sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo quarenta e um

Quando chegamos ao centro da cidade, toda a conversa é interrompida dentro do caminhão, substituída por lábios cerrados e feições pálidas. Marcus dirige em meio aos buracos do tamanho de pessoas e de peças de ônibus quebrados no meio da rua. O caminho é mais tranquilo quando saímos do território dos sem facção e alcançamos a parte limpa da cidade.
Ouço tiros. De uma distância que mais se parecem pancadas.
Por um momento fico desorientada, tudo o que consigo ver são os líderes da Abnegação de joelhos no meio da rua e membros da Audácia, com rostos inexpressivos, segurando armas; também consigo ver minha mãe se virando para encarar as balas que vêm em sua direção, e Will caindo no chão. Mordo meu pulso para não chorar, e a dor me traz de volta para o presente.
Minha mãe disse para eu ser forte. Mas se ela soubesse que sua morte me deixaria com tanto medo, teria se sacrificado?
Disparando contra um comboio de caminhões, Marcus pega a Avenida Madison e, quando estamos a apenas dois quarteirões da Avenida Michigan, onde a simulação está acontecendo, ele estaciona o caminhão em um beco e o desliga.
Fernando salta para fora da cabine do caminhão e me oferece seu braço.
— Vamos lá, Insurgente — diz ele, com uma piscadela.
— O quê?
Seguro em seu braço e deslizo para fora do caminhão.
Ele abre a bolsa que estava segurando durante todo o caminho. Está cheia de roupas azuis. Ele seleciona algumas delas, arremessando-as para Christina e para mim. Eu pego uma camiseta cintilante azul, e um par de jeans também azuis.
— Insurgente — diz ele. — Substantivo. Uma pessoa que age em oposição à autoridade estabelecida, que não é necessariamente considerada agressiva.
— Você precisa mesmo dar nome a tudo? — Cara pergunta, correndo suas mãos por entre seu cabelo loiro, prendendo-o atrás da cabeça. — Nós só estamos fazendo uma coisa que deve ser feita. Não precisamos de um novo rótulo.
— Acontece que eu gosto de rotular — responde Fernando, arqueando uma de suas sobrancelhas escuras.
Olho para ele. A última vez que invadi a sede de alguma facção, eu estava com uma arma em minha mão, e deixei corpos atrás de mim. Quero que desta vez seja diferente. Eu preciso que desta vez seja diferente.
— Gostei do termo — eu digo. — Insurgente. É perfeito.
— Viu? — Fernando diz para Cara. — Não sou o único.
— Parabéns — diz ela, ironicamente.
Fito minhas roupas da Erudição enquanto os outros se despem de suas.
— Não temos tempo para modéstia, Careta! — Christina diz, lançando-me um olhar penetrante.
Eu sei que ela está certa, então tiro minha camisa vermelha e coloco a azul. Olho para Fernando e Marcus para ter certeza de que eles não estão me observando, e troco minha calça também. Eu tenho que puxar a calça para cima umas quatro vezes, e quando passo o cinto, ele aperta minha cintura como se fosse a boca de um saco de papel.
— Ela acabou de te chamar de Careta? — Fernando pergunta.
— É — digo. — Eu me transferi da Abnegação para Audácia.
— Ah — ele franze a testa. — Essa é uma mudança e tanto. Esse tipo de mudança de personalidade entre gerações é quase geneticamente impossível nos dias de hoje.
— Às vezes a personalidade de alguém não tem nada a ver com a escolha de uma facção — eu digo, pensando em minha mãe. Ela deixou Audácia não porque não se sentia pertencente a ela, mas porque era seguro ser Divergente na Abnegação. Também tem Tobias, que se transferiu para Audácia para escapar de seu pai. — Há muitos outros fatores a considerar.
Tobias se transferiu para Audácia para escapar do homem com quem fiz uma aliança. Sinto uma pontada de culpa.
— Continue falando assim e eles nunca vão descobrir que você não é da Erudição — diz Fernando.
Eu penteio meu cabelo para que ele fique arrumado e o coloco atrás da orelha.
— Aqui — diz Cara.
Ela pega uma mecha do meu cabelo e a prende com um grampo prata, do mesmo jeito que as garotas da Erudição fazem.
Christina pega as armas que trouxemos e me olha.
— Você quer uma? — ela pergunta. — Ou prefere levar uma arma de choque?
Eu fito a arma na mão dela. Se não eu levar a arma de choque, vou ficar completamente sem defesa contra pessoas que vão atirar em mim sem pensar duas vezes. Se eu levar, admito que sou fraca na frente de Fernando, Cara e Marcus.
— Você sabe o que Will diria? — Christina pergunta.
— O quê? — pergunto, minha voz entrecortada.
— Ele diria para superar isso — ela fala. — E para parar de ser tão irracional e pegar logo a arma.
Will tinha pouca paciência com a irracionalidade. Christina está certa; ela o conhecia melhor que eu.
E ela – que perdeu alguém querido naquele dia, assim como eu – foi capaz de me perdoar, um ato que beirava o impossível. Teria sido impossível para mim, se a situação fosse inversa. Então por que era tão difícil eu perdoar a mim mesma?
Fecho minha mão em torno da arma que Christina me ofereceu. O metal está quente onde ela estava segurando. Sinto a memória de tiros cutucando o fundo da minha mente, e tento sufocá-las. Mas não consigo. Eu largo a arma no chão.
— A arma de choque é uma opção perfeitamente boa — Cara diz enquanto puxa o longo cabelo de dentro da camisa. — Se você me perguntar, a Audácia gosta demais de armas de fogo.
Fernando me oferece a arma de choque. Eu queria poder dizer o quanto estou sentindo gratidão por Cara, mas ela não está olhando para mim.
— Como vou esconder esta coisa? — pergunto.
— Não se preocupe — Fernando responde.
— Certo.
— Melhor a gente ir logo — diz Marcus, checando a hora no seu relógio.
Meu coração bate tão forte que marca cada segundo em mim, mas o resto do meu corpo está dormente. Mal posso sentir o chão. Eu nunca estive tão aterrorizada, e considerando tudo o que tenho visto em simulações e tudo o que fiz durante a simulação de ataque, isto não faz nenhum sentido.
Ou talvez faça. Seja o que for que a Abnegação estava prestes a mostrar para todo mundo antes do ataque, foi o suficiente para Jeanine tomar providências terríveis e drásticas para impedi-los. E agora estou prestes a terminar o trabalho deles, o trabalho pelo qual toda a minha antiga facção morreu. Muito mais que minha vida está em jogo agora.
Christina e eu seguimos os outros. Nós corremos pelas calçadas limpas da Avenida Madison, passando pela Rua State, seguindo em direção à Avenida Michigan.
Faltando meio quarteirão para chegarmos à sede da Erudição, eu paro subitamente.
De pé, formando quatro filas a nossa frente, está um grupo de pessoas, a maioria vestida de preto e branco, separados por dois pés de distância, armas firmes em suas mãos e prontas para atirar. Eu pisco, e eles se tornam membros da Audácia, controlados pela simulação, no setor da Abnegação, durante a simulação de ataque. Controle-se! Controle-se controle-se controle-se... Eu pisco novamente e eles voltam a ser da Franqueza de novo – embora alguns deles estejam vestidos todo de preto, o que faz com que se pareça com os membros da Audácia. Se eu não tomar cuidado vou perder contato com onde, e quando, estou.
— Meu Deus — diz Christina. — Minha irmã, meus pais... E se eles...
Ela olha para mim, e acho que sei no que ela está pensando, porque já experimentei esse sentimento antes. Onde estão meus pais? Tenho que encontrá-los. Mas se os pais dela estiverem no meio desse grupo, controlados pela simulação e armados, não há nada que ela possa fazer por eles.
Gostaria de saber se Lynn está em uma dessas filas, em algum lugar.
— O que vamos fazer? — pergunta Fernando.
Eu dou um passo em direção ao grupo de membros da Franqueza. Talvez eles não estejam programados para atirar. Olho bem no fundo dos olhos de uma mulher que veste uma blusa branca e uma calça preta. Ela parece com alguém que acaba de sair do trabalho. Dou outro passo.
Bang. Por instinto eu me jogo no chão, cobrindo minha cabeça com meus braços, e me arrastando em retirada, em direção aos sapatos de Fernando. Ele me ajuda a me levantar.
— Que tal não fazermos isso? — ele pergunta.
Eu caminho para frente – não muito longe – e viro em um beco, entre um edifício perto de nós e a sede da Erudição. Membros da Franqueza estão no beco também. Eu não ficaria surpresa se a sede da Erudição estivesse cercada por uma camada densa de membros da Franqueza.
— Existe algum outro caminho para a sede da Erudição? — pergunto.
— Não que eu saiba — diz Cara. — A menos que você queira pular de um telhado para outro.
Ela solta uma risadinha abafada enquanto diz isso, como se fosse uma piada. Levanto minhas sobrancelhas para ela.
— Espera. Você não está realmente considerando...
— O telhado? — pergunto. — Não. As janelas.
Eu caminho para a esquerda, cuidadosamente, para não avançar em direção aos membros da Franqueza. O edifício à minha esquerda se sobrepõe à sede da Erudição. Deve haver alguma janela que fique de frente para outra.
Cara murmura alguma coisa sobre acrobacias loucas da Audácia, mas corre atrás de mim. Fernando, Marcus e Christina a seguem. Tento abrir a porta dos fundos do edifício, mas está trancada.
Christina dá um passo à frente e diz:
— Para trás.
Ela aponta sua arma para a fechadura. Eu protejo meu rosto com um braço enquanto ela dispara. Nós ouvimos um grande estrondo, e depois um tinido agudo, o efeito de disparar uma arma em um espaço tão fechado. A fechadura está quebrada.
Abro a porta e entro. Vejo um corredor longo e com um piso de cerâmica, portas em cada lado do corredor, algumas abertas, algumas fechadas. Quando olho por entre algumas delas, vejo fileiras de carteiras velhas, e quadros-negros nas paredes, como os que têm na sede Audácia. O ar cheira a mofo, como páginas de um livro de biblioteca misturadas com produtos de limpeza.
— Este costumava ser um edifício comercial — Fernando diz — mas a Erudição fez dele uma escola, para educação pós-Escolha. Depois da grande reforma na sede da Erudição, há uma década – sabe, quando todos os edifícios do outro lado do Milennium foram conectados? – eles pararam de ensinar lá. Era muito velho, difícil de se atualizar.
— Obrigada pela aula de história — diz Christina.
Quando alcanço o final do corredor, entro em uma das salas de aula para ver onde estou. Vejo os fundos da sede da Erudição, mas não há nenhuma janela depois do beco no nível da rua.
Próxima da janela, tão perto que poderia tocá-la se esticasse minha mão através do vidro, está uma criança da Franqueza, uma garota, segurando uma arma que é tão longa quanto seu antebraço. Ela está tão imóvel que me pergunto se ela está respirando.
Eu torço meu pescoço para ver as janelas acima do nível da rua. Sobre minha cabeça há muitas janelas. Nos fundos da sede da Erudição há apenas uma que se alinha com uma das do prédio onde estou. E está no terceiro andar.
— Boa noticia — digo. — Descobri um jeito de entrar.

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