
— Eu já fiz um monte de coisas antes, mas não significa que sou boa nelas!
Marcus sorri e vira a caminhonete para a esquerda para não acertarmos um semáforo caído. Christina grita enquanto esbarramos em outro pedaço de escombros, como se ela estivesse tendo o melhor momento de sua vida.
— Um tipo diferente de estupidez, certo? — ela diz, sua voz alta o suficiente para ser ouvida sobre a rajada de vento na cabine.
Eu aperto o banco embaixo de mim e tento não pensar no que comi no jantar.
Quando chegamos à cerca, vemos os integrantes da Audácia nos feixes de nossos faróis, bloqueando o portão. Suas braçadeiras azuis sobre o resto de suas roupas. Tento manter minha expressão agradável. Não penso em como poderia enganá-los para pensarem que sou da Amizade com uma carranca no rosto.
Um homem de pele escura com uma arma na mão se aproxima da janela de Marcus. Ele aponta a lanterna para Marcus primeiro, depois Christina, depois eu. Aperto os olhos contra o feixe, e forço um sorriso para o homem como se não me importasse com luzes brilhantes nos meus olhos e armas apontadas para minha cabeça.
A Amizade deve ser demente se esse é o modo como realmente pensam. Ou eles comeram muito daquele pão.
— Então me diga — o homem fala. — O que um membro da Abnegação está fazendo numa caminhonete com dois membros da Amizade?
— Essas duas garotas se voluntariaram para trazer suprimentos para a cidade — Marcus diz — e eu me voluntariei para trazê-las para que ficassem a salvo.
— E também, nós não sabemos dirigir — Christina fala, sorrindo. — Meu pai tentou me ensinar alguns anos atrás, mas eu continuava confundindo o acelerador com o freio, e você pode imaginar o desastre que isso foi! De qualquer forma, foi muito legal da parte de Joshua se voluntariar para nos trazer, porque teria levado um bom tempo de outro jeito, as caixas eram tão pesadas...
O guarda Audácia levantou sua mão.
— Certo, entendi.
— Oh, claro que sim. Desculpe — Christina ri — só pensei que deveria explicar, porque você parecia tão confuso, e com razão, porque quantas vezes você encontra...
— Certo — o homem repete. — E você pretende retornar à cidade?
— Não tão cedo — Marcus responde.
— Certo. Vão em frente, então.
Ele acena para os outros integrantes da Audácia no portão. Um deles digita uma série de números no teclado, e o portão se abre para nos deixar passar. Marcus acena para o guarda que nos deixou passar e dirige pelo caminho gasto para a sede da Amizade. Os faróis da caminhonete mostram marcas de pneus, pradarias e insetos voando para frente e para trás. Na escuridão à minha direita, vejo vaga-lumes se acendendo num ritmo parecido com o de batidas de coração.
Após alguns segundos, Marcus olha para Christina.
— O que foi aquilo?
— Não há nada que um integrante da Audácia deteste mais do que conversas alegres da Amizade — Christina diz, levantando um ombro. — Achei que se ele ficasse irritado, isso o distrairia e ele nos deixaria passar.
Eu sorrio com todos os meus dentes.
— Você é um gênio.
— Eu sei.
Ela vira a cabeça como se tivesse jogando seu cabelo sobre um ombro, apesar de não ter nenhum para jogar.
— Exceto — Marcus diz — que Joshua não é um nome da Abnegação.
— Tanto faz. Como se alguém soubesse a diferença.
Eu vejo o brilho da sede da Amizade à frente, o aglomerado de prédios de madeira com a estufa ao centro. Nós dirigimos através do pomar de maçãs. O ar cheira a terra quente.
De novo eu me lembro de minha mãe se esticando para pegar uma maçã nesse pomar, anos atrás quando viemos ajudar a Amizade na colheita. Uma angústia atinge meu peito, mas a memória não me esmaga como fazia há poucas semanas atrás. Talvez seja porque estou em uma missão para honrá-la. Ou talvez eu esteja muito apreensiva sobre o que vai acontecer para lamentar propriamente. Mas algo mudou.
Marcus estaciona a caminhonete atrás de umas cabines de dormir. Pela primeira vez, noto que não há chave na ignição.
— Como você conseguiu ligar? — pergunto a ele.
— Meu pai me ensinou muito sobre mecânica e computadores — ele diz. — Conhecimento que passei ao meu filho. Você não pensou que ele aprendeu tudo sozinho, pensou?
— Na verdade sim, pensei.
Abro a porta e saio da caminhonete. A grama roça meus dedos e panturrilhas. Christina fica à minha direita e joga a cabeça para trás.
— É tão diferente aqui fora — ela diz. — Você quase pode esquecer o que está acontecendo .
Ela aponta seu dedo para a cidade.
— E eles geralmente esquecem — observo.
— Mas eles sabem o que há além da cidade, certo? — ela pergunta.
— Eles sabem tanto quanto as patrulhas da Audácia — diz Marcus. — Que esse mundo do lado de fora é desconhecido e potencialmente perigoso.
— Como você sabe o que eles sabem? — pergunto.
— Porque foi o que dissemos a eles — ele fala, e caminha em direção à estufa.
Eu troco um olhar com Christina. Então nós corremos para alcançá-lo.
— O que isso significa?
— Quando você é confiado com toda a informação, tem que decidir o quanto as outras pessoas devem saber — Marcus diz. — Os líderes da Abnegação disseram a eles o que tínhamos que dizer. Agora, vamos esperar que Johanna esteja mantendo seus hábitos normais. Ela geralmente está na estufa a essa hora da noite.
Ele abre a porta da estufa. O ar é tão denso quanto da última vez em que estive aqui, mas agora há uma neblina também. A umidade esfria minhas bochechas.
— Uau — Christina diz.
A estufa é iluminada pela luz da lua, então é difícil distinguir árvores de estruturas feitas pelo homem. Folhas esfregam meu rosto enquanto caminho para a borda externa da estufa. E então eu vejo Johanna, agachada ao lado de um arbusto com uma tigela nas mãos, colhendo o que parece ser framboesa. Seu cabelo está preso para trás, então posso ver sua cicatriz.
— Não pensei que fosse vê-la aqui de novo, Srta. Prior — ela diz.
— Isso é porque supostamente eu deveria estar morta? — pergunto.
— Eu sempre espero que aqueles que vivem pela arma morram por ela. Sou muitas vezes agradavelmente surpreendida — ela equilibra a tigela em seus joelhos e olha para mim. — Embora eu não ache que você voltou porque gosta daqui.
— Não — respondo. — Nós viemos por algo mais.
— Certo — ela diz, levantando. — Vamos falar sobre isso, então.
Ela leva a tigela para o meio da estufa, onde as reuniões da Amizade são feitas. Nós a seguimos até as raízes das árvores, onde ela se senta e me oferece framboesas. Eu pego uma pequena mão cheia delas e passo a tigela para Christina.
— Johanna, esta é Christina — Marcus apresenta. — Audácia nascida na Franqueza.
— Bem vinda à sede da Amizade, Christina — Johanna sorri com ar conhecedor. Parece tão estranho, que duas pessoas nascidas na Franqueza tenham acabado em lugares tão diferentes: Audácia e Amizade.
— Diga-me, Marcus. Por que você veio visitar?
— Acho que Beatrice deveria responder isso — ele diz. — Sou meramente o transporte.
Ela muda o foco para mim sem questionar, mas posso dizer pelo olhar cauteloso em seu rosto que ela preferiria falar com Marcus. Ela negaria isso se eu perguntasse, mas estou quase certa de que Johanna Reyes me odeia.
— Hum... — Não foi o meu começo mais brilhante. Eu esfrego minhas mãos em minha saia. — As coisas ficaram feias.
As palavras começam a jorrar, sem sutileza e delicadeza. Eu explico que a Audácia se aliou aos sem facção, e eles planejam destruir todos da Erudição, deixando-nos sem uma das duas facções essenciais. Conto a ela que há informações importantes no complexo da Erudição, somadas a todo conhecimento que eles possuem, que precisam ser recuperadas. Quando termino, percebo que não disse a ela o porquê isso tem algo a ver com ela ou sua facção, mas não sei como dizer isso.
— Estou confusa, Beatrice. O que exatamente você quer que façamos?
— Eu não vim aqui para pedir sua ajuda — respondo. — Achei que você deveria saber que muitas pessoas vão morrer, e logo. E sei que você não quer ficar aqui não fazendo nada enquanto isso acontece, mesmo que alguns de sua facção façam isso.
Ela olha para baixo, sua boca torta a trai, revelando quão certa eu estou.
— Eu também queria te perguntar se podemos falar com os Eruditos que você está mantendo em segurança aqui. Sei que eles estão escondidos, mas preciso de acesso a eles.
— E o que você pretende fazer? — ela pergunta.
— Atirar neles — respondo, rolando os olhos.
— Isso não é engraçado.
Eu suspiro.
— Desculpe. Eu preciso de informação. Isso é tudo.
— Bem, você vai ter que esperar até amanhã — Johanna diz. — Vocês podem dormir aqui.

+ + +

Eu durmo assim que minha cabeça encosta no travesseiro, mas acordo antes do que planejei. Posso dizer pelo brilho perto no horizonte que o sol está para nascer.
Do outro lado do corredor entre duas camas, está Christina, seu rosto pressionado contra o colchão com o travesseiro sobre sua cabeça. Uma cômoda com uma lâmpada no topo está entre nós. O chão de madeira faz barulho, não importa onde você pise. E na parede esquerda está um espelho, casualmente colocado. Todos têm espelhos, menos a Abnegação. Eu ainda sinto um pequeno choque quando vejo um deles em qualquer lugar.
Eu me visto, não me importando em fazer silêncio – quinhentos Audaciosos andando não acordariam Christina quando ela dorme profundamente, mas um sussurro da Erudição talvez fosse capaz. Ela é singular dessa maneira.
Vou para fora enquanto o sol aparece através dos galhos das árvores, e vejo um pequeno grupo da Amizade reunido perto do pomar. Eu me aproximo para ver o que estão fazendo.
Eles estão num círculo, mãos dadas. Metade deles é de jovens adolescentes, e a outra metade, adultos. A mais velha, uma mulher com um cabelo branco trançado, fala.
— Nós acreditamos num Deus que concede paz e a estima — ela diz. — Então nós damos paz uns aos outros, e a estimamos.
Eu não ouviria isso como uma deixa, mas a Amizade parece ouvir. Eles todos começam a se mover de uma vez, achando alguém além do círculo e dando as mãos. Quando todos têm um par, eles param por vários segundos, olhando uns para os outros. Alguns murmuram uma frase, alguns sorriem, alguns permanecem parados e silenciosos. Então eles se separam e passam para outra pessoa, fazendo as mesmas ações de novo.
Eu nunca vi uma cerimônia religiosa da Amizade antes. Só estou familiarizada com a religião da facção dos meus pais, à qual parte de mim ainda se segura e a outra acha tolice – as orações antes do jantar, as reuniões semanais, os atos de serviço, os poemas sobre um Deus altruísta. Isso é algo diferente, algo misterioso.
— Junte-se a nós — a mulher de cabelo branco diz.
Demoro alguns segundos para perceber que ela está falando comigo. Ela acena para mim, sorrindo.
— Ah, não — eu digo. — Eu só...
— Venha — ela chama novamente, e eu sinto como se não tivesse escolha a não ser caminhar e ficar entre eles.
Ela se aproxima de mim primeiro, segurando minha mão. Seus dedos são secos e ásperos e seus olhos procuram os meus, persistentes, embora eu me sinta estranha encontrando seu olhar.
Uma vez que encontro, o efeito é imediato e peculiar. Eu fico parada, e toda parte de mim está parada, como se pesassem mais do que costumavam pesar, só que o peso não é agradável. Seus olhos são marrons, completamente, e não se movem.
— Que a paz do Senhor esteja com você — ela diz, sua voz baixa — mesmo no meio da tribulação.
— Por que estaria? — pergunto baixinho, para que ninguém possa ouvir. — Depois de tudo que fiz...
— Não é sobre você. É um presente. Você não pode merecê-lo, senão pararia de ser um dom.
Ela me solta e passa para outra pessoa, mas eu permaneço com a mão esticada, sozinha. Alguém se move para pegar minha mão, mas eu saio do grupo, primeiro caminhando, depois correndo.
Eu me enfio no meio das árvores o mais rápido que posso, e só quando parece que meus pulmões estão pegando fogo, eu paro.
Pressiono minha testa no tronco de árvore mais próximo, embora ele arranhe minha pele, e luto contra as lágrimas.

+ + +

Mais tarde naquela manhã, caminho através da chuva fina para a estufa principal. Johanna convocou uma reunião de emergência.
Estou escondida tanto quanto possível no fundo da sala, entre duas plantas grandes que estão suspensas em solução mineral. Levo alguns segundos para encontrar Christina, vestida no amarelo da Amizade, no lado direito da estufa, mas é fácil ver Marcus, que está nas raízes da árvore gigante com Johanna.
Johanna está com as mãos fechadas em sua frente e o cabelo preso para trás. O que causou sua cicatriz também danificou seu olho – sua pupila está tão dilatada que sobressai sua íris, e seu olho esquerdo não se move com o direito enquanto ela olha a multidão da Amizade em frente a ela.
Mas não há só Amizade. Há pessoas com o cabelo cortado curto e coques retorcidos que devem pertencer à Abnegação, e alguns grupos de pessoas usando óculos que devem ser da Erudição. Cara está entre eles.
— Eu recebi uma mensagem da cidade — Johanna diz quando todos se calam. — E eu gostaria de contá-la para vocês.
Ela puxa a borda de sua camisa, então aperta as mãos em frente a si. Ela parece nervosa.
— A Audácia se aliou aos sem facção. Eles planejam atacar a Erudição em dois dias. Sua batalha não vai atingir somente os exércitos da Erudição e Audácia, mas também inocentes da Erudição e o conhecimento que eles trabalharam duro para adquirir.
Ela olha para baixo, respira fundo, e continua:
— Eu sei que não reconhecemos um líder, então não tenho direito de me endereçar a vocês como se eu fosse. Mas espero que vocês me perdoem, só dessa vez, por perguntar se devemos reconsiderar nossa decisão prévia de não nos envolvermos.
Há murmúrios. Eles não são nada como os murmúrios da Audácia – são mais gentis, como pássaros voando dos galhos.
— A despeito da nossa relação com a Erudição, sabemos muito mais do que qualquer outra facção como o papel dela na nossa sociedade é essencial. Eles devem ser protegidos de matanças sem necessidade, se não por serem seres humanos, então porque nós não podemos sobreviver sem eles. Eu proponho que entremos na cidade pacificamente, guardiões da paz imparciais para impedir qualquer modo de extrema violência que irá com certeza ocorrer. Por favor, discutam isso.
A chuva embaça os painéis de vidro sobre nossas cabeças. Johanna se senta numa raiz de árvore para esperar, mas a Amizade não inicia uma conversação como na última vez em que estive aqui. Sussurros, quase imperceptíveis pela chuva, viram conversa normal, e ouço vozes suaves se levantarem sobre outras, quase gritando, mas não completamente.
Cada voz erguida lança um abalo através de mim. Eu já sentei em muitas discussões na minha vida, a maioria nos últimos dois meses, mas nenhuma delas nunca me assustou assim. A Amizade supostamente não deveria discutir.
Decido não esperar mais. Caminho pela área de reunião, espremendo-me entre os membros da Amizade que estão em pé, pulando sobre as mãos e as pernas estendidas. Alguns deles me encaram – posso estar vestindo uma camisa vermelha, mas as tatuagens na minha clavícula são tão claras como nunca, mesmo à distância.
Eu pauso perto do grupo da Erudição. Cara se levanta quando me aproximo, seus braços cruzados.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta.
— Eu vim para dizer a Johanna o que está acontecendo. E para te pedir ajuda.
— Para mim? Por que...
— Não para você — digo. Tento esquecer o que ela disse sobre meu nariz, mas é difícil. — Todos vocês. Eu tenho um plano para salvar alguns arquivos da sua facção, mas preciso da ajuda de vocês.
— Na verdade — Christina diz, aparecendo ao meu ombro esquerdo — nós temos um plano.
Cara olha de mim para Christina e de volta para mim de novo.
— Vocês querem ajuda da Erudição? — ela diz. — Estou confusa.
— Você queria ajudar a Audácia — replico. — Acha que é a única que não faz cegamente o que sua facção diz para fazer?
— Isso está de acordo com o seu padrão de comportamento — Cara diz. — Atirar em pessoas que entram em seu caminho é um traço da Audácia, afinal.
Sinto um aperto na garganta. Ela parece tanto com seu irmão, até o vinco entre as sobrancelhas e as listras escuras em seu cabelo loiro.
— Cara — Christina diz. — Você vai nos ajudar ou não?
Cara suspira.
— Claro que vou. Estou certa de que os outros irão também. Encontre-nos no dormitório da Erudição no fim da reunião, e nos conte o plano.
A reunião dura mais uma hora. Nesse tempo, a chuva já parou, embora água ainda molhe a parede e os painéis do teto. Christina e eu estamos sentadas contra uma das paredes, jogando um jogo em que tentamos abaixar o dedão da outra. Ela sempre vence.
Finalmente Johanna e os outros que se destacaram como líderes de discussão ficam em fila em frente às raízes. O cabelo de Johanna agora paira sobre o rosto abaixado. Ela deve nos dizer o resultado da conversa, mas só para com os braços cruzados, seus dedos batendo contra os cotovelos.
— O que está havendo? — Christina pergunta.
Finalmente Johanna levanta o olhar.
— Obviamente foi difícil encontrar concordância. Mas a maioria de deseja apoiar nossa política de não envolvimento.
Não importa para mim se a Amizade decidir ir à cidade ou não. Mas eu comecei a esperar que eles não fossem todos covardes, e para mim, essa decisão parece muito com covardia. Eu afundo contra a janela.
— Não é meu desejo encorajar a divisão nessa comunidade, que já me deu tanto — Johanna diz. — Mas minha consciência me força a ir contra essa decisão. Alguém mais cuja consciência o guie para cidade é bem vindo a ir comigo.
No início, eu, como todo mundo, não estou certa do que ela está dizendo. Johanna vira sua cabeça de modo que sua cicatriz fica visível e adiciona:
— Eu entendo se isso significa que não posso mais ser parte da Amizade — ela funga. — Mas, por favor, saibam que, se eu tenho que deixá-los, eu os deixo com amor, não com maldade.
Johanna vai em direção à multidão, coloca seu cabelo atrás das orelhas, e caminha em direção à saída. Alguns membros da Amizade a seguem, depois mais alguns, e então a multidão inteira está em pé, e alguns deles – não muitos, mas alguns – estão caminhando atrás dela.
— Isso — Christina diz — não é o que eu estava esperando.

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