sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo vinte e dois

Shauna está estirada no chão, com o rosto virado para baixo, sangue escorrendo por sua camisa. Lynn está agachada ao seu lado. Encarando-a. Parada.
— É culpa minha — murmura Lynn. — Eu não devia ter atirado nele. Não devia...
Eu fito a ferida em Shauna, que está coberta de sangue. Uma bala a atingiu nas costas. Não consigo dizer se ela está respirando. Tobias coloca dois dedos em um lado do pescoço dela, e balança a cabeça.
— Temos que sair daqui — ele diz. — Lynn. Olhe para mim. Eu vou carregá-la, e isso pode causar muita dor nela, mas é a nossa única opção.
Lynn concorda com um breve aceno de cabeça. Tobias se ajoelha ao lado de Shauna e coloca suas mãos por debaixo dos braços dela. Ele a ergue, e ela solta um gemido. Corro até ele para ajudá-lo a colocar o corpo flácido em cima de seu ombro. Minha garganta dá um nó, e tusso para aliviar a tensão.
Tobias se levanta com um grunhido de esforço, e juntos caminhamos em direção ao Mart Impiedoso – Lynn vai na frente, com sua arma. Caminho olhando para trás, observando se há alguém nos seguindo, mas não vejo ninguém. Acho que os traidores da Audácia foram embora. Mas tenho que ter certeza.
— Ei! — alguém grita. É Uriah, correndo em nossa direção. — Zeke teve queajudar a proteger Jack... Oh não. — Ele para. — Oh não. Shauna?
— Agora não é hora — diz Tobias, severo. — Corra de volta para o Mart Impiedoso e veja se consegue encontrar um médico.
Uriah permanece parado, encarando-o.
— Uriah! Vai, agora! — O grito ecoa pela rua sem que qualquer outro som o abafe.
Uriah finalmente se vira e corre a toda velocidade em direção ao Mart Impiedoso.
Estamos a apenas alguns metros de distância, mas com os gemidos de Tobias, com a respiração irregular de Lynn, e com a impressão de que Shauna está sangrando até a morte, o caminho parece interminável. Eu observo os músculos nas costas de Tobias se expandindo e se contraindo conforme sua respiração. Não ouço nossos passos; escuto apenas as batidas do meu coração. Quando finalmente alcançamos as portas, sinto que posso vomitar a qualquer momento, ou desmaiar, ou gritar com toda a força que conseguir.
Uriah, e outro homem da Erudição com um moicano, e Cara, nos encontram assim que entramos. Eles pegam uma maca para que Tobias coloque Shauna. O médico começa a trabalhar imediatamente, cortando a camisa de Shauna. Eu me viro. Não quero ver a ferida que a bala causou.
Tobias está de frente para mim, seu rosto está vermelho pelo esforço feito. Quero que ele me envolva em seus braços novamente, como fez depois do último ataque, mas ele não o faz.
— Não vou fingir que sei o que está acontecendo com você — ele diz. — Mas searriscar sua vida, novamente, sem nenhuma razão...
— Eu não estou arriscando minha vida. Estou tentando fazer sacrifícios, como meus pais teriam feito, como...
— Você não é seus pais. Você é apenas uma garota de dezesseis anos...
Eu ranjo os dentes.
— Como você se atreve...
— ... que não entende que o valor de um sacrifício reside na necessidade, e não em jogar sua vida fora! Se você fizer isso de novo, nós terminamos.
Eu não esperava que ele dissesse isso.
— Você está me chantageando? — Tento manter minha voz baixa para que os outros não consigam ouvir.
Ele chacoalha a cabeça.
— Não, estou dizendo um fato — seus lábios são uma linha. — Se você se colocar em perigo por razão nenhuma novamente, terá se tornado nada mais do que uma idiota da Audácia em busca de adrenalina, e não vou ajudá-la a se tornar isso — ele lança as palavras asperamente. — Eu amo Tris, a Divergente, aquela que toma decisões contrárias. Mas a Tris que está tentando o mais arduamente que pode se destruir... Não posso amá-la.
Quero gritar. Mas não porque estou irritada, mas sim porque estou com medo de que ele esteja certo. Minhas mãos tremem e agarro a bainha de minha camisa para acalmá-las.
Ele encosta sua testa na minha e fecha os olhos.
— Acredito que você ainda está aí — ele diz com sua boca contra a minha. — Volte.
Ele me beija levemente, estou chocada demais para interrompê-lo.
Ele volta para o lado de Shauna, e eu fico de pé, na frente de uma escada da Franqueza no saguão, perplexa.

+ + +

— Quanto tempo.
Me afundo na cama ao lado de Tori. Ela está sentada, com suas pernas escoradas em uma pilha de travesseiros.
— Muito tempo — respondo. — Como está se sentindo?
— Como se tivesse levado um tiro — um sorriso brota em seus lábios. — Fiquei sabendo que está familiarizada com a sensação.
— Pois é. É ótimo, não é?
Tudo o que consigo pensar é na bala nas costas de Shauna. Ao menos Tori e eu vamos nos recuperar de nossas feridas.
— E então, descobriu alguma coisa interessante no encontro de Jack? — ela pergunta.
— Pouca coisa. Você sabe como marcar um encontro com a Audácia?
— Posso ajudar. Uma coisa boa em ser uma tatuadora da Audácia é... Você conhece muita gente.
— Claro. Você também tem o prestígio de ser uma ex-espiã.
A boca de Tori se contorce.
— Eu quase me esqueci disso.
— Você descobriu alguma coisa interessante? Quero dizer, como espiã.
— Minha principal missão era focada em Jeanine Matthews — ela olhou furiosamente para as mãos. — Como ela passava o dia. E, mais importante, onde ela passava.
— Não em seu escritório, então?
Tori não respondeu de imediato.
— Acho que posso confiar em você, Divergente — ela olha para mim pelo canto de olho. — Ela tem um laboratório privado no nível superior. Medidas de segurança insanas protegendo-o. Eu tentava entrar lá quando eles descobriram o que eu realmente era.
— Você tentou entrar lá — repito. Seus olhos fogem do encontro com os meus. — Não para espionar, suponho.
— Achei que seria mais... Conveniente, se Jeanine Matthews não ficasse viva por muito tempo.
Eu vejo um tipo de sede em sua expressão, a mesma que vi quando ela me contou sobre seu irmão no quarto dos fundos do estúdio de tatuagem. Antes da simulação de ataque, eu poderia ter chamado isso de sede por justiça, ou até mesmo vingança, mas agora sou capaz de identificar como uma sede por sangue. E mesmo que isso me espante, eu entendo.
O que provavelmente deveria me espantar ainda mais.
Tori diz:
— Eu vou marcar uma reunião.

+ + +

Os membros da Audácia estão reunidos no espaço entre algumas fileiras de beliches e a porta, que está coberta por um lençol amarrotado, a melhor forma que encontramos para manter nossa reunião em sigilo. Não tenho dúvidas de que Jack Kang concordará com as ordens de Jeanine. Nós não estamos mais seguros aqui.
— Quais eram os termos? — Tori pergunta.
Ela se senta em uma cadeira ao lado de um beliche, sua perna ferida descansa à frente. Ela pergunta para Tobias, mas ele parece não prestar atenção. Ele está inclinado contra uma dos beliches, seus braços estão cruzados em seu peito, fitando o piso.
Eu limpo minha garganta:
— Foram três. Soltar Eric. Entregar uma lista com os nomes de quem não foi injetado com o soro da última vez. E entregar os Divergentes na sede da Erudição.
Eu olho para Marlene. Ela sorri para mim, um pouco triste. Ela provavelmente deve estar preocupada com Shauna, que ainda está com o médico da Erudição. Lynn, Hector, seus pais, e Zeke estão com ela.
— Se Jack Kang está fazendo acordos com a Erudição, não podemos ficar mais aqui — diz Tori. — Então, para onde vamos?
Eu penso no sangue na camisa de Shauna, e nos pomares da Amizade, o som do vento nas folhas, o sentimento das cascas sob minhas mãos. Nunca pensei que almejaria aquele lugar. Não pensei que havia isso em mim.
Fecho meus olhos por um instante, e quando os abro, estou de volta à realidade, e a Amizade é só um sonho.
— Para casa — Tobias diz, levantando sua cabeça. Todos estão escutando. — Nós devemos tomar de volta o que é nosso. Podemos quebrar as câmeras de segurança na sede Audácia para que a Erudição não possa nos ver. Devemos ir para casa.
Alguém concorda com um grito, e outra voz se junta à primeira. É assim que algumas coisas na Audácia são decididas: com acenos e gritos. São nesses momentos que não parecemos mais como isolados. Somos todos parte de uma mesma mente.
— Mas, antes de fazermos isto — diz Bud, que trabalhava com Tori no estúdio de tatuagem, e que está com uma de suas mãos nas costas da cadeira de Tori — precisamos decidir o que fazer com Eric. Deixá-lo aqui para a Erudição, ou executá-lo.
— Eric é da Audácia — Lauren diz, girando o piercing em seu lábio com um de seus dedos. — Significa que nós decidimos o que acontecerá com ele. Não a Franqueza.
Desta vez, um grito ruge para fora de meu corpo, se juntando com outros.
— De acordo com as leis da Audácia, somente líderes da facção podem fazer uma execução. E todos os cinco ex-líderes são traidores — diz Tori. — Então, acho que é hora de escolhermos novos líderes. A lei diz que precisamos de mais de um, e precisamos de um número ímpar. Se vocês tiverem sugestões, devem dizê-las agora, e votaremos se for necessário.
— Você! — alguém grita.
— Tudo bem — diz Tori. — Alguém mais?
Marlene coloca as mãos ao redor da boca e diz:
— Tris!
Meu coração acelera. Mas para minha surpresa, ninguém murmura e nem mesmo ri. Ao invés disso, algumas pessoas concordam, assim como fizeram quando o nome de Tori foi mencionado. Eu faço uma varredura na multidão e encontro Christina. Ela está de pé com os braços cruzados, e não parece reagir nem um pouco a minha nomeação.
Eu me pergunto como pareço para eles. Eles devem ver alguém que eu não sou. Alguém capaz e forte. Alguém que não posso ser; alguém que posso ser.
Tori afirma com um aceno de cabeça e olha ao redor para outra recomendação.
— Harrison — alguém diz.
Eu não sei quem é Harrison até que alguém bate no ombro de um homem de meia-idade com um longo cabelo loiro. Eu o reconheço – ele é o membro que me chamou de garota quando Zeke e Tori voltaram da sede da Erudição.
Os membros da Audácia ficam calados por um momento.
— Eu vou nomear Quatro — diz Tori.
Apesar de alguns poucos murmúrios enraivecidos no fundo da sala, ninguém discorda. Ninguém está mais chamando-o de covarde, não depois de ele bater em Marcus no refeitório. Pergunto-me como eles reagiriam se soubessem quão calculada foi aquela briga.
Agora, ele poderia obter exatamente o que ele pretendia obter. A menos que eu ficasse em seu caminho.
— Nós precisamos somente de três líderes — Tori diz. — Vamos ter que votar.
Eles nunca me nomeariam se não fosse por eu ter parado a simulação de ataque. E talvez, nunca teriam me nomeado se não fosse por eu ter atacado Eric no elevador, ou me colocado debaixo daquela ponte. Quanto mais imprudente fico, mais popular me torno na Audácia. Tobias olha para mim. Não posso ser popular com a Audácia porque Tobias está certo – não pertenço à Audácia; sou uma Divergente. Eu sou o que escolho ser. E não posso escolher ser isto. Eu tenho que me afastar deles.
— Não — eu digo. Limpo minha garganta e digo mais alto. — Não, vocês não precisam votar. Eu recuso minha nomeação.
Tori levanta uma de suas sobrancelhas para mim.
— Você tem certeza, Tris?
— Sim. Eu não quero isso. Tenho certeza.
E assim, sem nenhum argumento e nenhuma cerimônia, Tobias é eleito para ser um líder da Audácia. E eu não.

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