Rapidamente o funcionário da empresa aérea barrou o caminho dos dois.
— Seus cartões de embarque, per favore? — ele pediu.
Seu rosto era um misto de perplexidade e irritação.
Amy ficou olhando espantada, enquanto Ian e Natalie sumiam na sombra do túnel.
Os irmãos ouviram a porta do avião se fechar com um tum abafado.
— Eles... eles são os Kabra! — disse Dan. — Os Kabra são do mal. Vilano, malvatto, Kabritos! Eles vão fazer nossa au pair de refém!
Enquanto uma multidão de curiosos se formava em volta, o funcionário insistiu:
— Vocês não têm cartão de embarque?
Ele estava encarando Amy. Desesperado, Dan olhou de relance para ela, seus olhos gritando: Você é mais velha... faça alguma coisa!
Os pensamentos disparavam de um lado para o outro no cérebro de Amy. Como os Kabra podiam estar ali? Ela e Dan tinham abandonado os dois inconscientes, numa sala fumegante em Veneza. Quem os resgatara? Como eles tinham se recuperado tão rápido? Como tinham roubado as suas passagens?
Todo mundo estava olhando para Amy. O aeroporto inteiro. Ela odiava quando as pessoas olhavam para ela. Odiava ainda mais quando isso envolvia ser humilhada pelos Kabra. Aqueles dois sempre estavam um passo à frente, sempre tinham uma pista na manga que os aproxima do segredo da família Cahill. Não importava o quanto Amy e Dan se esforçassem, os Kabra eram mais espertos, mais rápidos, mais descolados – e mais inescrupulosos. Agora, eles estavam fingindo ser Dan e Amy. Estavam prestes a emboscar uma au pair indefesa. Como Amy conseguiria expressar tudo isso em palavras? Ela abriu a boca para tentar falar, mas era pressão demais, olhos demais à sua volta. Era como se alguém tivesse dado um nó em suas cordas vocais. Não saía nada.
— Ceeerto, obrigado, Amy — disse Dan. — Hã, olha só, amigo... senhor... sabe aquelas pessoas? Os Kabra? Bom, na verdade eles são um menino e uma menina. Eles enganaram a gente, ok? Capisce? Nas passagens está escrito Cahill, e eles não são da família Cahill... quer dizer, tecnicamente são, mas é um clã diferente da família, eles são tipo Janus, quer dizer, Lucian, e a gente não sabe o que a gente é, quer dizer, de que clã a gente é, mas nós somos parentes... enfim, estamos meio envolvidos numa coisa, tipo mais ou menos uma briga pelo testamento da nossa vó, mas é uma história muito comprida e ALGUÉM PRECISA DETER AQUELES DOIS! AGORA!
— Sinto muito — disse o funcionário — se vocês não têm cartões de...
Amy agarrou Dan pelo braço. Aquilo não ia levá-los a lugar algum. Precisavam encontrar a senhorita Rinaldi, ou a supervisora que a chamara pelo fone de ouvido. A tal supervisora devia ter mais autoridade que todos os outros funcionários. Talvez ainda houvesse uma chance. Talvez eles pudessem impedir o avião de decolar.
Ela e Dan correram outra vez para o canto do saguão e viraram no corredor. Passaram pelo lugar onde haviam colidido com os Kabra e logo saíram no corredor principal. Ao longe, viram uma fileira de lojas. À direita havia um armário de produtos de limpeza e uma porta de vidro onde estava escrito SOMENTE FUNCIONÁRIOS AUTORIZADOS.
À esquerda, um grupo de curiosos cercava a entrada do sanitário feminino, de onde surgiram funcionários da equipe de emergência médica, carregando uma mulher numa maca. Policiais em disparada surgiram de todas as direções.
Era o caos. Puro pandemônio. Enquanto corria, Amy esforçou-se para olhar as pessoas amontoadas, na esperança de encontrar um rosto conhecido.
Lá estava.
Uma mecha de cabelos loiros, caídos por cima do ombro, atraiu os olhos de Amy para a direita.
— Dan, olhe!
— Ah, agora você abre a boca. Que foi?
Uma mulher alta, vestindo um uniforme da Japan Airlines que parecia um número maior que o dela, abria caminho discretamente entre a multidão.
A visão daquela figura tão conhecida foi o suficiente para acionar o volume máximo da voz de Amy:
— IRINA! — ela gritou.
Irina Spasky era inconfundível: porte militar duro e ombros que se moviam como lâminas conforme ela andava. Outra Cahill decidida a encontrar as pistas. Assim como Ian e Natalie, era inescrupulosa. Diferentemente de Ian e Natalie, era uma espiã treinada pela KGB.
Irina não se virou. Não demonstrou nenhum sinal de ter escutado Amy, a não ser pela velocidade do passo, que acelerou um pouco.
Então ela sumiu na multidão, como se nunca tivesse estado ali.
— Prendam essa mulher! — Dan disparou para a frente, quase trombando com um homem de cara azeda numa cadeira de rodas.
— Polizia! — o homem gritou, levantando a bengala como se fosse dar uma cacetada na cabeça de Dan.
Dan se agachou. Amy o puxou para longe, tentando ficar de olho em Irina. Os irmãos foram avançando, abrindo caminho entre os passageiros às cotoveladas.
Quando conseguiram chegar a uma área menos tumultuada, perto da ponta do terminal, Irina já tinha sumido de vista.
— Ela desapareceu — falou Dan.
— Não... não acredito — Amy disse, recuperando o fôlego. — Ela estava colaborando com Ian e Natalie. Eles agiram juntos para sabotar a gente.
— Tem certeza de que era ela? — perguntou Dan. — Afinal, como a Irina ia conseguir arranjar aquele uniforme?
Antes que ele pudesse concluir a pergunta, uma voz anunciou algo em italiano pelo megafone, e a multidão abriu passagem. Uma pequena ambulância entrou noaeroporto com a sirene berrando.
Ouviram-se murmúrios em meio ao tumulto, a maioria em línguas que Amy desconhecia. Ela avistou um casal com óculos escuros, câmeras no pescoço, camisas havaianas horrendas e expressões entediadas.
— Olha, Dan... são americanos. Vamos escutar o que eles estão falando.
Os dois se aproximaram até conseguir ouvir pedaços das conversas. As pessoas estavam falando sobre a mulher na maca.
Dan parecia confuso.
— Ela foi aquecida no banheiro feminino?
— Agredida — disse Amy. — Essa devia ser a tal supervisora, Dan! Irina nocauteou a mulher e roubou o uniforme dela.
— Uau — respondeu Dan, quase impressionado.
Amy olhou de relance pela janela e viu o avião se afastando lentamente do portão 4 e indo em direção à pista de decolagem.
Eles estavam indo embora. O túnel havia sido recolhido, e a nave estava taxiando na pista.
Amy entrou em pânico.
— Não olhe agora, mas eles estão indo embora!
— Cadê a porta? Ainda podemos correr atrás deles!
— Certo. Você corre atrás deles, Dan. Enquanto isso, vou tentar convencê-los a me levar no próximo voo... passagem para uma pessoa, enquanto seus restos mortais são retirados da turbina do avião para dentro da qual você foi sugado — Amy começou a correr, dessa vez na direção do balcão de reservas. — Ou você pode vir comigo!
Lá fora, as janelas do avião eram buracos negros prateados ao longe. Amy sabia que atrás de uma delas estava Nellie, numa situação que nenhum ser humano deveria ter que enfrentar.
Ela estava sozinha com os Kabra.
***
Amy, seguida por Dan, passou pelo posto de segurança apinhado de gente e caminhou até o balcão de reservas. A fila para comprar passagens dava no mínimo três voltas, e eles tomaram lugar no final dela.
Os irmãos trocaram um olhar silencioso. Amy sabia que Dan estava pensando exatamente o mesmo que ela. Ele deu um suspiro, e seu olhar entristecido vagou lentamente pela esteira rolante.
— Saladin também está no avião — lembrou Dan. — E nossas espadas.
Amy lutou contra a vontade de se jogar no chão e chorar. Bem ali, no meio do terminal. Tudo estava dando errado. Fazia sete anos que eles estavam em uma maré de azar, desde que seus pais haviam morrido num incêndio. Como eles conseguiriam fazer aquilo sozinhos? Os Kabra tinham dinheiro e o apoio dos pais para o que quer que fizessem. Além disso, tinham feito uma parceria com Irina. Os Holt eram uma família inteira. Jonah Wizard tinha o pai para planejar cada instante da sua vida. Eram Amy e Dan contra... famílias. Equipes. Gerações. Eles não tinham a menor chance.
Se ao menos Grace tivesse lhes contado antes, na época em que a mãe e o pai ainda estavam vivos... Se ao menos os dois estivessem vivos agora!
Pensar nos pais só fez Amy se sentir pior. Ela vinha sonhando com eles toda noite. De vez em quando enxergava seus rostos – sorridentes, confiantes, bondosos. Sentia a aprovação, a reprovação, o orgulho deles quando ela fazia alguma coisa certa. Eles apareciam ali na mente dela e então... pluft! Sumiam. E novamente Amy sofria o sentimento de perda.
— Amy? — Dan a chamou, intrigado.
E lá estavam os pais dela... de novo. Nos olhos do tonto do seu irmão. Não seus rostos exatamente, mas eles. Olhando para ela, como se tivessem se apoderado dos traços de Dan por um instante. Coisa que nenhuma outra pessoa em sã consciência faria, pensou Amy.
Naquele instante, ela soube exatamente qual era a coisa certa a ser feita.
— Tem um voo saindo às 17h10 — Amy disse, lendo o telão luminoso que mostrava os horários das partidas. — A segurança de Nellie está em jogo. Precisamos ir atrás dela.
— É isso aí! Retroceder nunca, render-se jamais! — comemorou Dan. — Então... Você tem alguma ideia de como vamos pagar as passagens?
PÉÉÉM! PÉÉÉM! PÉÉÉM! PÉÉÉM!
Um alarme fez o terminal tremer, interrompendo todas as conversas. Conforme soava um anúncio sucinto, primeiro em italiano, depois em francês, por fim em alemão, as pessoas se encaminhavam para a entrada. Até que finalmente:
— Senhoras e senhores, dirijam-se imediatamente para a saída mais próxima. Este terminal será evacuado por motivos de segurança.
Um grito cortou o ar, e as pessoas começaram a correr desesperadas, trombando umas nas outras. Amy se lançou para a porta, puxando o irmão, enquanto ouvia trechos de conversas ao redor deles, algumas delas em inglês:
— Ameaça de bomba...
— Terroristas...
— Telefonema anônimo...
Os irmãos alcançaram a porta e abriram caminho aos empurrões. O dia tinha ficado cinza, no entanto as ruas sinuosas que davam acesso ao aeroporto estavam pontilhadas de faróis dos veículos que se aproximavam. Passageiros apinhavam a calçada, gritando em celulares, lançando-se na direção de ônibus e táxis. Dan e Amy, em meio àquele amontoado de corpos, seguiram até o meio-fio, onde os últimos integrantes de um grupo tinham entrado num ônibus.
A porta do veículo se fechou na cara deles e ele partiu cuspindo fumaça, avançando barulhento pela rua entupida de automóveis. Dan saiu correndo atrás, esmurrando a janela.
— Pare! Tarantella!
— Tarantella? — Amy perguntou com espanto.
— Meu vocabulário em italiano é limitado! — gritou Dan. — Lasanha! Ravioli! Buon giorno! Gucci!
Uma limusine preta deu uma freada estridente a alguns centímetros de distância, quase acertando Amy.
— Gucci. Eu sabia que isso ia funcionar! — comemorou Dan.
O vidro fumê do lado do motorista se abriu, e um homem de óculos escuros e bigode grosso fez um gesto calmo, pedindo que entrassem.
Amy abriu a porta de trás e pulou para dentro do carro, puxando o irmão para que ele entrasse também.
— Ei! — gritou outro passageiro enlouquecido, enquanto tirava do bolso um maço de notas e o sacudia diante da cara do motorista pela janela.
Dan fechou a porta, e três pessoas pularam em cima do carro, esmurrando e gritando. O motorista virou o rosto para a frente e fechou a janela, quase amputando o braço do homem que tinha chacoalhado o maço de notas.
— Valeu, amigo — Dan disse para o motorista. — Ou gracias, ou... enfim.
— Nój vamoj para outra aeroportov? — o homem perguntou com um forte sotaque, que não parecia italiano.
— Tem outro aeroporto? — disse Dan.
— Para navej pequenov — respondeu o homem.
— Mas... — gaguejou Amy. — Nós não temos din...
Dan cutucou a irmã nas costas.
— Tenho que falar a verdade pra ele — sussurrou Amy.
Dan cutucou outra vez.
Amy olhou feio para o irmão.
— Dá pra parar de...?
Foi só então que ela viu a outra pessoa que estava sentada no banco de trás. Um homem asiático, com um sorriso plácido, vestindo um terno de seda com luvas brancas e um chapéu-coco.
— Saudações, meus ardilosos parentes — ronronou Alistair Oh.
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