sexta-feira, 9 de maio de 2014

Capítulo 1

Eles estavam fritos.
Amy Cahill observou a velha sacola se afastando pela esteira rolante do aeroporto. Em suas laterais despontava um volume visível. Acima da esteira, uma placa alertava os passageiros em cinco idiomas: OBRIGADO POR VISITAR VENEZA. BAGAGENS SERÃO REVISTADAS ALEATORIAMENTE.
— Ah, legal — disse Amy. — Esse “aleatoriamente” seria exatamente com qual frequência?
— Eu avisei que um guerreiro ninja deve sempre levar suas espadas na bagagem de mão — sussurrou seu irmão Dan, que, como sempre, operava em déficit cerebral.
— Desculpe, Jackie Chan, mas a bagagem de mão sempre passa pelo raio X — Amy sussurrou de volta. — Existem normas muito rígidas contra espadas de samurai dentro de mochilas. Mesmo quando pertencem a moleques de 11 anos que acham que são ninjas.
— E o que tem de errado com a desculpa que eu inventei que precisamos delas para fatiar o bife à parmegiana? Teria funcionado perfeitamente. Os italianos entendem tudo quando o assunto é comida.
— E você entende tudo quando eu digo “de 5 a 20 anos de prisão, sem liberdade condicional”?
Dan deu de ombros. Levantou uma gaiolinha cercada com grades de arame dos lados. Dentro dela um gato, da raça Mau Egípcio, parecia bastante descontente e espiava o menino com um olhar desconfiado.
— Tchauzinho, Saladin — ele disse para o bichano do outro lado da grade. — Lembre-se que, quando chegarmos em Tóquio, vai ter sushi de salmão toda noite!
— Prrr? — choramingou Saladin da gaiola, enquanto Dan o colocava com cuidadosobre a esteira rolante.
— Mmmm, hmmm, ohh... aaaaaaaaaahhh! — um gemido esganiçado veio de trás.
Embora todos em volta virassem suas cabeças e olhassem assustados, Amy e Dan sabiam que era a au pair, Nellie Gomez, dançando alguma música com seu iPod. Ela não estava nem aí para o fato de sua voz parecer a de um lêmure moribundo, e isso era uma das várias coisas legais em Nellie.
Amy ficou observando a gaiola desaparecer pela janelinha. Se os funcionários de fato revistassem a bagagem, os alarmes iam disparar. Policiais italianos viriam em sua procura gritando. Ela, Dan e Nellie teriam que sair correndo.
Não que eles não estivessem acostumados a isso. Nos últimos tempos, tinham corrido bastante. Tudo havia começado no dia em que tinham aceitado o desafio proposto por sua avó Grace no testamento dela. Isso aconteceu na mansão onde ela vivia, nos Estados Unidos, um pouco antes de ter sido destruída pelo fogo. Desde aquele dia, os dois já tinham escapado da morte no desabamento de um prédio na Filadélfia, depois foram atacados por monges austríacos e ainda perseguidos por barcos pelos canais de Veneza. Tinham sido alvo de truques sujos de todos os clãs da família Cahill.
De vez em quando – tipo de três em três segundos – Amy se perguntava por que diabos eles estavam fazendo aquilo. Ela e Dan podiam ter escolhido ficar com 1 milhão de dólares cada um, como vários membros da família Cahill tinham feito. Grace, porém, oferecera outra alternativa: uma corrida em busca de 39 pistas que levariam a um segredo escondido há séculos, a maior fonte de poder que o mundo jamais conhecera.
Até esse dia, Amy e Dan levavam uma vida comum, bem sem graça. Depois que seus pais haviam morrido, há sete anos, sua tia-avó Beatrice, uma megera, se tornara a responsável por eles – e contratar Nellie foi a única coisa legal que ela já havia feito. Mas agora eles sabiam que faziam parte de algo muito maior, uma família imensa que incluía antepassados como Benjamin Franklin e Wolfgang Amadeus Mozart. Era como se todos os grandes gênios do mundo pertencessem à família Cahill. Quase inacreditável.
— Ei, Amy, você nunca quis, tipo, subir na esteira rolante pra ver o que acontece? Tipo:Opa, tá tudo bem, pessoal, só tô dando uma voltinha com a bagagem?
E esse era Dan.
— Vamos! — Amy agarrou o irmão pelo braço e seguiu para o portão de embarque.
Nellie estava bem atrás deles, girando o botão do iPod com uma mão e, com a outra, arrumando o piercing em formato de cobra que tinha no nariz.
Amy olhou para o relógio do aeroporto. Eram 14h13. O voo estava marcado para sair às 14h37. Era um voo internacional. As companhias aéreas costumam pedir para que os passageiros cheguem ao aeroporto com duas horas de antecedência, e não 24 minutos.
— Não vamos conseguir! — disse Amy.
Eles estavam correndo na direção do portão 4, desviando dos outros passageiros.
— Acho que eles não encontraram o Rênulo e o Remo, né? — gritou Dan.
— Quem são Rênulo e Remo? — Amy perguntou.
— As espadas! Batizei as duas com o nome dos fundadores da Itália.
— É Rômulo e Remo — chiou Amy. — E eles fundaram Roma. E nunca mais diga essa palavra!
— Roma?
— Não... e-s-p-a-d-a. — Amy baixou a voz até virar um sussurro, enquanto eles entravam no fim de uma fila muito comprida. — Você quer que mandem a gente pra c-a-d-e-i-a?
— O-p-s.
— O-O-O-O... — Nellie cantava desafinada alguma música punk não identificável.
A fila pareceu durar umas 32 horas. A pior parte para Amy, como sempre, era tirar o colar de jade na hora de passar pelo raio X. Ela odiava se separar dele, mesmo que fosse por um minuto. Quando eles foram liberados, o relógio indicava 14h31. Os três dispararam por um corredor comprido rumo ao portão.
— Passageiros da Japan Airlines, voo 807 com destino a Tóquio, embarque no portão 4 — soou no alto-falante uma voz com sotaque carregado. — Tenham em mãos seus cartões de embarque e... Arrrrrrrrivederci!
Eles entraram no fim da fila, atrás de um garotinho fungão que virou e espirrou em cima de Nellie.
— Eca. Ô, educação! — ela reclamou, puxando a manga para enxugar o braço.
— Alguém viu meu cartão de embarque? — Dan perguntou, fuçando nos bolsos.
— Pega o meu — ofereceu Nellie. — Está coberto de ranho.
— Veja se não está dentro do seu livro — disse Amy, apontando para o volume enfiado no bolso de trás da calça de Dan.
Ele tirou uma cópia surrada de Os maiores clássicos da comédia, que havia encontrado no banco de trás do táxi a caminho do aeroporto. O cartão de embarque estava marcando a página 93.
— Deu a louca no mundo — disse Dan.
— Esse foi o comentário mais inteligente que você fez o dia inteiro.
— É o nome de um filme — retrucou. — Estou lendo sobre ele. A história é tão legal...
— Um passo à frente, por favor... Sejam bem-vindos! — trinou uma aeromoça loira animada, cujos fones de ouvido da Japan Airlines balançavam sempre que ela acenava a cabeça para cumprimentar um passageiro. Em seu crachá se lia I. RINALDI.
Nellie entregou o cartão de embarque e entrou no túnel de paredes sanfonadas que levava ao avião.
— Ei, crianças, qual é a dificuldade? — ela gritou por cima dos ombros.
Dan estendeu seu cartão para a aeromoça.
— É um filme muito engraçado. Tipo, vários comediantes das antigas procurando um tesouro...
— Desculpa, ele tem problema — Amy justificou para a comissária, entregando o cartão e cutucando Dan para que andasse na direção do túnel.
Mas de repente a aeromoça Rinaldi entrou na frente deles, bloqueando o caminho.
— Un momento — ela pediu, tentando manter seu inabalável sorriso enquanto ouvia alguma coisa pelos fones de ouvido. — Sì... ah, sì sì sì sì... buono — ela respondeu no microfone.
Então, fazendo um gesto para Dan e Amy, a aeromoça declarou:
— Podem me acompanhar, por favor?
Enquanto os irmãos seguiam a moça até o canto do saguão, Amy tentou se controlar para não tremer. As espadas. Eles tinham encontrado as espadas.
Dan encarou Amy com olhos de cachorrinho pidão. Às vezes, só de olhar para o irmão ela sabia exatamente o que ele estava pensando.
Talvez fosse melhor a gente fugir, os olhos dele diziam.
Ah, é... pra onde?, ela respondeu em silêncio.
Vou ficar invisível usando meus poderes mentais de ninja, ele estava pensando.
Pra isso você precisaria TER um cérebro, ela lhe transmitiu.
Nellie espiou da entrada do túnel.
— Qual é o problema? — ela perguntou.
— É um procedimento-padrão — a senhorita Rinaldi anunciou, virando na direção de Amy e Dan. — Minha supervisora está dizendo que é a revista aleatória. Vocês, por favor, esperem aqui encostados na parede.
Ela saiu num passo apressado, levando os dois cartões de embarque, e desapareceu ao virar o corredor.
De dentro do túnel, outra aeromoça chamou a atenção de Nellie:
— Por favor, vá para o seu assento, meu bem. Não se preocupe, o avião não vai partir sem todos os passageiros estarem a bordo.
— Eu odeio aeroportos — Nellie revirou os olhos e virou-se na direção do avião. — Espero lá dentro. Vou guardar um saquinho de amendoim para vocês.
Quando Nellie desapareceu pelo corredor, Amy sussurrou:
— Eu sabia... Eles revistaram a sua sacola. Vão prender a gente e ligar para a tia Beatrice, e nunca mais veremos a Nellie...
— Quer parar de ser tão pessimista? Vamos falar pra eles que outra pessoa pôs as esp... você-sabe-o-quê dentro da sacola. Nunca vimos elas na vida. Somos crianças. Eles sempre acreditam em crianças. E, além disso, talvez eles nem tenham revistado nossa bagagem. Talvez só estejam conferindo seu passaporte pra ter certeza de que podem deixar uma menina tão feia embarcar no avião...
Amy lhe deu uma cotovelada nas costelas.
— Última chamada para o embarque, voo 807 com destino a Tóquio, portão 4! — anunciou uma voz forte.
Uma terceira aeromoça estava colocando uma fita divisória, isolando a frente do túnel.
Amy ficou nervosa. Eles não segurariam o avião ali para sempre.
— A gente precisa achar aquela aeromoça... Rinaldi — ela decidiu. — Vamos!
Amy agarrou Dan pelo braço e os dois correram até o canto do saguão, virando no corredor.
Tum! Os irmãos trombaram com duas pessoas que estavam correndo em direção ao portão. Na colisão, Amy cambaleou para trás, perdendo o fôlego por um instante. Ela esbarrou em Dan, que por sua vez quase caiu no chão.
— Mas que...? — ele disse.
Os dois estranhos vestiam sobretudos pretos com as golas levantadas, escondendo seus rostos. Um deles calçava sapatos caros de executivo; a outra, tênis incrustados de pedras preciosas. Enquanto passavam empurrando Dan e Amy e acenando com os cartões de embarque, um deles gritou:
— Com licença!
Amy reconheceu a voz. Agarrou Dan e deu meia-volta. Os dois estavam afastando para o lado a fita divisória que impedia a passagem para o túnel.
— Peraí! — berrou Amy.
Um funcionário da empresa aérea também gritou com os dois estranhos, correndo para interceptá-los. Educadamente, os dois pararam e entregaram seus cartões de embarque. Ele examinou os tíquetes rapidamente, balançou a cabeça fazendo um sinal afirmativo e afastou a divisória.
— Boa viagem, Amy e Daniel — desejou o funcionário.
Os dois entraram no túnel e se voltaram para trás na mesma hora. Então eles baixaram as golas e sorriram.
Amy levou um susto ao ver os primos, seus maiores rivais na busca pelas 39 pistas, uma dupla cuja maldade só perdia para sua riqueza e astúcia.
— Sayonara, otários! — disseram em coro Ian e Natalie Kabra.

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