sábado, 12 de abril de 2014

Capítulo vinte e um

Estou em pé diante da pia do banheiro feminino; uma arma repousa em minha mão. Lynn colocou-a aqui há alguns minutos; ela parecia confusa com o fato de eu não ter fechado minha mão ao redor dela e colocado em outro lugar, em um coldre, ou na cintura por debaixo do meu jeans. Eu simplesmente a deixei ficar ali, e corri para o banheiro antes de entrar em pânico.
Não seja idiota. Não posso fazer o que estou prestes a fazer sem uma arma. Isto seria loucura. Então tenho que resolver esse problema que estou tendo nos próximos cinco minutos.
Enrolo meu dedo mindinho ao redor do cabo em primeiro lugar, depois meu segundo dedo, em seguida, os outros. O peso é familiar. Meu dedo indicador escorrega até o gatilho. Eu solto minha respiração.
Começo a erguê-la, trazendo minha mão esquerda para se encontrar com a direita para dar firmeza enquanto seguro. Eu a mantenho afastada de meu corpo, meus braços retos, assim como Quatro me ensinou, quando este era seu único nome. Usei uma arma como esta para defender meu pai e meu irmão da simulação obrigatória da Audácia. Usei-a para impedir que Eric desse um tiro na cabeça de Tobias. Não é inteiramente maligna. É apenas uma ferramenta.
Vejo o tremeluzir de um movimento no espelho, e antes que eu possa parar, encaro o meu reflexo. É assim que pareci para ele, eu penso. É assim que me parecia quando atirei nele.
Gemendo como um animal ferido, deixo a arma cair de minhas mãos e envolvo meus braços em volta do meu corpo. Eu quero chorar, porque sei que isso vai me fazer sentir melhor, mas não posso forçar as lágrimas. Só me agacho no chão do banheiro, encarando os azulejos brancos. Eu não posso fazer isso. Não posso levar a arma comigo.
Eu não deveria nem ir; mas ainda vou.
— Tris?
Alguém bate na porta. Eu me levanto e descruzo os braços enquanto a porta está sendo aberta. Tobias entra no banheiro.
— Zeke e Uriah me disseram que você está indo espiar Jack — ele disse.
— Oh.
— Você vai?
— Por que eu deveria falar para você? Você nunca me diz nada sobre seus planos.
Seus olhos azuis se enrugam.
— Do que você está falando?
— Estou falando sobre socar Marcus na frente de toda a Audácia sem nenhum motivo aparente — ando na direção dele. — Mas há uma razão, não há? Porque não foi como se você tivesse perdido o controle; não foi porque ele fez algo para te provocar, então tem que haver uma razão!
— Eu precisava provar para a Audácia que eu não sou um covarde — ele responde. — Isso foi tudo. Foi só isso.
— Por que você precisa... — começo.
Por que Tobias precisaria se provar para a Audácia? Só se ele quisesse que o tivessem em alta estima. Só se ele quisesse se tornar um líder Audácia. Lembro-me da voz de Evelyn, falando por entre as sombras na casa dos sem facção: “O que estou sugerindo é que você se torne importante.”
Ele quer que Audácia se junte aos sem facção, e sabe que o único jeito de fazer isso acontecer é ele mesmo fazer com que aconteça.
O porquê de ele não sentir necessidade em contar isso para mim é outro mistério completamente diferente. Antes que eu possa questioná-lo, ele diz:
— Então, você vai espiar, ou não?
— O que isso importa?
— Você está se colocando em perigo sem nenhuma razão novamente — ele diz. — Assim como quando correu para enfrentar a Erudição com apenas um... Um canivete para se proteger.
— Há uma razão. Uma boa. Nós não saberemos o que está acontecendo a menos que a gente espie, e precisamos saber o que está acontecendo.
Ele cruza os braços. Ele não é corpulento do mesmo jeito que alguns dos garotos Audácia são. Para algumas garotas, o que mais chama a atenção nele são suas orelhas pontudas, e o jeito de seu nariz se curvar na ponta, mas para mim...
Eu engulo o resto desse pensamento. Ele está aqui para gritar comigo. Ele vem escondendo coisas de mim. O que quer que sejamos agora, eu não posso me afundar em pensamentos de quão atraente ele é. Isso só tornará mais difícil para eu fazer o que precisa ser feito. E nesse momento, é ouvir o que Jack Kang tem a dizer para a Erudição.
— Você não está mais cortando seu cabelo como a Abnegação — digo. — É por que você quer se parecer mais com a Audácia?
— Não mude de assunto. Já tem quatro pessoas indo espiar Jack. Você não precisa ir.
— Por que você insiste tanto em me deixar aqui? — minha voz aumenta. — Não sou do tipo de pessoa que só fica sentada e deixa os outros correrem risco!
— Enquanto você for alguém que parece não dar valor a própria vida... Alguém que não consegue nem segurar, muito menos disparar uma arma... — ele se inclina para perto de mim. — Você deveria ficar sentada e deixar que outras pessoas corram os riscos.
Sua voz silenciosa pulsa dentro de mim como um segundo batimento cardíaco. Eu ouço as palavras, não parece dar valor a própria vida, sem parar.
— O que você vai fazer? Me trancar no banheiro? Esse é o único jeito de me impedir.
Ele coloca a mão na testa e permite que ela escorregue até suas bochechas. Nunca vi sua face ceder dessa maneira antes.
— Eu não quero parar você. Quero que você se controle. Mas se for para ser imprudente, você não pode me impedir de ir junto.

+ + +

Ainda está escuro, mas não completamente, quando alcançamos a ponte, que é pista dupla, com pilares de concreto em cada canto. Nós descemos a escada próxima a um dos pilares e rastejamos com passos silenciosos até o nível do rio. Grandes poças de água parada brilham como se a luz do dia estivesse batendo nelas. O sol está nascendo; temos que entrar em posição.
Uriah e Zeke estão em um edifício do outro lado da ponte, de modo que eles possam ter uma visão melhor e mais ampla para nos cobrir de certa distância. Eles têm melhor pontaria do que Lynn e Shauna, que veio porque Lynn pediu, apesar de sua explosão no Ponto de Encontro.
Lynn vai primeiro, suas costas pressionadas contra o concreto enquanto ela avança lentamente em direção à parte de baixo do suporte da ponte. Eu a sigo, com Shauna e Tobias atrás de mim. A ponte é suportada por quatro estruturas de metal curvadas que a fixam na parede de concreto, e por estreitas vigas sob seu nível inferior. Lynn se segura diante de uma das estruturas de metal e a escala rapidamente, mantendo as vigas estreitas abaixo de seus pés enquanto ela continua em direção ao meio da ponte.
Eu deixo Shauna ir à frente, pois não posso escalar tão bem. Meu braço esquerdo treme enquanto tento me lançar para o topo da estrutura de metal. Eu sinto o toque frio das mãos de Tobias em minha cintura, me estabilizando.
Agacho para me encaixar no espaço entre a parte inferior da ponte e as vigas debaixo de mim. Eu não vou muito longe antes de parar, meu pé sobre uma viga e meu braço esquerdo em outra. E terei que permanecer assim por um longo tempo.
Tobias desliza por uma das vigas e coloca uma de suas pernas em cima das minhas. É longa o suficiente para se estender por baixo de mim e pisar em uma segunda viga. Eu expiro e sorrio para ele em um tipo de agradecimento. É a primeira vez desde que deixamos o Mart Impiedoso que damos uma trégua um para o outro.
Ele sorri de volta, mas severamente.
Nós esperamos pelo momento certo em silêncio. Eu respiro pela boca e tento controlar a tremedeira de meus braços e pernas. Shauna e Lynn parecem se comunicarem sem nenhuma palavra. Elas fazem caras e bocas uma para a outra que eu não consigo entender, e acenam e sorriem quando atingem uma compreensão. Nunca pensei sobre como poderia ser se eu tivesse uma irmã. Será que Caleb e eu seríamos próximos se ele fosse uma garota?
A cidade está tão quieta nesta manhã que os passos ecoam assim que se aproximam da ponte. O som vem por detrás de mim, o que só pode significar que é Jack e sua escolta da Audácia, não a Erudição, que chegaram. A Audácia deve saber que estamos aqui, apesar de Jack Kang nem parecer notar. Se ele olhar para baixo por mais de alguns segundos, poderá nos ver por entre a grade de metal sob seus pés. Eu tento respirar o mais silenciosamente possível.
Tobias verifica seu relógio, e em seguida segura seu braço na minha frente para me mostrar a hora. Exatamente sete da manhã.
Eu olho para cima e observo a teia de metal sobre mim. Pés passam por cima de minha cabeça. E então eu o escuto.
— Olá, Jack — ele diz.
É Max, que nomeou Eric à liderança da Audácia sob as ordens de Jeanine, que implantou políticas de crueldade e brutalidade na iniciação da Audácia. Eu nunca falei com ele diretamente, mas o som de sua voz me fez tremer.
— Max — Jack diz. — Onde está Jeanine? Pensei que ela teria a cortesia de se apresentar.
— Jeanine e eu dividimos nossas responsabilidades de acordo com nossos pontos fortes. Isto significa que eu tomo todas as decisões militares. Acredito que isso inclui o que estamos fazendo hoje.
Eu franzo o cenho. Não ouvi Max falar muito, mas algo nas palavras que ele está usando, e em seu ritmo, parece... estranho.
— Ótimo — diz Jack. — Eu vim para...
— Devo informar que isso não será uma negociação — Max diz. — Em uma negociação, você deve estar no mesmo nível, e você não está.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que você pertence à única facção descartável. A Franqueza não nos dá proteção, sustento, ou inovação tecnológica. Por isso vocês são dispensáveis para nós. E vocês não têm feito o bastante para ganharem um favor de seus companheiros da Audácia — Max fala. — Então, você é completamente vulnerável e completamente inútil. Eu recomendo, portanto, que faça exatamente o que eu disser.
— Seu projeto de gente — Jack responde rangendo os dentes. — Como ousa...
— Não vamos nos exaltar agora — Max diz.
Eu mordo meu lábio inferior. Eu devo confiar em meus instintos, e eles me dizem que alguma coisa está errada aqui. Nenhum homem da Audácia que se preze diria a palavra exaltar. Nem reagir tão calmo a um insulto. Ele está falando como outra pessoa. Está falando como Jeanine.
Os pelos de minha nuca se eriçam. Faz todo sentido. Jeanine não confiaria em ninguém, particularmente em alguém volátil da Audácia, para falar em seu nome. A melhor solução para esse problema era dar a Max um ponto eletrônico. E o sinal de um ponto eletrônico pode chegar somente até um quarto de um quilômetro, no máximo.
Eu encontro o olhar de Tobias, e lentamente movo minha mão para apontar minha orelha. Depois eu aponto acima de mim, para onde Max está de pé.
Tobias franze o cenho por um momento, depois assente levemente com a cabeça, mas não tenho certeza de que ele entendeu o que eu disse.
— Tenho três exigências — diz Max. — Primeiro, quero que você liberte o líder da Audácia que atualmente está detido no cativeiro – ileso. Segundo, que você permita a entrada de nossos soldados em seu recinto para que possamos procurar pelos Divergentes, e extraí-los de lá; e terceiro, que nos forneça os nomes daqueles em que não injetaram o soro de simulação.
— Por quê? — Jack pergunta amargamente. — O que você está procurando? E por que precisa desses nomes? O que pretende fazer com eles?
— O propósito de nossa busca será localizar e remover qualquer Divergente no local. E quanto aos nomes, isto não é da sua conta!
— Não é da minha conta! — Ouço passos rangerem acima de mim e olho através da teia de metal. Pelo que posso ver, Jack está segurando a gola da camisa de Max.
— Liberte-me — diz Max. — Ou irei ordenar aos meus guardas para abrirem fogo.
Eu franzo. Se Jeanine está mesmo falando através de Max, ela deve estar próxima para ver que ele está sendo agarrado. Eu me inclino para frente, olhando para os edifícios do outro lado da ponte. À minha esquerda, as curvas do rio, e um edifício de vidro atarracado na margem. Deve ser ali que ela está.
Começo a escalar de volta para trás, indo até a estrutura de metal que suporta a ponte, em direção à escada que me levará até a rua principal. Tobias me segue imediatamente, e Shauna cutuca Lynn no ombro. Mas Lynn está fazendo outra coisa.
Eu estava ocupada demais pensando em Jeanine. Nem notei que Lynn pegou sua arma e começou a escalar em direção à extremidade da ponte. A boca de Shauna está aberta e seus olhos vidrados em Lynn balançando-se para frente, agarrando a borda da ponte, e empurrando o braço sobre ela. Seu dedo aperta o gatilho.
Max arfa, sua mão batendo contra o peito, e tropeça para trás. Quando ele deixa sua mão cair para longe de seu corpo, vejo que está escura com sangue.
Eu não me importo em escalar mais. Caio dentro de uma poça de lama, seguido por Tobias, Lynn, e Shauna. Minhas pernas afundam na lama, e meus pés fazem sons de sucção enquanto os coloco para fora. Meus sapatos estão escorregadios, mas continuo andando até chegar ao concreto. Armas e munições afundam na lama perto de mim. Eu me lanço contra a parede debaixo da ponte de modo que eles não conseguem me ver.
Tobias se prensa na parede atrás de mim, tão perto que posso sentir seu queixo flutuar sobre minha cabeça e consigo sentir seu peito contra meus ombros. Protegendo-me.
Posso voltar correndo para a sede da Franqueza, e para a segurança temporária. Ou posso achar Jeanine em seu estado mais vulnerável, provavelmente, no qual eu nunca poderia encontrar novamente.
Não é nem mesmo uma escolha.
— Vamos! — digo.
E corro até a escada, os outros bem atrás de mim. No nível inferior da ponte, a Audácia atira contra os traidores da facção. Jack está seguro, curvado, com um braço de alguém da Audácia pendurado em seus ombros.
Eu corro mais rápido. Corro através da ponte sem olhar para trás. Já consigo ouvir os passos de Tobias. Ele é o único que consegue continuar comigo.
O edifício de vidro está na minha frente. E então ouço mais passos, mais tiros. Eu corro em zigue-zague, para tornar mais difícil para os traidores Audácia me acertarem.
Estou próxima do edifício de vidro. Estou a metros de distância. Cerro os dentes e me esforço mais. Minhas pernas estão dormentes; mal consigo sentir o solo debaixo de meus pés. Mas antes que eu alcance as portas, vejo um movimento em um beco à minha direita. Eu me desvio e sigo-o.
Três figuras correm pelo beco. Uma é loira. Uma é alta. E a outra é Peter.
Eu tropeço e quase caio.
— Peter! — eu grito.
Ele levanta sua arma, e atrás de mim, Tobias levanta a dele, e nós paramos a alguns metros de distância, por um momento. Por trás dele, a figura loira – Jeanine, provavelmente – e o outro traidor Audácia viram a esquina. Apesar de eu não ter uma arma, e nem um plano, quero correr atrás deles, e talvez fosse se Tobias não prendesse sua mão em meu ombro e me segurasse no lugar.
— Seu traidor — eu digo para Peter. — Eu sabia, eu sabia.
Um grito perfura o ar. É angustiante e feminino.
— Parece que seus amigos precisam de você — Peter diz com um flash de um sorriso – ou está cerrando os dentes, não posso dizer. Ele mantém sua arma levantada. — Você tem uma escolha. Pode nos deixar ir e ajudar seus amigos, ou pode morrer tentando nos seguir.
Eu quase solto um grito. Ambos sabemos o que estou prestes a fazer.
— Espero que você morra — digo.
Eu me apoio em Tobias, que se apoia em mim, até chegarmos ao fim do beco, depois viramos e corremos.

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