sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo Quarenta

O dormitório da Erudição é um dos maiores cômodos na sede da Amizade. Há doze camas no total: uma fila de oito amontoadas ao longo da parede mais distante, e duas juntas de cada lado, deixando um grande espaço no meio do cômodo. Uma mesa grande ocupa o espaço, cheia de ferramentas, pedaços de metal e motores e partes velhas de computadores e fios.
Christina e eu acabamos de explicar nosso plano, o qual soou muito mais estúpido com mais de uma dúzia da Erudição nos encarando enquanto falávamos.
— Seu plano é falho — Cara diz. Ela é a primeira a responder.
— É por isso que viemos até vocês — respondo. — Para nos dizer como consertá-lo.
— Bem, primeiramente, esses dados importantes que você quer resgatar — ela fala. — Colocá-los num disco é uma ideia ridícula. Discos acabam quebrando se estiverem nas mãos da pessoa errada, como todos os objetos físicos. Eu sugiro que você use a rede de dados.
— A... O quê?
Ela olha para os outros da Erudição. Um dos outros – um homem de óculos coma pele marrom – diz:
— Vá em frente. Diga a elas. Não há mais razão para mantermos segredos.
Cara olha de novo para mim.
— Muitos dos computadores no complexo da Erudição estão programados para acessar informações de computadores de outras facções. É por isso que foi tão fácil para Jeanine rodar a simulação de ataque de um computador da Audácia ao invés de um da Erudição.
— O quê? — Christina indaga. — Quer dizer que você pode dar uma voltinha pelos dados de todas as facções quando sentir vontade?
— Você não pode dar uma voltinha pelos dados  um homem jovem aponta. — Isso não é lógico.
— É uma metáfora — Christina diz. Ela franze o cenho. — Certo?
— Uma metáfora, ou simplesmente uma figura de linguagem? — ele pergunta, também franzindo o cenho. — Ou uma metáfora é uma categoria definida sob o títulofigura de linguagem?
— Fernando — Cara lembra. — Foco.
Ele assente.
— O fato é — Cara continua — a rede de dados existe, é eticamente questionável, mas acredito que ela pode trabalhar a nosso favor aqui. Assim como os computadores podem acessar dados das outras facções, eles podem enviar dados para outras facções. Se nós enviarmos os dados que você queria recuperar a todas as outras facções, destruí-los seria impossível.
— Quando você diz nós — começo — você quer dizer que...
— Que nós estaríamos indo com você? — ela completa. — Obviamente que não todos iríamos, mas alguns de nós devemos. Como vocês esperam andar pelo complexo da Erudição por conta própria?
— Você percebe que, se vier conosco, pode levar um tiro — Christina diz. Ela sorri. — E sem se esconder atrás de nós porque você não quer quebrar seus óculos, ou qualquer coisa.
Cara tira seus óculos e os quebra ao meio.
— Nós arriscamos nossas vidas desertando da nossa facção — Cara responde — e vamos arriscá-las de novo para salvar nossa facção dela mesma.
— E também — sibila uma pequena voz atrás de Cara. Uma garota com não mais de dez ou onze anos espreita pelos cotovelos de Cara. Seu cabelo preto é curto, como o meu, e uma auréola de frizz cerca sua cabeça. — Nós temos apetrechos legais.
Christina e eu trocamos um olhar.
Eu pergunto:
— Que tipo de apetrechos?
— Eles são apenas protótipos — Fernando diz — então não há necessidade de investigá-los.
— Investigar não é realmente nosso forte — Christina fala.
— Então como vocês melhoram as coisas? — A menininha pergunta.
— Não fazemos, na verdade — Christina diz, suspirando. — Elas meio que só vão piorando.
A garotinha assente.
— Entropia.
— O quê?
— Entropia — ela silva. — É a teoria de que toda a matéria no universo está gradualmente se movendo em direção à mesma temperatura. Também conhecida como morte do calor.
— Elia — Cara diz — essa é uma simplificação grosseira.
Elia mostra a língua a Cara. Eu não posso evitar rir. Nunca vi um Erudito mostrar a língua antes. Mas então, eu não interagi com muitos jovens da Erudição. Só Jeanine e as pessoas que trabalhavam para ela. Incluindo meu irmão.
Fernando se agacha perto de uma das camas e pega uma caixa. Ele procura dentro dela por alguns segundos, então pega um disco pequeno e redondo. É feito de metal pálido que vi várias vezes na sede da Erudição, mas nunca vi em qualquer outro lugar. Ele o leva em sua palma em minha direção. Quando vou pegar, ele se afasta de mim.
— Cuidado! — ele exclama. — Eu trouxe isso da sede. Não é algo que inventamos aqui. Vocês estavam lá quando eles atacaram a Franqueza?
— Sim — eu digo. — Bem lá.
— Lembram-se de quando o vidro se quebrou?
— Você estava lá? — pergunto, estreitando os olhos.
— Não. Eles gravaram e mostraram a filmagem na sede da Erudição. Bem, pareceu que o vidro quebrou porque atiraram nele, mas isso não é realmente verdade. Um dos soldados da Audácia jogou um desses perto das janelas. Ele emite um sinal que você não pode ouvir, mas vai fazer o vidro se quebrar.
— Certo — falo. — E como isso vai ser útil para nós?
— Você vai ver que é muito fácil as pessoas se distraírem quando todas as suas janelas se quebram de uma só vez — ele diz com um pequeno sorriso. — Especialmente na sede da Erudição, onde há muitas janelas.
— Certo.
— O que mais vocês têm? — Christina pergunta.
— A Amizade vai gostar disso — Cara diz. — Onde está? Ah. Aqui.
Ela pega uma caixa preta feita de plástico, pequena o suficiente para que ela envolva os dedos ao redor dela. No topo da caixa há dois pedaços de metal que parecem dentes. Ela aciona um interruptor no fundo da caixa, e um fio de luz azul se estende pelo espaço entre os dentes.
— Fernando — Cara diz. — Quer demonstrar?
— Você está brincando? — ele responde, seus olhos bem abertos. — Eu nunca vou fazer isso de novo. Você é perigosa com essa coisa.
Cara sorri para ele, e explica:
— Se eu te tocasse com isso agora, seria extremamente doloroso, e te deixaria incapacitada. Fernando descobriu pelo jeito difícil ontem. Eu fiz isso para que a Amizade tenha um jeito de defender-se sem atirar em ninguém.
— Isso é... — eu franzo o cenho— ... gentil da sua parte.
— Bem, tecnologia supostamente deveria fazer a vida melhor — ela diz. — Não importa no que você acredita, há uma tecnologia para você.
O que minha mãe disse naquela simulação? “Temo que tudo que seu pai disse sobre a Erudição tenha afetado seu julgamento.” E se ela estava certa, mesmo que ela fosse apenas parte de uma simulação? Meu pai me ensinou a ver a Erudição de um modo particular. Ele nunca me ensinou que eles não faziam julgamentos sobre o que as pessoas acreditavam, mas desenvolviam coisas para elas que se ajustavam às suas crenças. Ele nunca me ensinou que eles podiam ser engraçados, e que podiam criticar sua própria facção.
Cara se aproxima de Fernando com o apetrecho, rindo quando ele pula para trás.
Ele nunca me disse que alguém da Erudição poderia me oferecer ajuda mesmo depois de eu ter matado seu irmão.

+ + +

O ataque vai começar à tarde, depois que ficar escuro demais para ver as braçadeiras azuis que marcam alguns dos traidores Audácia. Assim que nossos planos estão finalizados, nós caminhamos através do pomar para a clareira onde as caminhonetes são mantidas. Quando saio por entre as árvores, vejo que Johanna Reyes está sentada no capô de uma das caminhonetes, as chaves balançando dos seus dedos.
Atrás dela espera um pequeno comboio de veículos cheios de membros da Amizade – mas não só Amizade, porque a Abnegação, com seus cortes de cabelos severos e bocas paradas, está entre eles. Robert, o irmão mais velho de Susan, está com eles.
Johanna desce do capô. Na parte de trás da caminhonete em que ela estava sentada está uma pilha de caixas marcadas com MAÇÃS, FARINHA e MILHO. É uma boa coisa que só temos que colocar duas pessoas na traseira.
— Olá, Johanna — Marcus cumprimenta.
— Marcus — ela responde. — Espero que você não se importe de acompanharmos vocês até a cidade.
— Claro que não — ele diz. — Lidere o caminho.
Johanna dá as chaves a Marcus e entra na caçamba de uma das outras caminhonetes. Christina se dirige em direção à cabine da caminhonete, e eu vou para a caçamba, com Fernando atrás de mim.
— Você não quer sentar na frente? — Christina pergunta. — E você se diz Audaciosa...
— Vou ficar na parte da caminhonete em que é menos provável que eu vomite — respondo.
— Vomitar é parte da vida.
Estou prestes a perguntar a ela com que frequência ela pretende vomitar no futuro quando a caminhonete vai para frente. Eu seguro a lateral com ambas as mãos para não cair, mas depois de alguns minutos, quando me acostumo com as colisões e empurrões, eu as solto. As outras caminhonetes seguem a nossa frente, atrás de Johanna, que lidera o caminho.
Eu me sinto calma até atingirmos a cerca. Espero encontrar os mesmos guardas que tentaram nos parar na ida, mas o portão está abandonado, aberto. Um tremor começa no meu peito e se espalha para minhas mãos. No meio de conhecer novas pessoas e fazer planos, esqueci que meu plano é caminhar direto para uma batalha que pode reclamar minha vida. Logo depois de eu perceber que minha vida valeu a pena.
O comboio diminui a velocidade enquanto passamos pela cerca, como se esperasse que alguém aparecesse e nos parasse. Tudo é silêncio, tirando as cigarras nas árvores distantes e os motores das caminhonetes.
— Você acha que já começou? — pergunto para Fernando.
— Talvez. Talvez não — ele diz. — Jeanine tem muitos informantes. Alguém provavelmente disse a ela que algo aconteceria, então ela chamou todas as forças da Audácia de volta para a sede da Erudição.
Eu assinto, mas estou realmente pensando em Caleb. Ele era um desses informantes. Eu me pergunto por que ele acreditava tão fortemente que o mundo do lado de fora deveria ser escondido de nós, a ponto de trair quem ele supostamente se importava por Jeanine, que não se importa com ninguém.
— Você conheceu alguém chamado Caleb? — pergunto.
— Caleb — Fernando repete. — Sim, tinha um Caleb na minha aula de iniciação. Brilhante, mas ele era... Qual o termo coloquial para isso? Um puxa-saco — ele sorri. — Havia um pouco de divisão entre os iniciados. Aqueles que aceitavam tudo que Jeanine dizia e aqueles que não. Obviamente eu estava no segundo grupo. Caleb era um membro do primeiro. Por que a pergunta?
— Eu o conheci enquanto estava presa — respondo, e minha voz parece distante mesmo para mim. — Eu só estava curiosa.
— Eu não o julgaria muito duramente — Fernando diz. — Jeanine pode ser extraordinariamente persuasiva para aqueles que não são naturalmente desconfiados. Eu sempre fui naturalmente desconfiado.
Olho sobre seu ombro esquerdo, para o horizonte que fica mais claro enquanto mais nos aproximamos da cidade. Procuro os dois pinos no topo do Eixo, e quando encontro, me sinto melhor e pior ao mesmo tempo – melhor, porque o prédio é tão familiar, e pior, porque vê-lo significa que estamos nos aproximando.
— É — eu digo. — Eu também.

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